JOSÉ
RÉGIO 45 ANOS DEPOIS
Por Eugénio
Lisboa
“Falecido, fez há
escassas semanas 45 anos, poucos grandes escritores portugueses terão legado à
posteridade uma herança tão poliédrica, tão diversa, tão rica, tão
contraditoriamente provocante ou desafiante, como o autor desse poderoso
romance que se intitula Jogo da Cabra Cega. De não muito lhe tem valido tal
riqueza, numa república das letras onde impera, como nunca, a leviandade, o
atrevimento provinciano, a glo-glória gulosamente abocanhada ao sair do ovo, as
obras completas e encadernadas aos quarenta e pouco e uma máquina publicitária
bem montada e bem oleada, que impõe reputações como quem promove automóveis
topo de gama. Quando penso em certas glórias hoje trombeteadas, promovidas, televisionadas
e multiplamente apaparicadas, ocorre-me a asserção do inestimável Daniel
Boorstin: “Alguns nascem grandes, alguns ascendem à grandeza e ainda alguns
contratam oficiais de relações públicas.” Estas, as relações públicas,
substituem, com assinalada vantagem, os clássicos aferidores de mérito. A
glória tornou-se um “produto” do mercado: inventa-se, promove-se, vende-se e
compra-se. Nisso tudo, o mérito é o menos relevante. Tornar alguém famoso e
vendável, da noite para o dia, é uma profissão nova e rendosa.
Nascido, mal acabara de
acabar o século XIX, José Maria dos Reis Pereira, que se celebraria
literariamente com o nome de José Régio, entrou ambiguamente num século XX que,
a um tempo, perscrutou, assimilou e questionou. Pouco dado a modas e a “ismos”,
embora empurrado a contragosto, por alguns, para o modernismo, José Régio iria,
desde muito cedo, tornar-se dono de si mesmo, asperamente e insubornavelmente
independente, visitando as artes modernas e os seus vários “ismos”, mas não se
deixando nunca inserir, redutoramente, em escolas, movimentos ou “lobbies”,
fossem estes de que cariz fossem. Aliás, nenhum verdadeiro criador cabe nunca,
inteiro, numa escola ou movimento, isto é, jamais se deixa reduzir às
coordenadas limitadoras de um qualquer “ismo”: nem Flaubert cabe, completo, no
realismo, nem Stendhal no romantismo, nem Pessoa no Orpheu(ismo). Ao agredir-se
os da presença, tem-se tentado confiná-los num alegado “psicologismo”, no qual
abundantemente se cospe. Ora, em primeiro lugar, se a psicologia assenta bem em
Proust, não se vê por que assentará mal em Régio ou Branquinho ou Simões. Em
segundo lugar, reduzir a criação presencista ao reino do psicológico é pura e
simplesmente tresler ou não ler os textos em apreço. Na obra de Régio, há
psicologia, sociologia, política, misticismo, mitologia, observação minuciosa
da realidade exterior (incluindo a caricatura e a sátira), compaixão com a
miséria humana, filosofia da arte e por aí fora. Nem só de psicologia viveu a
presença, como nem só de realismo ou de naturalismo vivem as obras de Flaubert
ou Zola. Pessoa não teve que ver apenas com o Orpheu e Almada excedeu
folgadamente as zaragatas anti-Dantas (aliás bem piores do que o Dantas) e
outras do mesmo gosto. Todo o grande criador transcende sempre a pífia medalha
em que gostam de o fixar. O problema
de Régio e de outros grandes escritores portugueses não é um problema dele – é
um problema nosso, de nós, seus herdeiros. A maioria das pessoas – mesmo os
críticos e os emissores de opinião – não lêem de um modo geral os textos sobre
que se pronunciam: lêem, de preferência, o que outros disseram deles. E estes,
por sua vez, fizeram exactamente o mesmo, numa eterna leitura em segunda,
terceira ou quarta mão. De modo que os mal-entendidos se perpetuam ao sabor do
tempo. Dizia Rilke que “a fama é o agregado de todos os mal-entendidos que se
coligem à volta de um nome.” Neste gosto de simplificar, para uso rápido e mais
ou menos mundano, Régio é “psicólogo”, Torga é “telúrico”, Aquilino é
“palavroso” e Pessoa “heteronímico”. Simplesmente, cada um deles é muito mais e
mais complicadamente do que aquilo a que o querem reduzir. O nosso problema com
qualquer destes figurões é termos que os ler, se os quisermos conhecer. Como
têm, por outro lado, uma obra vasta, rica e contraditória, lê-los em diagonal
ou de ouvido não dá. É mesmo preciso lê-los, no seu todo, com atenção e
minúcia. Mas, neste mundo de informação aos baldes, navegase, de preferência, à
superfície das obras e a grande velocidade, o que não é bem o mesmo que
frequentá-las a sério. Resumindo muito e com alguma crueldade, Régio não se
serve em pastilhas para consumo fácil e distraído. E nem sequer é ele o único
esquecido e mal lido. Quem lê, hoje, o que se chama ler, Teixeira-Gomes,
Sá-Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Raul brandão, Afonso Duarte, Marmelo e
Silva, Domingos Monteiro, João de Araújo Correia, Maria Judite de Carvalho,
Irene Lisboa, José Rodrigues Miguéis e por aí fora? Os nossos jovens génios
pensam que a literatura portuguesa começou no mês passado, com o aparecimento
surpreendente de um romance de um amigo talentoso e só um nadinha analfabeto ou
com um livrinho de poemas muito infractores de uma amiga com imenso ímpeto e só
um bocadinho inculta, tudo gente que um prémio qualquer apaparicou e catapultou
para a glo-glória. Ora, uma ideia luminosa, em matemática ou em física, pode
ter.se aos vinte e poucos anos, mas a cultura leva muitas décadas a adquirir. O
que falta nas avaliações irresponsáveis e hiperbólicas - e quase sempre
amnésicas – que por aí pululam é uma sólida base cultural (com alguma saudável
formação filosófica, pelo meio) que, por isso mesmo que não existe, catapulta
para a ribalta mediocridades e inépcias que só a ignorância pode apadrinhar.
José Régio, uma das
grandes figuras da cultura portuguesa, não só do século XX, mas de toda a nossa
história literária, é hoje quase totalmente ignorado por uma geração à qual o
“surfing” leviano pelas informações sem dono, na Internet, tornou inapta para
as sondagens em profundidade, a que a obra do autor de Histórias de Mulheres
naturalmente convida.
Grande poeta, grande
ficcionista, grande dramaturgo, grande ensaísta e crítico literário, o autor
paciente e obstinado de A Velha Casa, de Benilde ou A Virgem-Mãe, de Mas Deus É
Grande e de tantas páginas seminais consagradas a Camões, Camilo, SáCarneiro,
Florbela, Pascoaes, Raul brandão, António Botto, Fernando pessoa, Eça, António
Sérgio, Aquilino e tantos outros, configura uma riqueza de sondagens, de
ideias, de emoções
plasmadas numa linguagem de uma clareza perturbante e perturbada por sombras
abissais, que só uma superficialidade militante pode desdenhar. Mas a
desatenção, o palrar inconsequente, a vaidade provinciana de se exibir o último
produto da feira cultural “lá de fora”, o contentismo primário com a glo-glória
misteriosamente surgida e promovida pelo departamento de imagem em vigor – tudo
isto foi ampla e certeiramente castigado pelo autor de Jacob e o Anjo. Também
por isso tem pago um preço alentado.
Régio deixa-nos um legado de muitas
componentes, uma das quais, talvez a mais valiosa, é também a mais incómoda:
foi-o para ele e sê-lo-á, por certo, para quem a receber como testemunho e
ideário – refiro-me ao seu inegociável espírito de independência: ao seu ser
capaz de dizer “não” quando isso foi o que sentiu ter que dizer, mesmo quando
lhe não conviesse dizê-lo. Régio, por outras palavras, nunca lisonjeou os
“lobbies” de serviço, em cada momento da sua trajectória: nem os neorealistas –
de quem até nem desgostava – no tempo em que estes dominavam o mercado
cultural, nem os surrealistas, nem os dos Cadernos de Poesia, nem os
concretistas, nem os católicos, nem os ateus, nem os jovens que o adulavam e a
quem ele sempre recusou adular, nem nenhum dos diversos “ismos” que
invariavelmente apareciam armados da convicção de terem finalmente encontrado a
“pedra filosofal”. Dotado de uma “razão” forte, que, aliás, não pouco o
incomodava, Régio acantonava-se num cepticismo desconfiado, sabendo muito bem o
que duram, em termos de “solução definitiva”, todos esses fulgores, raios e
disparos, frequentemente pouco apoiados num sério reflectir.”
Eugénio
Lisboa , em “Comunicação
apresentada no Instituto de Estudos Académicos para Séniores no ciclo
Literatura Portuguesa: Leituras do Século XXI, a 19 de Janeiro de 2015”
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