CATALUNHA
por Fernando Pessoa
"Dos problemas que hoje agitam e perturbam a indisciplinada vida da Europa, o problema do separatismo catalão é talvez o que mais flagrantemente foca o conflito fundamental que se trava hoje no mundo, e, portanto, aquele que mais curiosos ensinamentos contém.
No pleito, que o Destino faz que se digladie entre a Espanha e a Catalunha, há o facto essencial de todos os dramas. Como em todos os dramas, um momento criado pelo Destino, mas segundo inevitáveis resultados de um passado surdamente se acumulou, faz entrar em conflito forças e ideias que é absurdo que entrem em conflito, que é doloroso que se encontrem em guerra Como em todos os dramas, não há solução satisfatória para problema, porque a única arbitragem certa, e por isso injusta, é a do Destino. E como em todos os dramas, ambas as partes têm igual razão.
O conflito entre a Catalunha e a Espanha é o conflito entre o conceito nacional de país, e o conceito civilizacional de país. Um conceito é geográfico, supõe-se ser étnico, e afirma-se como linguístico. O outro conceito é histórico, supõe-se ser imperialista e afirma-se como cultural.
Do ponto de vista nacional, e exclusivamente nacional, a Catalunha é uma nação, um país, com índole própria, tendências especiais, com um idioma à parte, que as define, e uma aspiração, que as deseja.
Não é uma pseudonação como, por exemplo, a Bélgica ou a Suíça, a que falta, logo de princípio, a base linguística para mostrar ao mundo que tem personalidade. Não é uma nação artificial, como os Estados Unidos da América, onde a unidade linguística não exprime mais que uma tradição de colonização, sem bases em uma cultura própria, nem psique nacional a que corresponda. Não é uma nação morta, como a Irlanda, em que a [...]
Não é uma região espiritualmente conquistada, como as províncias da Alsácia e Lorena, originalmente germânicas, e que Luís XIV roubou à Alemanha, que Bismarck depois (de modo territorialmente legítimo) reaveu para a Pátria, e que hoje passam outra vez para as mãos do usurpador que as conquistara espiritualmente.!
[...]
A Catalunha está para a Espanha exactamente como a Provença para a França. Em ambos os casos a nação cultural se sobrepôs às nações naturais.
Quem da posteridade saberá, salvo só por sabê-lo, que houve catalão, que houve provençal, ou, mesmo, que houve holandês ou qualquer das línguas escandinavas? Ninguém. Só as línguas imperiais sobrevivem. Só as línguas dos povos que criam império têm direito ao futuro, e, portanto, ao presente nacional. Nós portugueses, somos um povo pequeno, mas somos um povo imperial, cuja língua alastrou por sobre o mundo, que criámos civilização, e não simplesmente a vivemos.
Por que razão deve Catalunha viver subordinada a Castela? Pela razão de que [...]
Ingleses, franceses, italianos, alemães, espanhóis, portugueses — todos criámos civilização, os outros viveram a civilização que qualquer de nós criou. A maior conquista que os impérios fazem é a conquista da posteridade. A conquista da posteridade, a língua imperial a grava nos muros da eternidade, a latteras de fogo. A Holanda quase que criou civilização mas a sua obra histórica, de relevo comercial e não cultural, não teve força para subsistir culturalmente. É como se não houvesse existido. Só os Bóeres, na extrema África, a registam. São óptimos lavradores e lêem a Bíblia todos os domingos. Vivi e sei, infelizmente.
[...]
A Catalunha, porém, só tem que escolher entre as desvantagens menores da sua integração, como até aqui em Espanha, embora, porventura, com outras regalias, e as desvantagens maiores da sua independência absoluta. Ninguém na Ibéria lhe dá licença que escolha a terceira, a ignóbil hipótese, que seria a união com a França, a que parece secretamente visar parte da tendência catalanista."
Fernando Pessoa, in Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.- 19, -20. -21.
Muito curiosa e instigante esta visão geo-política de Fernando Pessoa.Seria interessante, considerando a sua colocação sobre o conceito linguístico e cultural, saber como ele colocaria, ante os quatro idiomas vivos na Espanha, ainda que politicamente não se trate de separatismo, a posição da Galícia e, sobretudo, do país Basco.
ResponderEliminarEmbora brasileiro, minhas raízes ibéricas me chamam para opinar.
Manoel de Andrade
Manoel,Fernando Pessoa escreve tambèm:"Os problemas ibéricos são três, no que respeita a problemas internos:
ResponderEliminarOs problemas ibéricos são três, no que respeita a problemas internos:
(1) A remodelação do estado espanhol, reavendo-se Gibraltar.
(2) A integração do estado português, pela reintegracão de Albuquerque e Olivença, e a anexação da Galiza.
(3) A aliança ibérica, como defesa do comum solo espiritual, invadido culturalmente pela França, e dividido territorialmente pela política da Inglaterra.
Já o problema da Galiza se não assemelha ao problema catalão. O incerto separatismo galego também não pode visar a independência da região, mas já pode visar, sem crime de lesa-Ibéria, a integração no estado português. Há tantas razões para a Galiza ser região espanhola, como para ser parte de Portugal (não digo “região portuguesa”, porque Portugal é uno). Integrada na Espanha, a Galiza segue uma continuidade histórica e não perde pé no valor civilizacional. Integrada em Portugal, fica parte do estado a que por natureza e raça pertence, e também não perde pé no valor civilizacional, porque passa a ser parte de outra nação europeia definida civilizacionalmente.
A Catalunha, porém, só tem que escolher entre as desvantagens menores da sua integração, como até aqui em Espanha, embora, porventura, com outras regalias, e as desvantagens maiores da sua independência absoluta. Ninguém na Ibéria lhe dá licença que escolha a terceira, a ignóbil hipótese, que seria a união com a França, a que parece secretamente visar parte da tendência catalanista.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980. - 21.