quarta-feira, 31 de outubro de 2018

José

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Carlos Drummond de Andrade, in "Alguma Poesia",Edições  Pindorama,1942

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Uma torre de luz

A Torre de Luz
Por Urbano Tavares Rodrigues

"Felícia sorria para todas as pessoas e todas as coisas, para os outros moços e moças da ceifa, para os tordos e taralhões que cantavam nas pernadas das azinheiras, para a brisa da manhã ou para o sol já forte do meio dia, para o esplendor de Junho, para a pobreza da marmita,onde havia mais migas do que conduto, e até para a severidade do manageiro, que a repreendia com alguma dureza quando ela se descuidava a bichanar com a Gisela, sua amiga de criação e eleição.
Quando eu passava por lá, a pé ou a cavalo, na insegurança dos meus dezasseis (ou dezassete) anos e ela nem tanto teria – parava a contemplá-la, o mais discretamente que conseguia, como algum tempo depois havia de olhar, em Florença, aquelas jovens que Botticelli eternizou nos jardins da adolescência.
Felícia correspondia, aliás, com muito salero, ao meu cumprimento. Mas a luz mais quente do seu olhar aveludado ia para a Gisela, que ceifava ao seu lado, ambas de saia apanhada entre os joelhos, para poderem curvar-se à vontade, e chapéus de homem sobre o lenço de ramagens que lhes escondia os cabelos bastos.
Cintura fina, peitos altos escondidos nas blusas trapalhonas, ancas que se arredondavam na faina que as trazia dobradas para a terra, suando, caladas ou zumbindo baixo, entre risos.
Chamavam-lhes fressureiras, um nome feio, que não lhes quadrava, uma prima minha dizia que a Felícia era lésbida, corruptela de lésbica, que feria menos a sua graça natural, quase aérea.
Vi descansar a cabeça morena de Gisela na concha nervosa das suas mãos. Falavam uma com a outra como se se beijassem.
Uma vez em dia de festa, no salão dos Leões, observei-as a dançarem (e mexendo-se bem) com dois rapazes da vila, um deles muito cobiçado, que vendia chita a metro, na loja do Quintos. Mas não se perdiam de vista, os olhos de água e os olhos de febre.
Volvido um ano, quando refloriram as madressilvas e novamente as papoulas endoideceram de vermelho os trigais, fui dar com elas, por puro acaso, numa saleta reservada da Filarmónica dos Leões, onde ambas aprendiam o solfejo nos poucos minutos vagos, abraçadas uma à outra. Pareciam duas gazelas loucas trocando carinhos no paraíso. Num paraíso sem idade nem cor religiosa.
Estava eu alimentando a esperança de que por milagre me chamassem para o meio delas, mas limitaram-se a rir.
– Então, menino Albano, que confianças são essas? Está a tornar-se muito curioso.
Riam, riam, descaradas (ou inocentes) e eu a afastar-me em passo lento, salvando a dignidade.
Vieram tempos de chuva e tempos de seca, a argamassa dos dias foi crescendo como eu crescia e os rostos de pedra dos meus mestres abriram-se amavelmente para me dar passagem em todas as cadeiras.
Tornei ao “monte” com a estiagem de Agosto, bichos e pássaros dormindo a sesta como nós. Depois foram os punhos do vento quente a baterem nas nossas vidraças, a abanarem até as árvores de sombra à entrada da horta. Um dia de fogo.
Soube nessa mesma tarde do casamento da Gisela, semi-forçada pelos pais, com o caixeiro promissor.
Constou que Gisela havia prometido à Felícia, atordoada, que nada ia mudar entre elas.
A verdade é que o moço, entornando simpatia à sua volta, não tardou a conseguir uma sociedade em Lisboa, num bom armazém, e nada de voltar a Moura, nem pela feira de Setembro.
Quem tem cu tem medo, dizia a voz do povo.
Eu tentava brincar com a Felícia, para despertar a toutinegra que havia nela, sempre disposta ao canto e ao riso, mas agora, pelo contrário, ela emocionava-se com um nada que ricochetasse no seu desgosto e gaguejava, como uma criança, o que a tornava ainda mais tocante.
Aconteceu, nesses momentos raros de convívio, eu ver passar nos seus olhos azul turqueza (dantes dispostos ao pasmo, à malícia, à alegria) a suspeita de uma lágrima ou o calor da gratidão.
Olhos que ainda me faziam sonhar, embora soubesse que nada mais podia esperar desse encanto que às vezes ela esbanjava com toda a gente.
E um dia, subitamente, à hora do calor mais compacto, dos mosquitos arreliadores, chega a notícia brutal.
Gisela e o marido já haviam comprado casa, ele continuava em segura ascensão económica, ela ir-se-ia adaptando a essa outra existência.
Pois bem, ao darem um passeio dominical pela estrada do Guincho, o automóvel despistou-se, foram contra uma árvore, ele ficou todo desfigurado, mas Gisela continuava bonita, mesmo morta.
Houve outra versão, a das más línguas. Que tinham começado a dar-se mal, às vezes era o diabo à solta no apartamento da Estrela onde moravam, perto do estabelecimento, Gisela jurava que largava tudo e voltava para Moura. Mas o dinheiro não era dela e havia o decoro, as vozes do mundo, o respeito pelos pais e outras coisas a que ela anos antes não ligava e agora já contavam.
Teria sido ele, desesperado, a escolher a morte ou então ela que lhe mexera no volante, desviando o carro da estrada, no auge de uma discussão.
Puseram-se muitas hipóteses. Cada qual mais estranha e perturbante.
A família fechou-se em dor e silêncio.
Felícia não chorava, pelo menos em público.
Tornei a vê-la apenas uma vez depois do acidente. Fiquei incapaz de lhe dizer uma só palavra. Apertei-lhe muito as mãos. Ela entendeu e quase sorriu, sabendo como sabia que o seu sorriso me restituía a visão da sua adolescência esfuziante. O meu absoluto encantamento, nesse tempo das mondas e das ceifas, em que eu confundia a epifania do sol com o marejar dos seus desejos.
Houve quem a visse depois, nessa mesma tarde, já ao crepúsculo, entrar na água fresca do rio Ardila.
Avançou olhando não em frente mas para a lua compassiva, que já surgia, imprevista, no firmamento. E assim perdeu pé, escorregou, afundou-se devagar, deixou-se morrer.
Alguém disse que, precisamente nos pegos onde ela se afogou, em certas noites, nascia da água uma torre de luz. Outros confirmavam.
A maioria ia verificar o prodígio e não via nada.
Numa noite de breu, antes de se mostrarem as estrelas, fui até lá, menos por causa do fenómeno do que para ali rever, imaginar a Felícia, o seu delírio, a sua beleza patética, nesses últimos momentos.
E quando, sentado num penedo, a ouvir o pio inquietante do mocho e o marulho do rio, muito lento, já pensava em me ir embora, eis que vejo a torre sair das águas e subir, subir, com nervuras de luz, cartilagens subtis de um branco eléctrico, cristalizações, veios de todo o feitio, ossos fossilizados recuperando o movimento, espirais de luz, gotas de prata, tudo a tremer e a tilintar, um carrilhão de luz, ramos e rumores de luz azul desmaiado, flores de renda e vidro hialino, e sempre mais luz, ou fogo (celeste? satânico?), e a boca desfeita de Felícia, a sua boca fitando-me.
Era uma noite cálida de Agosto. Eu tinha deixado o cavalo roer umas ervinhas e agora perdia-o de vista, suspenso como estava entre a angústia e o fascínio.
Ouvi então a voz de Felícia a dizer-me:
– Menino Albano, não insista. Eu agradeço, mas deixe-me viver em paz a minha morte.
Já não havia sobre a superfície quase lisa e sombria do Ardila quaisquer vestígios da torre de luz.
A lua nova enchia de mistérios o montado fronteiro da Rola, que se desdobrava, muito para além do rio, em filas esburacadas de chaparros e azinheiras. E terra e mais terra mosqueada de sarças que eu conhecia e tufos de piorno, onde os coelhos faziam as luras.
Dentro de mim ressoava fundamente o riso de Felícia."
Urbano Tavares Rodrigues, in Contos, Editorial Caminho

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Na casa das palavras

A casa das palavras
"Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poetas.
As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas: elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provassem. Os poetas abriam os frascos, provavam palavras com o dedo e então lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinham perdido. Na casa das palavras havia uma mesa das cores. Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia da cor que estava precisando: amarelo-limão ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaça, vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho..."
Eduardo Galeano, in O Livro dos Abraços, Antígona Editores, p. 13

domingo, 28 de outubro de 2018

Ao Domingo Há Música

                                   
                                         O equilíbrio instável de um momento
                                         Habitado
                                               Alberto de Lacerda, Labareda


Os   momentos habitados pela música têm um diferente fulgor.   Enchem-se de perfume, de  sabor que encantam e deliciam o prazer  exigente de qualquer um dos seus devotos.
Ennio Morricone  é um reconhecido e talentoso compositor . Tem uma vasta obra musical . Muitos filmes trazem memoráveis bandas sonoras, assinadas por este virtuoso músico. A Missão é um desses filmes. Lançado em 1986,  foi galardoado com vários prémios. 
Apresenta-se um registo dos temas principais de "A Missão", interpretado pela Roma Sinfonietta e Coro Polifónico , dirigido por  Ennio Morricone, no Arena Concerto,  em  28 de Setembro de 2002.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

É inútil

É inútil prolongar a conversa de todo este silêncio.

É inútil prolongar a conversa de todo este silêncio.
Jazes sentado, fumando, no canto do sofá grande —
Jazo sentado, fumando, no sofá de cadeira funda,
Entre nós não houve, vai para uma hora,
Senão os olhares de uma só vontade de dizer.
Renovávamos, apenas, os cigarros — o novo no aceso do velho
E continuávamos a conversa silenciosa,
Interrompida apenas pelo desejo olhado de falar...


Sim, é inútil,
Mas tudo, até a vida dos campos é igualmente inútil
Há coisas que são difíceis de dizer...
Este problema, por exemplo.
De qual de nós é que ela gosta? Como é que podemos chegar a discutir isso?
Nem falar nela, não é verdade?
E sobretudo não ser o primeiro a pensar em falar nela!
A falar nela ao impassível outro e amigo...
Caiu a cinza do teu cigarro no teu casaco preto —
Ia advertir-te, mas para isso era preciso falar...

Entreolhámo-nos de novo, como transeuntes cruzados.
E o pecado mútuo que não cometemos
Assomou ao mesmo tempo ao fundo dos dois olhares.
De repente espreguiças-te, semi-ergues-te — Escusas de falar...
"Vou-me deitar!" dizes, porque o vais dizer.
E tudo isto, tão psicológico, tão involuntário,
Por causa de uma empregada de escritório agradável e solene.
Ah, vamo-nos deitar!
Se fizer versos a respeito disto, já sabes, é desprezo!
22-11-1931
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.  - 152.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Amizade

Amizade
"É doce , quando se sofre , deitarmo-nos no calor  da cama e ali, suprimido todo o esforço e toda a resistência , com a cabeça debaixo  dos cobertores , abandonarmo-nos  por completo, gemendo, como os ramos ao vento do Outono.  Mas há uma cama  ainda melhor, cheia de odores divinais. É a nossa terna, profunda, impenetrável amizade. Quando essa cama é triste e gelada , deito nela,  friorento, o meu coração. Sepultando  o meu próprio pensamento na nossa quente ternura, longe de tudo o que se passa lá fora, recusando-me a defender-me , mas, por milagre da nossa ternura , inesperadamente revigorado, invencível, choro com a pena e com a alegria de ter uma confiança onde encerrá-la."
Marcel Proust, in  Os Prazeres e os Dias , Editorial Presença, pp. 123, 124

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Poco Adagio

De Gustav Mahler, a Symphonie 4 : Poco Adagio pela Berliner Philharmoniker, sob a direcção do Maestro Herbert von Karajan.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Dona Fernanda

Ilustração: Susa Monteiro
Tratado das paixões da alma
Por António Lobo Antunes
"Pode crer, ficaria bem, talvez, por exemplo, o médico gostasse, talvez a senhora, dona Fernanda, se sentisse menos só em casa, iluminada pelas pétalas fosforescentes, se sentisse mais nova, se sentisse mais bonita, talvez que na pastelaria do quarteirão a seguir, onde bebe o seu chazinho à tarde no meio de solitários macambúzios, um sujeito bem apessoado, ou pelo menos razoavelmente apessoado, a mirasse rente ao cálice com um líquido branco num interesse discreto
E agora, dona Fernanda? O seu marido morreu, o seu cão morreu, o seu filho vive na Suíça e não atende o telefone, a sua amiga Prazeres cortou relações consigo, convencida que a senhora andava a catrapiscar-lhe o marido, o médico não pára de avisá-la
- Atenção às gorduras
a desenhar círculos à volta dos resultados das análises, tirando os óculos no fim para suspirar melhor, a bater com a ponta da esferográfica num dos números
- Ai dona Fernanda, dona Fernanda
competente, amável, preocupado, por acaso viúvo também visto que duas alianças juntinhas num dedo e a roupa descuidada, às vezes com nódoas que nenhuma esposa consentiria, sem mencionar a falta de graxa nos sapatos, a senhora com vontade de responder-lhe
- Ai senhor doutor, senhor doutor
ao olhar-lhe as biqueiras, um homem não muito velho, nem sequer feio por acaso, que, a avaliar pelas pestanas, deve ter sido um bebé lindo antes de se transformar num adulto assim assim, um aperto de mão à entrada, um aperto de mão à saída acompanhado pelas palavras
- Ali ao balcão marque para outubro
já quando a senhora, dona Fernanda, a agarrar no puxador lembra-lhe as gorduras
- Cuidado com isso
a senhora a pensar que se fosse a médica e ele o doente lhe receitava uma bisnaga de graxa e um pano para avivar o brilho ao cabedal, uma das empregadas do balcão, a folhear outubro na agenda
-Tenho dia onze e dia vinte e sete, dona Fernanda
com anéis exuberantes, desses que se compram no metro a sujeitos acocorados num banquinho diante de um pano sujo, cheio de preciosidades de pataco, a senhora, dona Fernanda, a contemplar o que ela usava no indicador direito, um girassol de plástico enorme tapando-lhe o dedo todo
- Dia onze está certo
enquanto se imaginava com um anel idêntico
- Como é que me ficaria?
e ficaria bem, pode crer, ficaria bem, talvez, por exemplo, o médico gostasse, talvez a senhora, dona Fernanda, se sentisse menos só em casa, iluminada pelas pétalas fosforescentes, se sentisse mais nova, se sentisse mais bonita, talvez que na pastelaria do quarteirão a seguir, onde bebe o seu chazinho à tarde no meio de solitários macambúzios, um sujeito bem apessoado, ou pelo menos razoavelmente apessoado, a mirasse rente ao cálice com um líquido branco num interesse discreto, a perguntar ao empregado o seu nome, talvez que o sujeito a ganhar coragem para vir ter consigo
- Dá-me licença?
e a senhora lhe aceitasse a companhia recuando uma das três cadeiras que sobravam na sua mesa, dona Fernanda, talvez aceitasse também um novo encontro para o dia seguinte, talvez, mesmo, o deixasse pagar-lhe o chá dado que apesar de barato todos os cêntimos contam e a pensão do seu marido acanhada, uma sopinha e uma maçã ao jantar e pronto, um arrozito com um terço de uma lata de atum ao almoço e entre o almoço e o jantar o luxo do chazinho, a senhora para a empregada das consultas, depois dela lhe entregar o cartão de utente com o dia onze de outubro escrito debaixo do dia vinte e seis de março de hoje
- Desculpe o atrevimento mas importa-se de me dizer onde comprou o anel do girassol?
confirmando que a um marroquino do metro a quem tinham acabado os girassóis mas não os alfinetes doirados com uma pantera pronta a saltar, ideal para a gola do casaco na qual se espetava com um alfinete, experimentou ao espelho e sentiu-se melhor com aquilo, alegrava-lhe a roupa, alegrava-lhe as feições, o sujeito do cálice, respeitoso
- Não me leve a mal dizer isto mas de pantera parece uma actriz
e a senhora, dona Fernanda, não lhe levou a mal, a senhora, dona Fernanda, contente, a senhora, dona Fernanda, quase a sorrir, a senhora, dona Fernanda, a sorrir, a senhora, dona Fernanda
- Muito obrigada
a inchar na blusa, o sujeito, lisonjeiro
- Olhe que estou a ser completamente sincero
passando o indicador, ao de leve, no bicho, por si, dona Fernanda, até podia ter carregado um bocadinho, o sujeito funcionário público
- Sou funcionário público
num ministério ou assim, pareceu-lhe que um ministério, o sujeito contínuo num ministério, tão educado
- Vemo-nos amanhã?
a pagar-lhe de novo o chá, a senhora, dona Fernanda, coquete
- Quem sabe?
mas a dizer que sim com a cabeça, isto é a cabeça, independente de si, autónoma
- Sim
a sua boca, independente de si, autónoma
- Claro que sim
e a senhora, dona Fernanda, feliz que tudo nela lhe escapasse, a aquecer a sopinha no fogão apercebendo-se que cantarolava, apercebendo-se que as duas assoalhadas mais bonitas, apercebendo-se que o sofá aguentava apesar do marido da dona Prazeres, que cortou relações consigo por supor, injustamente, que a senhora, dona Fernanda, o catrapiscava, a garantir que era difícil abraçá-la numa coisa com uma das pernas meio solta, não cessando de avisar
- Vou cair."
António Lobo Antunes, em Crónica publicada na revista Visão, em  21.01.2016 

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Biblioteca Pessoal

"Quando morreu , Jorge Luis Borges já tinha escrito os prólogos dos primeiros sessenta e quatro títulos de uma série de cem  que haveria  de constituir uma colecção , a súmula das suas preferências literárias - a sua biblioteca pessoal: 
" Desejo que esta biblioteca seja tão variada quanto a curiosidade que a mesma induziu em mim." 
É essa escolha pessoalíssima de Borges que compõe este livro, Biblioteca Pessoal, editado pela Quetzal Editores, em 2014.
Jorge Luís Borges incluiu nessa selecção uma obra  portuguesa.Segue-se o respectivo prólogo. 

José Maria Eça de Queirós
O MANDARIM
"Nos finais do século XIX, Groussac pode escrever com veracidade que ser famoso na América do Sul não era deixar de ser um desconhecido. Essa verdade, naqueles anos, era aplicável a Portugal. Famoso na sua pequena e ilustre pátria, José Maria Eça de Queirós ( 1845 -1900) morreu quase ignorado pelas outras  terras da Europa. A tardia crítica internacional consagra-o agora como um dos prosadores  e romancistas da sua época.
Eça de Queirós foi esta coisa um tanto melancólica: um aristocrata pobre. Estudou Direito na Universidade  de Coimbra e, uma vez terminado o curso, desempenhou  um cargo medíocre numa  província medíocre . Em 1869, acompanhou o seu amigo, o conde  de Resende, à inauguração do canal de Suez. Passou do Egipto para a Palestina, e a evocação dessas andanças perdura em páginas que muitas gerações lêem e relêem.  Três anos depois ingressou na carreira consular. Viveu em Havana, em Newcastle, em Bristol, na China e em Paris. O amor à literatura francesa nunca o abandonaria. Professou a estética do Parnaso e, nos seus muito diversos romances, a de Flaubert.  Em O Primo Basílio (1878) notou-se a sombra tutelar de Madame Bovary, mas Emile Zola julgou que era superior  ao seu indiscutível  arquétipo e juntou à sua sentença estas palavras : " Fala-lhes um discípulo de Flaubert."
Cada oração que Eça de Queirós publicou fora limada  e temperada, cada cena da vasta obra múltipla foi imaginada com probidade.  O autor define-se como realista , mas esse realismo não exclui o quimérico, o sardónico, o amargo e o piedoso. Como o seu Portugal, que amava com carinho e com ironia, Eça de Queirós descobriu e revelou o Oriente. A história de  O Mandarim ( 1880) é fantástica. Uma das personagens é um demónio; a outra , a partir  de uma sórdida pensão de Lisboa, mata magicamente um mandarim que lança o seu papagaio de papel num terraço que fica no centro do Império Amarelo. A mente do leitor hospeda com alegria essa impossível fábula. 
No ano final do século XIX, morreram em Paris dois homens de génio, Eça de Queirós  e Oscar Wilde . Que eu saiba, nunca se conheceram, mas ter-se-iam entendido admiravelmente."
Jorge Luis Borges, in Biblioteca Pessoal, Quetzal Editores, pp. 23, 24

domingo, 21 de outubro de 2018

Ao Domingo Há Música


Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
                      De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
                      Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
                      Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
                      Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
                      Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
                      Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
                      Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
                      Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!
                                              Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)
Quando a  música  se  transforma em dança, o corpo passa a ser   todo o universo.Transcende-se  em gestos, em  movimentos  em todas as direcções. O ritmo da melodia  empresta-lhe  a beleza e a luz  do todos os sons. E  freme, treme, salta , rompe , evade-se ,  transborda,   explode com  todos os lumes e luzes da alma.
Hoje  será a dança  a marcar  este apontamento.
O primeiro registo, Lost in motion II, explora  as emoções  que  se soltam,   quando se mostra a alma  em palco. 
Heather Ogden dança ao som da voz de  Leonard Cohen, em "Avalanche". A coreografia é de  Guillaume Côté e a direcção de Ben Shirinian
Anna Nikulina e Mikhail Lobukhin , em Khachaturian Spartacus Adagio Love, com coreografia de Yuri Grigorovich .


Amy Yakima e Travis Wall interpretam  Wicked Game ,cantado por  James Vincent McMorrow ,com coreografia  de   Travis Wall.

sábado, 20 de outubro de 2018

Dizer de mim








Dizer de mim
Se apenas quero  saber de ti
Quando os dias se tornam longos
E crescem no silêncio deste  aqui
E as horas e os minutos oblongos,
Vazios sem fim
MJSM, in " Poemas da Terra e do Mar"

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O mundo em cartoon


HenriCartoon

HenriCartoon

HenriCartoon

HenriCartoon
“Your 10:30 distraction is here.”
Brendan Loper , The New Yorker

“I’ll also need you to clean up the environment after I’m done with it.”
Brendan Loper , The New Yorker
Chapatte

Chapatte

Italliaoggi

Italliaoggi

Italliaoggi

Italliaoggi

Italliaoggi
The Guardian
El País
El País


El País

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Porque a música é doce

Porque a música é doce
Dá à alma harmonia  e qual coro divino
Acorda e faz cantar no coração mil vozes

Patricia Janečková canta  W. A. Mozart, em Laudate Dominum, KV 339 / Árie soprán

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Nova obra de Eugénio Lisboa no prelo


Está no prelo  uma nova obra de Eugénio Lisboa , uma outra  "masterpiece" para competir  com a sua antecessora " Acta Est Fabula",  publicada  em sete luminosos volumes.  Este novo  magnum opus constitui um extenso Diário, escrito ao longo de décadas,  cujo primeiro volume sairá em breve, com a chancela  da  Opera Omnia. Espera-nos a singular possibilidade de uma outra aprendizagem do mundo, através do olhar perspicaz e arguto deste  ínclito escritor . Aguardamo-la, com impaciente curiosidade e indelével  regozijo.
Regressamos , hoje, ao V volume das suas Memórias, para recordarmos a  preciosa clareza e a despretensiosa erudição  que caracteriza   o discurso diarístico de Eugénio Lisboa. Com a sagacidade de  intelectual brilhante e  o encanto de  homem simples, regista, interpreta, analisa, formula e repensa  ideias e acontecimentos  que encheram os seus  dias.  



PÁGINAS DO DIÁRIO
(10.01.96 - 27.05.96)

10.01.1996, Lisboa 
"Caem toalhas de chuva sobre uma Lisboa cinzenta e tristonha. As notícias são de desastre e estragos infindáveis. Na televisão, os políticos falam com ar grave e prenhe. “Dizem coisas”, como a irmã (ou tia) Georgina, do Raul Solnado, gostava de dizer. O Jim anda atrás de mim, moendo-me a molécula. Vou dando vazão, sem grande vontade, a alguns compromissos: um prefácio, uns poemas para uma revista e umas provas que vou adiando (onde já vai o tempo em que revia provas com sofreguidão, a ver se o livro saía depressa…)
Portugal é um país pequeno, pobre, tristonho e, frequentemente, mesquinho. Onde se vê, de modo mais duro, impiedoso e desnudo, o “struggle not for life but for territory” é na administração pública. Mas é um velho enredo balzaquiano que já nem sequer me interessa observar. É antigo, gasto, ultra-mesquinho, nada estético. E tão inferior, que me humilha participar nele, mesmo involuntariamente. É os carros para os senhores directores gerais, é os carros para os gabinetes, é os carros para os motoristas e os motoristas para os carros. E há quem viva disto, para isto – nunca contra isto. Estou farto de tudo isto, não estou nisto, não estou sequer para fingir que dou importância a isto. De cada vez que há uma tomada de posse, dá-me vontade de vomitar ver ali, a arejarem a pluma, com ar de infinita importância, dúzias de indivíduos que, amanhã, depois de reformados, ninguém conhecerá e ninguém cumprimentará. A comédia humana, como tudo, gasta-se, repete-se e torna-se sem interesse. Nem para romanceco serve. A luta pelo poder (e pela visibilidade) é um tema que já deu o que tinha a dar. E quando se processa, dentro do contexto pífio de um Portugal infinitesimal e pelintra, o interesse é ainda mais reduzido. A dança das vaidades, nas salas da administração pública, nem sequer atinge a grandeza típica do grotesco: é apenas pequeninamente cocasse.
Leio um belo romance: Birdsong, de Sebastian Faulks. Mergulhado nele, esqueço Portugal e os portugueses. Esqueço-me de mim.
(…)
Ontem, à tarde, reunião com Guilherme d’Oliveira Martins, no Ministério da Educação. Estávamos presentes o embaixador Moya Ribera (embaixador junto da UNESCO, em Paris), a Dra. Maria de Lourdes Paixão, o Dr. Lopes Serrado e eu, pela Comissão Nacional da UNESCO. Falámos de projectos da Comissão para 1996, apesar da falta de dinheiro. Foi uma reunião afável e o Secretário de Estado prometeu o envolvimento e o apoio do ME.
02.02.96, Barcelona 
Há quatro dias na capital da Catalunha. Intervalo na lufa-lufa de Lisboa, onde descobri, para minha não pequena surpresa, que tenho a tensão arterial elevada (coisa que não me acontecera, até há bem pouco tempo).
A mesma impressão de há cerca de um ano: cidade bela e aprazível de largos e atraentes boulevards. E a Sara: autêntica boneca viva e inteligente. A Geninha arranjou emprego num editor de banda desenhada e desembaraça-se admiravelmente por esta Barcelona fora.
No sábado (anteontem), visita a Besalù e Figueras (terra natal de Salvador Dali). Visita ao Museu Dali, por si próprio planeado, para sua maior glória. Tudo em grande, tudo à dimensão da sua megalomania e do seu incontestável génio (agudamente patológico e alienado – mas génio; ou génio, bem servido pelo agudamente patológico e alienado).
Em Besalù, no restaurante em que almoçámos, deixei, por esquecimento, duas garrafas de um magnífico vinho catalão, que ali tinha adquirido. O que nos forçou a voltar lá, depois da visita a Figueras.
Hoje de manhã, deambulação desenfastiada pelo Passeio Garcia, visita aos Happy Books, onde comprei Lorca, Galdós, Baroja, Julián Marias e Octavio Paz. De Julián Marias, uma Biografia de la Filosofia e um esplêndido La Educación Sentimental (sem falar num volume de artigos de Larra, de que já li um belo texto sobre a literatura espanhola contemporânea dele). Almoço com a Geninha e a A. e visita a uma exposição de Felix Mas, com a Sara acrescentada ao baralho. Felix Mas: uma espécie de síntese de Klimt com pré-rafaelismo. Sedutor, belo, levitantemente subtil, mas só inovador à rebours: porque, hoje, mais ninguém faz daquilo, fazê-lo é infringir, logo, é andar em frente como quem recua…
A Larra, como a Unamuno, doía-lhe a Espanha. A mim, dói-me Portugal e Moçambique. Mas suspeito que a dor deles era em grande: era uma dor em dimensão que os engrandecia. A minha é mesquinha e humilha-me. Saio dela, mais pequeno, mais avinagrado e mais estragado. Não é, em suma, um sofrimento redentor. É um sofrimento morto. Como o das irmãs religiosas do Port-Royal, de Montherlant.
Enquanto a Sara toma banho (benho, como ela diz, na sua pronunciazita deliciosamente distorcida), oiço sonatas de Beethoven, para violoncelo, escrevo estas notas e vou regressar à Educación Sentimental, do Marias. Como é bom ler esta prosa de ideias, cuja vocação visível é a profundidade e a clareza. Nas mãos de um ensaísta português, toda esta riqueza, abundância e sedução dariam em pretensiosismo, confusão e bagunça.

07.02.96, Barcelona 
A nossa visita chega ao fim. Regressamos amanhã a Lisboa e mal chegado, rumarei para o Porto.
Visitámos ontem o novo Museu de Arte Contemporânea (disse, brincando, que era um Museu de Arte Extremamente Contemporânea). A arquitectura é belíssima, limpa, escorreita, de uma simplicidade genial. O conteúdo… Apetece-me, sobretudo, sublinhar uma obra impressionante de Kieffer, que já em Washington me captara o olho e a imaginação. Construtor de apocalipses? Ou apenas reflector (em avanço) dos apocalipses que se avizinham?
De resto, tem sido tudo preguiça, ramblanços e Sara. E pouco mais.
No dia em que chegámos a Barcelona, cruzei-me, na rua, com o Fernando Pessoa. Ou era ele ou era um duplo. Mas acho que era ele.
Num livro de Francisco Umbral, que hoje comprei, num texto dedicado a Ruben Dario, o autor diz, deste, que vivia “congestionado de transcendência”. O mesmo se poderia dizer de Pascoaes, mas acho que muito menos de Pessoa. Pessoa vivia tolhido de “estranheza”, mas não de “transcendência”. Sá-Carneiro, sim. Régio, sim. Fernando Pessoa, duvido. [2015: Régio, sim, disse eu, embora não vivesse exclusivamente de transcendência: havia, nele, “mais mundos”].
Ortega y Gasset a Julián Marias: “Unamuno para usted es un tema. Para mi es un problema.” Muito do discurso literário português é, para mim, mais um problema do que um tema.
10.02.96, Porto (Matosinhos) 
Aqui desde anteontem. O simpósio sobre o neo-realismo começou ontem. Tem sido divertido. Depois de duas interessantes exposições, uma de António Pedro Pitta  (sobre a reflexão estética de João José Cochofel), outra de Rosa Maria Martelo (sobre João José Cochofel e Carlos de Oliveira), intervim, para dizer – um tanto à laia de provocação, mas não só – que, ao lermos os teóricos mais inteligentes e articulados do neo-realismo (Cochofel, Dionísio) e da presença (Régio), afigura-se-me que o conflito entre ambos os movimentos não é assim tão grande. A música que se ouve [nos melhores textos de uns e dos outros] é muitas vezes a mesma. Como Rosa Maria Martelo se referisse à poesia da presença em termos de uma poesia ocupada com o “transcendente”, tive que lhe observar que isso não era bem assim. Que muita da poesia da presença nada tinha que ver com o transcendente e que, mesmo na de Régio, havia “mais mundos”. De resto, era ver como a Igreja, pela pena de Manuel Antunes, “virara”, na atitude tomada com Régio, a partir de A Chaga do Lado: a violência da sátira regiana aos poderes deste mundo (incluindo o da Igreja Católica) tirou, para sempre, aos que tentavam “apanhá-lo”, quaisquer ilusões a esse respeito. [2014: Poderia, nessa altura, ter acrescentado que toda a obra ficcional de Régio estava cheia de observações sobre a vida bem terrena – nada transcendente – de um grande número de personagens masculinos e femininos; e que a sua poesia, repito, nem só de transcendência se alimentava…]
O curioso é que Alexandre Pinheiro Torres me apoiou e Eduardo Lourenço se levantou para, enfaticamente, me contradizer: nada de casamentos póstumos entre a presença e o neo-realismo. O que levou o Alexandre, não sem humor, a responder-lhe que me dava a mim razão, até porque o casamento fora ântumo e não póstumo… O que era, exactamente, o meu ponto. [2014: Nesta altura do prélio, houve um outro incidente curioso, que, na altura, aqui não registei. Já não sei bem quando, “meti-me” com um conceito do Eduardo Prado Coelho, que falava no “imaginário do neo-realismo” (o “imaginário” era, por então, a tarte-à-la-crème do discurso crítico lusíada, em clássica importação de França…) Nesta altura do campeonato, era obrigatório, em conferência ou conversa, falar-se, irreflectidamente, de “imaginário”: imaginário marxista, imaginário capitalista, imaginário presencista, estadonovista e por aí fora. Eu observei, perfidamente, que talvez fosse mais correcto falar-se no “ideário marxista” ou no “ideário neo-realista”, visto que era de ideias e não de imagens que se tratava… O Eduardo Lourenço ficou visivelmente furioso, mas teve a lisura de não responder…]
O Pedro Calheiros veio dizer-me que as Letras da Universidade de Aveiro aprovavam, por unanimidade, a minha nomeação, ou para Professor Visitante ou Professor Convidado. Vamos agora ver as burocracias. Se assim for, estou tentado a mandar às ortigas a Comissão Nacional da UNESCO. [2014: O que se passara fora isto. Pouco antes, eu fora a Aveiro, fazer uma comunicação sobre “as duas culturas”, integrada num colóquio participado por cientistas portugueses residentes (ou tendo residido) no estrangeiro. Estava presente o reitor, Professor Júlio Pedrosa, que, depois de me ter ouvido, me enviou um convite para leccionar na Universidade de Aveiro, como Professor Catedrático (Visitante ou Convidado). Depois de pensar algum tempo, resolvi aceitar.]"
Eugénio Lisboa, in  Acta Est Fabula, Memórias V - Regresso a Portugal (1995-2015), Editora Opera Omnia, pp. 55, 56,57,58,59