"Ou
foi Jesus que traiu Judas? Ninguém pode saber. Se mesmo Deus passa o tempo a
provar que não existe! Pensamentos que fartam a cabeça de Azaria Azar, director
do Cemitério Central. Ideias que endemoniam o juízo do funcionário, outrora
zeloso, agora acabranhado. Verdade é como ninho de cobra: se confirma apanhando
não o ovo, mas a fatal picada.
- “Culpa minha, quem me mandou?” - insiste em aceno de cabeça.
- “Culpa minha, quem me mandou?” - insiste em aceno de cabeça.
Afinal, quem quer fumo tem que juntar palha. Sentado na sombra de um cipreste,
olha a velha Donalena, onde tudo começou. E vai desabrindo os recentes
passados.
1 - Ante e ontem
Azaria Azar se resolveu nessa tarde. Iria interditar Helena Cemitela, a velha
visitadora dos defuntos. Não havia dia que a senhora não visitasse o cemitério,
umas muitas florinhas lhe avulsando no regaço. Donalena, como era chamada,
desomenageava a morte. Como? Ela não sabia qual campa devia honrar. Cada vez se
joelhava numa diferente. Dias havia em que até rezava em mais que dez lápides.
E todas as campas eram, para ela, as do “falecido. Até os coveiros já
suspeitavam se alguma vez chegara de haver algum respectivo dela. Donalena se
perdoava:
- “É que já esqueci bem-bem onde que é”.
A gente nasce grão, morre terra. Donalena, pré-defunta, já cheira a tábua
deitada. Criatura roída pelo tempo, tão escaravelhota que só pode ter saída de
tumba. A velha desafia o Outono: cai a árvore e fica a folha? Entre as campas,
ela se descampa até o céu dessorar, maligno. Só no poente Donalena abandona o
cemitério, fazendo chiar os pesados portões. Nas trevas vai pisando trevos.
Pois naquela tarde, o chefe Azaria chamou a velha e lhe deitou proibição: ela
podia nunca mais ali voltar.
- “Mas eu, agora, já lembrei a campa. Não viu eu rezar ali? Aquela é mesmo a do
meu falecido...
- “Acabou conversa. Já dei ordem nos milícias”.
A velha então desfiou um choro magrinho, soluço de gota caindo em poço seco.
Nem Azaria notou, no começo, que ela chorava.
- “Me deixe vir aqui. É que eu não tenho morto para chorar. Todos tem seus
mortos, só eu que não tenho. Me favoreça, Doutor”.
2 - Ontem, oficialmente
Ontem à tarde, o Vice-Adjunto, Dr. Maurício Salbuquerque, chegou ao cemitério
em sua solene viatura. Vinha na véspera de uma função: homenagear Herói da
Revolução. Procurara candidato, até pagara. Mas não encontrara ninguém, nem
próprio nem parente. Nos tempos de hoje quem quer se apresentar com os louros
vermelhos do leninismo?
Com o director do cemitério se acordou encontrar rápido um candidato a órfão,
viúvo, parente de herói. Azaria lembrou, então, a deslembrada Donalena. Ela
havia de servir que nem peúga. Não fosse a incoincidência: ainda ontem Azaria a
expulsara. Contudo, o Vice-Adjunto insistiu: ele a fosse a procurar, quem sabe
a velha desobedecera?
- “Desobedecer a mim, Excelência? Com o devido respeito, eu só tenho recebido
obediência das instâncias inferiores”.
O Doutor teimou e Azaria lá foi, rarefeito, procurar a improvável doida. Querem
saber? Donalena Cemitela lá estava, soletrando lápides, sempre em busca. Azaria
chamou, ela mal-entendeu e desatou-se. Fugia a sete chãos. Azaria Azar
agarrou-lhe e a conduziu à direcção. O Doutor Maurício olhou a mulher,
antecipando triunfos.
- “Você é esposa do malogrado?
- “Esposa por casamento, sim senhor.
- “Já lhe conheço de nome, isto é, nomeadamente: Donalena. Ora, até está como
convém: Lena rima com quê? Com leninismo!”
E o plano foi instaurado, instantâneo como toda a mentira. Se encontrou uma
campa devidamente incógnita. Se aldrabou lápide, às pressas. E se convenceu a
velha Donalena que seu marido morreu em plenos sacrifícios pela Revolução. E
que ele pacificava ali, naquela precisa tumba. Donalena Cemitela estava sendo
promovida a última dama, viúva nacional.
Quando chegou a comitiva oficial, se apresentou Azaria, portões oleados, muro
pintado de palavras de ordem do proletariado mundial. Foi chamada a viúva.
Houve banda, discurso, tiros de pólvora sonora. Donalena, com vestes de
empréstimo, recebeu as póstumas medalhas. Então, lhe pediram que ela
encabeçasse o desfile fúnebre para a campa do falecido herói. A marcha se
alongou pelos carreiros, respeitosa e lenta. Deu-se uma, duas, três voltas ao
cemitério. Andava-se em vertigem, já alguns murmuravam. O Excelência Máximo
inquiriu solenemente a viúva:
- “Afinal, onde está enterrado o seu falecido?”
A viúva desenhou um gesto vago, circungirando o dedo por todo o cemitério. Seu
marido estava enterrado em todas campas e em cada uma também. Azaria e
Salbuquerque perdiam as falas, afligidos. A Máxima Excelência desentendeu mas
depois abriu um sorriso. “Pois, compreendo-lhe; é uma metáfora: o povo inteiro
é que é herói. Mas agora, camarada viuva, agora necessitamos de uma única
sepultura, apenas a verdadeiramente única”.
- “A verdadeira?!”
Estava ali, bem defronte. E apontou a verdadeira e autêntica. A marcha se
deteve, se depositaram as flores em coroas, se entoaram hinos e orações. Os
máximos prontuaram discurso - que ali jazia, o próprio, o mencionado, o
supracitado. Azaria e Salbuquerque suspiravam alívios. No final, já as oficiais
tristezas se recolhiam de regresso, a viúva puxou de volta a manga do dirigente
máximo. Apontou uma outra campa e disse:
- “Oh, me enganei. Afinal, era aquela!”
E depois outra, outra e outra. Até ao grito final do Excelência. Até à ordem de
despedimento de Azaria e companhia.
3 - Hoje, de novo
Sentado na entrada do seu ex-domínio, Azaria Azar encara a viúva Donalena
desfiando entre as passadeiras. As medalhas lhe tilintam no vestido negro.
Passa-lhe, por momento, a raiva de matar a causadora de sua desgraceira. Vai
congeminando planos: desgargantear a velha? Suspendurá-la em galho? É quando vê
um corvo pousar no ombro de Donalena. Azaria Azar sorri, se levanta e se
encaminha para a idosa mulher. Cavalheiro, lhe oferece o braço e sussurra:
- “Eu lhe guio Donalena, eu lhe mostro a sua campa."
Mia Couto, em Contos do nascer da Terra, Editorial Caminho
Mia Couto, em Contos do nascer da Terra, Editorial Caminho
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