quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Poema do Silêncio

Poema do Silêncio
Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, manietado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.
José Régio, in As encruzilhadas de Deus, Portugália, 1957

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Carta a um poeta

Carta a um poeta
por Fernando Pessoa 

Meu caro poeta:
"Escrevo-lhe a desoras da Delicadeza. Há meses que o Luís de Montalvor me fez chegar aos olhos o seu Livro. Embora o lesse sem tardança, tenho demorado o agradecimento para além dos limites que se usam. A licença poética não admite tanto. Eu tenho abusado do direito concedido aos camaradas de responder longe de propósito. Começo a minha carta por lhe pedir as desculpas a que este adiamento obriga.
Não sei que lhe diga do seu livro, que seja bem um ajuste entre a minha sensibilidade e a minha inteligência. Ele é deveras a obra de um Poeta, mas não ainda de um Poeta que se encontrasse, se é que um Poeta não é, fundamentalmente, alguém que nunca se encontra. Há imperfeições e inacabamentos nos seus versos. Vêem-se ainda entre as flores as marcas das suas passadas. Não se deveriam ver. Do poeta deve ser o ter passado sem outro vestígio que a presença das rosas. Para quê os ramos quebrados, ainda, e partido o caule das violetas?
Eu não lhe devia dizer isto, talvez, sem prefaciar que sou o mais severo dos críticos que tem havido. Exijo a todos mais do que eles podem dar. Para que lhes havia eu de exigir o que cabe na competência das suas forças? O poeta é o que sempre excede o que pode fazer.
O seu livro é dos mais belos que recentemente tenho lido. Digo-lhe isto para que, não me conhecendo, me não julgue posto sobre a severidade sem atenção às belezas do seu livro. Há em si o com que os grandes poetas se fazem. De vez em quando a mão do escultor faz falar as curvas nuas da sua Matéria. E então é o seu poema sobre o “Cais”, e o seu “Outono”, e este e aquele verso, caído dos deuses como o que é azul no céu nos intervalos da tormenta. Exija de si o que sabe que não poderá fazer. Não é outro o caminho da Beleza.
Eu detalho.
Tenho vivido tantas filosofias e tantas poéticas que me sinto já velho, e isto faz com que me dê o direito de o aconselhar, como Keats a Shelley, que esteja de vez em quando com as asas fechadas. Há um grande prazer estético às vezes em deixar passar sem exprimir uma emoção cuja passagem nos exige palavras. Dos nossos jardins interiores só devemos colher as rosas mais afastadas e as melhores horas e fixar só aquelas ocasiões do crepúsculo quando dói demasiado sentirmo-nos. Nenhum poeta tem o direito de fazer versos porque sinta a necessidade de os fazer. Há só a fazer aqueles versos cuja inspiração é perfumada de imortalidade.
Escrevo e paro. Pergunto a mim-próprio se poderá julgar tudo isto, porque não é transbordante de elogios, uma crítica adversa. Não o conheço e não sei. Mas repare que só a quem muito aprecio eu escrevo destas coisas. Decerto me faça justiça de crer que a quem não tem nenhum valor eu digo imediatamente que tem muito. Só vale a pena notar os erros dos que são na verdade Poetas, daqueles em quem os erros são erros. Para que notar os erros daqueles que não têm em si senão o jeito de errar?
Com tudo isto, que parece hesitante no elogio, repito-lhe que o seu livro é dos mais belos que ultimamente tenho lido. A sua imaginação, doentia e delicada, é uma princesa que olha das janelas o luxo longínquo dos tanques. Vejo que sente os repuxos. Eles são com efeito as melhores horas da água, e decerto que os mais belos são aqueles, em jardins ainda do século dezoito (e que nós nunca poderemos ver) .
A sua sensibilidade dói-me. Por certo que outrora nos encontrámos e entre sombras de alamedas dissemos um ao outro em segredo o nosso comum horror à Realidade. Lembra-se? Tinham-nos tirado os brinquedos, porque nós teimávamos que os soldados de chumbo e os barcos de latão tinham uma realidade mais preciosa e esplêndida que os soldados-gente e os barcos reais. Nós andámos longas horas pela quinta. Como nos tinham tirado as coisas onde púnhamos os nossos sonhos, pusemo-nos a falar delas para as ficarmos tendo outra vez. E assim tornaram a nós, em sua plena e esplêndida realidade — que paga de seda para os nossos sacrifícios! — os soldados de chumbo e os barcos de latão; e através das nossas almas continuaram sendo, para que nós brincássemos com eles. A hora (não se recorda?) essa era demasiado certa e humana. As flores tinham a sua cor e o seu perfume de soslaio para a nossa atenção. O espaço todo estava levemente inclinado, como se Deus, por uma astúcia de brincadeira, o tivesse levantado do lado das almas; e nós sofríamos a instabilidade do jogo divino como crianças que apreciam as partidas que lhes fazem, porque são mostras de afeição. Foram belas essas horas que vivemos juntos. Nunca tornaremos a ter essas horas, nem esse jardim, nem os nossos soldados e os nossos barcos. Ficou tudo embrulhado no papel da seda da nossa recordação de tudo aquilo. Os soldados, pobres deles, furam quase o papel com as espingardas eternamente ao ombro. As proas dos barcos estão sempre para romper o invólucro. E sem dúvida que todo o sentido do nosso exílio é este — o terem-nos embrulhado os brinquedos de antes da Vida, terem-nos posto na prateleira que está exactamente fora do nosso gesto e do nosso jeito. Haverá uma justiça para as crianças que nós somos? Ser-nos-ão restituídos por mãos que cheguem aonde não chegamos os nossos companheiros de sonho, os soldados e os barcos? Sim, e mesmo nós próprios, porque nós não éramos isto que somos... Éramos duma artificialidade mais divina...
Escrevo e divago, e tudo isto parece-me que foi uma realidade. Tenho a sensibilidade tão à flor da imaginação que quase choro com isto, e sou outra vez a criança feliz que nunca fui, e as alamedas e os brinquedos, e apenas, no fim de tudo, a supérflua realidade da Vida...
Perdoe-me que lhe escreva assim... A Vida, afinal, vale a pena que se lhe diga isto. Deus escuta-me talvez, mas de si ouve, como todos que escutam. A tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que a escrevesse..."
1914?
Fernando Pessoa , in "Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa", (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966, - 135.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Ao Domingo Há Música

O Olhar

Eu sentia os seus olhos beber os meus;
longamente bebiam, bebiam; bebiam
bebiam 
até não me restar nas órbitras nenhuma
luz, nenhuma água,
nem sequer o sinal de neles ter chovido 
naquele inverno.
Eugénio de Andrade , "Rente ao Dizer"


Todas as histórias de amor têm poesia e música . Há quem as teça. Há quem as viva e há quem as imortalize. 
Eis uma inesquecível  composição da autoria do pianista e compositor  francês, Francis Albert Lai, laureada com um Oscar, em 1970,   banda sonora do filme que encheu, de emoção, as telas dos cinemas mundiais :  Love Story. 
LoLa  e Hauser fazem  uma notável  interpretação deste tema.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Literatura e Vida

James Wood. Literatura e vida, ou um crítico entre fronteiras
Por Vamberto Freitas
"Ler um ensaísta e crítico como James Wood está longe de ser apenas um encontro com outras obras, ele eleva a sua escrita a uma arte singular, fornecendo-nos todo o prazer dos grandes textos


"The Nearest Thing To Life" (O Mais Próximo da Vida) é o mais recente livro do crítico e romancista James Wood, britânico imigrado nos Estados Unidos desde 1995, onde desde há muito ocupa um destacado espaço no ensaísmo literário daquele país, hoje escritor residente de The New Yorker e Professor Convidado na Harvard University, autor de vários outros livros de ensaios, e um romance com o título de "The Book Against God". Os últimos anos têm sido ricos em reflexões sobre o acto crítico em si próprio, as novas realidades editoriais e infiltrações virtuais, que rivalizam com tudo o resto nas solicitações de atenção por parte de quase todos e todas, muito particularmente nas artes, incluindo a literatura, provocam dúvidas, e sobretudo dúvidas se ainda permanece alguém no outro lado, no lado da recepção, se ainda alguém da classe culta se interessa por ler sobre o acto de ler e apreciar a obra alheia.
Dois ensaístas críticos do The New York Times, Adam Hirsch e Charles McGrath, regressaram ao tema numa edição recente do respectivo suplemento literário, mas desta vez perguntando se, dado a proliferação de “críticos” literários nas redes sociais e noutros meios de divulgação, como as páginas da  Amazon, se são todos “qualificados” para tal, “Is Everyone Qualified to Be a Critic?” Nem um nem outro se manifestou minimamente preocupado com a “concorrência”, digamos assim, maciça e “polissémica”, apenas reafirmando o que fazem e como o fazem, relembrando a todos que “opiniões” poderão estar muito bem informadas, e outras meros palpites instintivos do momento.
A crítica séria é um diálogo com os leitores que a aceitam e apreciam sobre como um livro nos toca, e porquê, nos ensina ou nos dá o prazer quase transcendente, espiritual, diria, que só as artes nos proporcionam, como o autor ou autora manipula ou reinventa linguagens, dando-lhes novos significados, fazendo surgir imagens inesperadas, dando musicalidade, tonalidade, ao que na escrita de outros não passaria de ronco lexical e gramatical. A crítica, como nos dois escritores aqui citados, preocupa-se cada vez menos em ser judicativa, negativa ou panegírica, e fala do que num determinado livro nos faz aderir, apreciar, aprender, partilhar o que estética e tematicamente nos move e, uma vez mais, nos comove.
Os ensaios em "The Nearest Thing To Life", resultaram de lições, conferências e escritos vários do seu autor, todos eles intercalando a sua experiência de vida com a leitura e análise das mais representativas obras da língua inglesa, e particularmente da literatura contemporânea americana e “do mundo”, aquela que nos anos 90 já a revista Time chamava de New World Fiction/Nova Ficção Mundial, com Salman Rushie então no centro. Um dos temas mais acutilantes neste pequeno livro de alma grande é precisamente a partida do seu país natal, a Inglaterra, para a América, e o que isso implicou e implica na sua visão das coisas, no seu estado de espírito constante, no estar e tentar ser a meio dessa ponte, olhando permanentemente os dois extremos, o sentido de pertença para sempre perdido num lugar e nunca encontrado no outro, as raízes que secam ou se transformam, o estranhamento perpétuo na terra nova, mesmo já com filhos lá nascidos e inteiramente integrados, as suas linguagens algo para além de toda a memória dos próprios pais.
Wood surpreende-me aqui, afinal foi da Terra-Mãe para a Terra-Filha, só que a língua parece comum mas já significa só retalhos da memória, nem um apito do comboio, que deveria ser o mesmo em toda a parte, o faz sentir o que outrora sentia nos trilhos do outro lado do mar. Por certo que a experiência de um escritor nosso nos EUA pouco teria a ver com a de um britânico transplantado e aparentemente integrado, mas Wood fez-me lembrar de imediato o poema de Jorge de Sena, “Noções de Linguística”, em que ele ouve os seus filhos noutra língua, e lamenta a história que o “distancia” de tudo e todos, a consciência magoada de ser estranho em terra estranha. O equilíbrio transfronteiriço é uma luta perpétua, muito para além da língua e de toda a cultura ou de todos os costumes, a força das raízes desmente os supostos cosmopolitas, quase sempre auto-inventados nas classes mais abastadas, mas com necessidade de intelectualizar a sua (in)existência.
“Edward Said -- escreve James Wood sobre o falecido grande escritor e ensaísta literário palestiniano, que viveu boa parte da sua vida nos EUA, e foi Professor Catedrático de Literatura na Columbia University – diz que não é surpresa nenhuma que os exilados são frequentemente romancistas, jogadores de xadrez, intelectuais. 'O novo mundo dos exilados, muito logicamente, não é natural, e a sua irrealidade assemelha-se à ficção'. Ele recorda-nos que Georg Lukács considerava o romance como o grande género do que Lukács chama 'desenraizamento [homelessness] transcendental'. Eu certamente que não sou um exilado, mas por vezes é-me difícil afastar a 'irrealidade/unreality' de que fala Said. Vejo os meus filhos a crescerem como americanos da mesma maneira como sobre isso eu poderia ler, ou inventar, personagens fictícias. Eles não são fictícios, claro está, mas o seu americanismo pode de quando em quando parecer-me irreal”.
A prosa se James Wood tem a qualidade do intelectual público absolutamente dedicado à vocação de leitor omnívoro em busca de prazer, mas sobretudo de sentido para as vidas que são as nossas, o olhar atento ao espelhado reflexo complexo e complicado em que se pode tornar a melhor literatura. São, estes, ensaios cheios de referências aos seus antecessores em vários continentes e línguas, com especial ênfase para romancistas e poetas que também deram conta das suas leituras, e como, desde Baudelaire e Walter Benjamin a Joseph Brodsky e Zadie Smith, contrapondo estes e outros nomes internacionais a certa crítica, relembrando ainda que desde a Nova Crítica americana dos anos 40 e 50 toda a teoria da literatura procurou em vão, e por vezes com efeitos nefastos para a literatura em geral, “obter um estatuto pseudo-científico”.
Ler um ensaísta e crítico como James Wood está longe de ser apenas um encontro com outras obras, ele eleva a sua escrita a uma arte singular, fornecendo-nos todo o prazer dos grandes textos. Intitula, uma vez mais, o último capítulo do seu livro “Secular Homelessness/Desenraizamento Secular”, em que dá conta e contextualiza os escritores internacionais pós-coloniais, vindos um pouco de toda a parte e hoje residentes nas mais importantes metrópoles do Ocidente. Dá voz, sem necessariamente partilhar a mesma opinião, aos que acusam muitos destes escritores e escritoras de terem esquecido as suas origens, e escreverem agora para o grande público, a política e o historicismo acusador cada vez mais ausente da sua prosa. A verdade é que são estes autores da ficção mundial que continuam a transfigurar o novo mundo em que todos nos situamos, o desenraizamento deixando de ser a condenação histórica e exclusiva dos que deixaram e deixam o seu território pátrio, para nos engolir a todos.
O estranhamento de que nos fala Wood nas suas páginas, e por ele sentido ante os seus filhos na América de hoje, é talvez aquele que todos nós sentimos nas nossas próprias sociedades, em mutação constante e, para muitos, psicologicamente, espiritualmente, violenta. Parafraseando e subvertendo Fernando Pessoa – não sou daqui como já não sou de parte nenhuma. É a esta temática, precisamente, que boa parte da literatura contemporânea se encarrega de dar forma e sublimação. No inevitável aconchego entre o crítico e a obra, James Wood rejeita o ensaísmo que se mantém no “exterior” do texto, pleno de citações, tornado mero exercício pretensiosamente explicativo. Ele penetra o texto alheio, num olhar sereno de dentro para fora."
Vamberto Freitas,  Jornal i,  09/02/2017

James Wood, The Nearest Thing To Life, London, Jonathan Cape/Penguin Random House UK, 2015. 

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Catalunha

Fernando Pessoa,(13 Junho de 1888- 30 Novembro 1935)
CATALUNHA
por Fernando Pessoa
"Dos problemas que hoje agitam e perturbam a indisciplinada vida da Europa, o problema do separatismo catalão é talvez o que mais flagrantemente foca o conflito fundamental que se trava hoje no mundo, e, portanto, aquele que mais curiosos ensinamentos contém.
No pleito, que o Destino faz que se digladie entre a Espanha e a Catalunha, há o facto essencial de todos os dramas. Como em todos os dramas, um momento criado pelo Destino, mas segundo inevitáveis resultados de um passado surdamente se acumulou, faz entrar em conflito forças e ideias que é absurdo que entrem em conflito, que é doloroso que se encontrem em guerra Como em todos os dramas, não há solução satisfatória para problema, porque a única arbitragem certa, e por isso injusta, é a do Destino. E como em todos os dramas, ambas as partes têm igual razão.
O conflito entre a Catalunha e a Espanha é o conflito entre o conceito nacional de país, e o conceito civilizacional de país. Um conceito é geográfico, supõe-se ser étnico, e afirma-se como linguístico. O outro conceito é histórico, supõe-se ser imperialista e afirma-se como cultural.
Do ponto de vista nacional, e exclusivamente nacional, a Catalunha é uma nação, um país, com índole própria, tendências especiais, com um idioma à parte, que as define, e uma aspiração, que as deseja.
Não é uma pseudonação como, por exemplo, a Bélgica ou a Suíça, a que falta, logo de princípio, a base linguística para mostrar ao mundo que tem personalidade. Não é uma nação artificial, como os Estados Unidos da América, onde a unidade linguística não exprime mais que uma tradição de colonização, sem bases em uma cultura própria, nem psique nacional a que corresponda. Não é uma nação morta, como a Irlanda, em que a [...]
Não é uma região espiritualmente conquistada, como as províncias da Alsácia e Lorena, originalmente germânicas, e que Luís XIV roubou à Alemanha, que Bismarck depois (de modo territorialmente legítimo) reaveu para a Pátria, e que hoje passam outra vez para as mãos do usurpador que as conquistara espiritualmente.!
[...]
A Catalunha está para a Espanha exactamente como a Provença para a França. Em ambos os casos a nação cultural se sobrepôs às nações naturais.
Quem da posteridade saberá, salvo só por sabê-lo, que houve catalão, que houve provençal, ou, mesmo, que houve holandês ou qualquer das línguas escandinavas? Ninguém. Só as línguas imperiais sobrevivem. Só as línguas dos povos que criam império têm direito ao futuro, e, portanto, ao presente nacional. Nós portugueses, somos um povo pequeno, mas somos um povo imperial, cuja língua alastrou por sobre o mundo, que criámos civilização, e não simplesmente a vivemos.
Por que razão deve Catalunha viver subordinada a Castela? Pela razão de que [...]
Ingleses, franceses, italianos, alemães, espanhóis, portugueses — todos criámos civilização, os outros viveram a civilização que qualquer de nós criou. A maior conquista que os impérios fazem é a conquista da posteridade. A conquista da posteridade, a língua imperial a grava nos muros da eternidade, a latteras de fogo. A Holanda quase que criou civilização mas a sua obra histórica, de relevo comercial e não cultural, não teve força para subsistir culturalmente. É como se não houvesse existido. Só os Bóeres, na extrema África, a registam. São óptimos lavradores e lêem a Bíblia todos os domingos. Vivi e sei, infelizmente.
[...]
A Catalunha, porém, só tem que escolher entre as desvantagens menores da sua integração, como até aqui em Espanha, embora, porventura, com outras regalias, e as desvantagens maiores da sua independência absoluta. Ninguém na Ibéria lhe dá licença que escolha a terceira, a ignóbil hipótese, que seria a união com a França, a que parece secretamente visar parte da tendência catalanista."
Fernando Pessoa, in Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.- 19, -20. -21.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Memórias de Virgínia Woolf

"Há dois dias - domingo, 16 de Abril de 1939, para ser mais exacta -, Nessa disse que, se começasse a escrever as minhas memórias , em breve seria demasiado velha; teria oitenta e cinco anos e estaria muito esquecida: basta lembrar o infeliz caso de Lady Strachey. Uma vez que estou farta  de escrever a vida de Roger, talvez dedique duas ou três manhãs a elaborar um esboço. Enfrento várias dificuldades. Em primeiro lugar, a enorme quantidade de coisas de que me consigo recordar; em segundo, as várias e diferentes maneiras que existem de escrever memórias. Como leitora assídua de memórias, conheço muitas formas diversas.  Todavia, se começo a percorrê-las  e a analisá-las , bem como aos seus méritos  e falhas, as manhãs - não posso despender de  mais  do que duas ou três , no máximo - passar-se-ão. Então,  sem parar para escolher o meu caminho, segura de que ele acabará por surgir  - e, caso isso não suceda , não importa -, começo : a primeira recordação.
É de flores vermelhas e roxas  sobre um fundo preto: o vestido da minha mãe; e ela estava sentada num comboio ou num autocarro, comigo ao colo. Via, portanto, de perto as flores do vestido que ela usava; ainda consigo ver o roxo, o vermelho e o azul, parece-me , contra o preto; acho que deviam ser anémonas. Talvez fôssemos  para St. Ives; se bem que, a julgar pela luz , devia ser de noite , portanto, o mais provável era que estivéssemos  de regresso a Londres. Não obstante, por razões artísticas ´, é mais conveniente supor que íamos para St.Ives, pois isso  conduzirá à minha recordação seguinte, que parece ser também a primeira, sendo, na realidade, a mais importante de todas as minhas recordações. Se a vida possui uma base  sobre a qual se ergue , se é uma vasilha que se enche e  enche e enche, então a minha vasilha  ergue-se, sem dúvida, sobre esta recordação. A de estar deitada , meio adormecida, meio acordada , na cama do quarto das crianças, em ST Ives. A de escutar as ondas rebentarem, uma, duas , uma,duas, salpicando a praia., e rebentar , uma , duas, uma duas, por trás  de um estore amarelo. A de ouvir  o estore arrastar o cordão pelo chão quando o vento o puxava para fora. A de estar deitada e escutar a água  e ver a luz e sentir: parece quase impossível que esteja aqui; de sentir o mais puro êxtase que sou capaz de conceber.
Poderia passar horas a tentar escrever isso como deveria ser escrito, a fim de  transmitir o sentimento que, mesmo neste momento, continua muito forte dentro de mim. Contudo, não seria bem-sucedida ( a menos que tivesse uma sorte fantástica); atrevo-me a dizer que apenas seria bafejada por tal sorte se tivesse começado por descrever a própria Virgínia.
E aqui me deparo com uma das dificuldades dos autores de memórias, uma das razões pelas quais, embora eu tenha lido inúmeras, tantas fracassaram. Deixam de fora a pessoa a quem as coisas aconteceram. Tal deve-se ao facto de ser tão difícil descrever qualquer ser humano. Dizem então: " Isto é o que sucedeu", mas não descrevem como era a pessoa sobre quem recaem tais acontecimentos. E esses acontecimentos pouco valem a não ser que conheçamos primeiro a pessoa por detrás deles. Quem era eu então? Adeline Virgínia Stephen, a segunda filha de Leslie e Julia Prinseo Stephen, nascida a 25 de Janeiro de 1882, descendente de um grande número de pessoas, algumas famosas, outras obscuras; nascida no seio de uma grande rede de conhecimentos, nascida não de pais ricos, mas de pais remediados, nascida num mundo de finais do século XIX, um mundo muito comunicativo, letrado, epistolar, que apreciava fazer visitas e sabia exprimir-se; de tal maneira que, se quisesse dar-me a esse trabalho, poderia escrever muito aqui, não só sobre  a minha mãe  e o meu pai, mas também sobre tios e tias, primos e amigos. No entanto, ignoro quanto disso , ou que parte disso, me fez sentir o que senti no nosso quarto em St. Ives. Não sei até que ponto sou diferente  dos demais. Esta é a outra  das dificuldades do escritor de memórias. Contudo, para nos descrevermos a nós fielmente, temos de ter algum termo de comparação; era inteligente, estúpida, bonita, feia, apaixonada, fria. Em virtude , parcialmente, de nunca ter frequentado a escola, de jamais ter competido em nada com crianças da minha idade, nunca pude comparar os meus dotes e defeitos com os de outras pessoas. Mas é claro que houve uma razão externa  por trás de intensidade desta primeira impressão: as ondas  e o berloque no fio do estore; a sensação, como a descrevo por vezes para mim mesma , de estar dentro de uma uva e de ver através de uma película amarela semitransparente, devia-se , em parte,  aos muitos meses passados em Londres. A mudança de quarto foi muito grande. E houve ainda a longa viagem de comboio; e a agitação. Lembro-me do escuro, das luzes, o rebuliço da hora de deitar." 
Virgínia Woolf, Um esboço do Passado, in  Momentos de Vida ,Ed. Ponto de Fuga, pp. 77-79

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Era um homenzinho insignificante

Assobiando à vontade
"Àquela hora o trânsito complicava-se. As lojas, os escritórios, algumas oficinas, atiravam para a rua centenas de pessoas. E as ruas, as praças, as paragens dos eléctricos, que tinham sido planeadas quando não havia nas lojas, nos escritórios e nas oficinas tanta gente, ficavam repletas dum momento para o outro. Nos largos passeios das grandes praças havia encontrões. As pessoas de aprumo tinham de fechar os olhos àquele desacato e não viam remédio senão receber e dar encontrões também e praguejar algumas vezes. Os eléctricos apinhavam-se na linha à frente uns dos outros. Seguiam morosamente, carregados até aos estribos e por fora dos estribos, atrás, no salva-vidas, com as tais centenas de pessoas que saltavam àquela hora apressadamente das lojas, dos escritórios, das oficinas. Além disso, nos dias bonitos como aquele, as ruas da Baixa enchiam-se de elegantes que iam dar a sua volta, às cinco horas, pelas lojas de novidades e pelas casas de chá, para matar o tempo de qualquer maneira, ver caras conhecidas, cumprimentar e ser cumprimentadas, e só voltavam a casa à hora de jantar.
A multidão propunha uma confraternização à força. Era preciso pedir desculpa ao marçano que se acabava de pisar, implorar às pessoas penduradas no eléctrico que se apertassem um pouco mais para se poder arrumar um pé, nada mais que um pé, num cantinho do estribo, muitas vezes sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e apetecia insultar. Os elegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito aborrecido. Sobretudo a necessidade absoluta de seguir naquelas plataformas repletas em que não viajavam só cavalheiros, mas muitos homenzinhos pouco correctos e onde esses mesmos homenzinhos e mulheres vulgares deitavam um cheiro insuportável. Que fazer, no entanto, senão atirar-se uma pessoa também para aquele mar de gente que empurrava, furava, pisava e barafustava até chegar ao carro? Que fazer senão empurrar, furar, pisar e barafustar também?
O carro seguia morosamente e repleto como os outros. Felizmente, ainda havia alguns homens correctos na cidade e algumas mulherzinhas que conheciam o seu lugar. Só graças a isso as senhoras que tinham arriscado os seus sapatos e os seus chapéus naquela refrega e alguns cavalheiros respeitáveis conseguiam sentar-se.
Nos primeiros momentos de viagem, as pessoas voltavam-se nos bancos, preocupadas, tentando ver se o marido, uma amiga, um filho, não teriam ficado em terra. Os que seguiam de pé ousavam dar um passo no interior do carro, a ver se teria ficado algum lugar vago por acaso. Havia logo protestos na plataforma. Depois as pessoas acomodavam-se o melhor que podiam, punham os braços no ar para livrar os embrulhos do aperto, fechavam bem os casacos e as malas onde levavam o dinheiro, o condutor puxava energicamente o cordão da campainha muitas vezes, lotação completa, e o carro arrastava-se em silêncio.
Os senhores respeitáveis, com compreensível e muda zanga dos companheiros do lado, começavam a desdobrar os jornais da tarde e a ler as notícias por alto. As senhoras, visivelmente mal dispostas, compunham os chapéus e as golas dos casacos. Tiravam os espelhinhos da mala e passavam tudo em revista: o chapéu, os cabelos, os olhos, os lábios. Era incrível. Uma tinha ficado com o chapéu completamente de banda, outra perdera uma luva na confusão. Depois guardavam os espelhos, acomodavam-se melhor, percorriam com os dedos os anéis duma mão e da outra, para ver se estavam no lugar, se estavam todos. Olhavam umas para as outras, muito sérias, como quem não repara em nada. Recuperavam pouco a pouco a dignidade que aquele despropósito da subida para o carro evaporara.
Nas curvas, as rodas chiavam nas calhas, debaixo do grande peso. Silêncio enfim -embora de vez em quando cortado pela campainha, quando alguém tinha a triste ideia de querer descer, pelo desdobrar dos jornais, pela voz dos populares, encaixados na plataforma da frente.
Tudo voltara à normalidade. A marcha do carro, a cobrança dos bilhetes, a separação entre as pessoas, que rigorosamente não conseguiam separar-se umas das outras um centímetro que fosse. E, assim, morosamente, por curvas e rectas, por ruas e praças, aquele carro cumpria o seu destino de acarretar gente e ser insultado, numa das várias linhas que ligavam o centro da cidade aos bairros relativamente novos, onde a separação entre a chamada classe média e as camadas mais baixas da população não fora ainda convenientemente estabelecida.
Em dada altura, porém, na plataforma de trás levantou-se burburinho. Protestos. Indignação. Cabeças voltaram-se no interior do carro. E viu-se um homenzinho a empurrar toda a gente e a dizer que havia lugares à frente, que o deixassem passar. Em vão lhe asseguravam que não havia lugar nenhum, que não podia passar, que não fosse bruto. O homem empurrava e teimava que havia lugares à frente. Tanto empurrou que furou. Tanto furou que conseguiu entrar no interior do eléctrico, avançou e foi sentar-se num lugar de lado que estava efectivamente vago lá à frente, ao lado duma senhora por sinal opulenta.
Foi um espanto geral e silencioso. Ninguém tinha reparado no lugar. E menos que ninguém, como é fácil de compreender, a própria senhora opulenta. Todos os atrevidos têm sorte.
O homem, que usava um chapéu coçado e um sobretudo castanho bastante lustroso nas bandas, não se sentou propriamente. Enterrou-se no lugar, com as mãos enfiadas pelas algibeiras dentro. Que sujeito! Devia ser mais novo do que parecia por causa do cabelo grisalho e da barba por fazer. A senhora opulenta franziu a testa e remexeu-se no lugar, se assim se pode dizer, como quem procura ocupar menos espaço. Na verdade, apenas se instalou melhor. A sua intenção era fazer o homenzinho reparar na inconveniência da atitude que tomara. Mas ele não viu nada disso ou fingiu que não viu. Olhou vagamente as pessoas que tinha na frente, estendeu os lábios e começou a assobiar. A assobiar muito à vontade no interior do carro!
Primeiro, foi um assobio baixinho, pouco seguro, imperceptível quase. Depois, a pouco e pouco, o sujeitinho entusiasmou-se. E o assobio aumentou de intensidade. Ouvia-se já em todo o eléctrico. Os passageiros, que tinham recuperado com tanto custo a sua dignidade, fingiam que não davam pelo homem nem pelo assobio. E sossegaram quando o condutor se dirigiu ao recém-vindo. Ia aconselhá-lo a calar-se, com certeza. Mas qual! Com o maço dos bilhetes na mão e de alicate espetado, limitou-se a dizer: «O senhor?» O passageiro tirou a mão da algibeira e, sem deixar de assobiar, estendeu-a com a palma voltada para cima. Esperou que lhe levassem a moeda, recebeu o bilhete e tornou a enfiar a mão pela algibeira dentro. Toda a gente seguia a cena, interessada. Mas, quando o homem olhou as pessoas, ao acaso, voltaram todas os olhos como se ele afinal não existisse.
O assobio, umas vezes, era baixo, mal se ouvia, outras vezes, alto, muito alto, com trinados ridículos e irritantes. Ninguém sabia o que ele assobiava. E o homem também não. Qualquer coisa que lhe apetecia que fosse assim mesmo. Às vezes repetia os sons como um estribilho. Outras vezes, porém, a maior parte das vezes, passava a novas combinações, ora brandas, ora violentas, sem querer saber para nada das que ficavam para trás. As pessoas começavam a olhar umas para as outras à socapa. Já se tinha visto coisa assim? Um ou outro cavalheiro levantava os olhos do jornal, franzia a testa, fitava com dureza o homem do chapéu coçado e sobretudo castanho, na esperança de que ele, envergonhado, parasse com aquilo. A senhora opulenta, no auge do espanto, nem se atrevia a olhar para lado nenhum, vexadíssima porque, sem ter culpa nenhuma, se encontrava em plena zona do escândalo. A que uma pessoa está sujeita!
 
E, no silêncio do carro, o assobio aumentava de volume. Talvez, no fundo, aquele gorjeio ridículo não fosse desagradável de todo. Simplesmente, um eléctrico não é o local mais próprio para exibições daquelas. Porque não interferiria o condutor? O condutor era a autoridade do carro. Porque não interferiria? Estava-se a ver. Era tão bom como ele. A verdade, porém, é que não se conhecia nenhum regulamento que impedisse os passageiros de assobiar. Colados aos vidros do eléctrico, havia papéis que proibiam fumar, cuspir no carro. Era proibido abrir as janelas durante os meses de Inverno. Mas nem uma palavra a respeito de assobios.
De repente, uma criança que ia sentada junto duma janela e já se sentia enfastiada de olhar para a rua interessou-se pelo homem. Achava-lhe tanta graça, com o seu chapéu coçado, o seu sobretudo castanho, o seu assobio... Era uma criança muito pálida, de cabelos louros e encaracolados, vestida de azul. Interessou-se tanto pelo homem que começou a bater palmas. Mas uma senhora nova e bonita, que ia ao lado dela, segurou-lhe as mãos com gentileza e afastou-lhas. Devia ir calada e quietinha. Era muito feio fazer barulho no eléctrico. Uma menina bonita não fazia barulho. «Que disse eu à minha filha?» No entanto, a senhora nova e bonita não antipatizava com o homem. Olhava os embrulhos de papel vistoso que trazia nos joelhos e pensava: se não pudesse mais e começasse também a assobiar? No fundo, admirava a sem-cerimónia do homem do chapéu coçado. Não seria adorável ela própria, uma senhora casada e mãe de uma garota de cinco anos, começar a assobiar num eléctrico se lhe apetecesse? Quando era da idade da filha, a senhora bonita ia muitas vezes ao campo vestida com coisas velhas para poder atirar-se para a relva à vontade. Tinha uma voz muito suave e muito fresca, gostava de fazer precisamente aquilo que uma menina bonita não deve fazer Os amigos do pai pegavam-lhe ao colo, atiravam-na ao ar E ela ria, ria, ria até ficar sufocada. A mãe dizia «Pronto, pronto, vamos a ter juízo, não se ri assim dessa maneira» E, quanto mais lho diziam, mais lhe apetecia rir, rir, rir.
De vez em quando, um passageiro saía. A plataforma do carro ia-se esvaziando. E, pouco a pouco, os que ficavam foram-se habituando àquele estúpido assobio Os cavalheiros tinham esquecido os jornais Algumas senhoras sorriam Já se vira um disparate assim? Principalmente a senhora opulenta não podia mais. Apertava os lábios. Sentada num banco de lado, encontrava os olhos de toda a gente. Era irresistível. E a senhora bonita pensava em ar livre e nos tempos da infância. Na escola aprendera a assobiar e a lançar o pião. Havia vozes que tinham ficado dentro dela. «Uma menina a assobiar, Nini?»
Em dada altura, o homem, sem deixar de assobiar, levantou-se e puxou o cordão da campainha. Era um homenzinho insignificante, ainda novo e já de cabelos grisalhos, chapéu coçado, sobretudo castanho muito lustroso nas bandas. Mas havia nele uma indiferença soberana pelo eléctrico inteiro Toda a gente o olhava Com desprezo? Com ironia? Com inveja? Abriu a porta, fechou-a e saltou com o carro ainda em andamento.
As pessoas voltaram-se então umas para as outras, não resistiram mais e riram mesmo. Que homenzinho patusco! Desculpavam-se, explicavam-se sem palavras Entendiam-se Um minuto de simplicidade e simpatia iluminou-as A criança que batera palmas limpou com a mão o vidro embaciado da janela à procura do estranho passageiro Viu-o atravessar a rua, seguir pelo passeio agarrado às casas, desaparecer.
Só então a senhora nova e bonita, que era a mãe da criança, abriu os olhos. Ninguém hoje lhe chamava Nini. Nini era a filha. Ela agora é que dizia à filha «Uma menina a assobiar, Nini! Uma menina bonita não faz barulho.»
Ficara nos lábios e nos olhos de todos um sorriso de bondosa ingenuidade. Depois esse sorriso foi-se apagando. Morreu. As pessoas tomaram consciência da sua momentânea quebra de compostura Lembraram-se dos seus embrulhos, dos seus anéis, dos seus jornais Que patetice! Não havia outra palavra para aquilo Que patetice! Os cavalheiros recomeçaram a ler os títulos das notícias. As senhoras deram um toque nas golas dos casacos A criança tornou a olhar para a rua.
Tudo voltou, pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade."
Mário Dionísio, in O Dia Cinzento e Outros Contos, [Mem-Martins]: Publicações Europa-América, 1967, col. Obras de Mário Dionísio nº2,
c./ desenho inédito de Júlio Pomar (1965)

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Lágrimas


"E assim deslizou e se desfez diante de mim e em mim mesmo o mundo, afundando-se em lágrimas e sons , impossível de descrever, como se ali tivesse  sido derramado, como se fluísse torrencial, como num benéfico e doloroso processo! Oh, choro, oh, doce colapso, bem-aventurado degelo. Todos os livros do mundo repletos de pensamentos e poemas, nada representam em comparação a um minuto inteiro de soluçar, em que o sentimento flui em torrentosas vagas, em que, no mais profundo de si , a alma se sente e reencontra. Lágrimas são o gelo que da alma derrete, daquele que chora estão próximos todos os anjos." 
Hermann  HesseSequência de sonhos , in " Contos maravilhosos", Publicações Dom Quixote, p.188

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Sobre a vida


“A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para frente.” 
                          Soren Kierkergaard
“Quem não estima a vida não a merece.” 
                           Leonardo da Vinci
“Eu só quero um punhado de estrelas maduras… eu só quero a doçura do verbo viver.”  
                           Clarice Lispector
“O meu maior desejo sempre foi o de aumentar a noite para a conseguir encher de sonhos.” 
                           Virginia Woolf
“Eu entendo a morte. Os homens sempre levaram isso muito a sério. A vida é mais terrível e misteriosa.” 
                           Dean Koontz
“Viver é acalentar sonhos e esperanças, fazendo da fé a nossa inspiração maior. É buscar nas pequenas coisas, um grande motivo para ser feliz.” 
                         Mário Quintana
“O segredo da felicidade é encontrar a nossa alegria na alegria dos outros.” 
                          Alexandre Herculano
“A vida é aquilo que acontece enquanto está a fazer planos para o futuro.” 
                        John Lennon

domingo, 21 de janeiro de 2018

Ao Domingo Há Música

SIM
Canto porque a poesia
quis falar uma vez mais.
Canto porque a alegria
é uma das horas desiguais.
Canto porque a multidão
existe apenas na voz 
que se ouve na solidão.
Canto porque as palavras
passaram cegas à espera
da luz da minha canção.
Alberto de  Lacerda, 31.03.48, Aventura, in Oferenda I

Alberto de Lacerda , um grande poeta  homenageado, recentemente,  com a exposição na Biblioteca Nacional [Oh, Vida, sê bela! Alberto de Lacerda (1928-2007)], escreveu este magnífico poema que dá luz às canções deste domingo.
Amen (composição e arranjos de  Donald Fraser), na fabulosa voz de Jessye Norman , na  Ely Cathedral .

Jessye Norman, em Vier letzte Lieder (Four Last Songs) , de Richard Strauss, acompanhada pela  Gewandhausorchester Leipzig,  sob a direcção do Maestro Kurt Masur, em  1982.

sábado, 20 de janeiro de 2018

Os filmes de 2018

25 filmes que não vai querer perder em 2018
31 Dezembro, 2017
"Mais um ano, mais uma lista. Com o final de 2017 a aproximar-se, torna-se necessário começar a seleccionar as obras que mais merecem ser vistas no grande ecrã no próximo ano.
Sendo assim, o Espalha-Factos apresenta uma lista de 25 filmes que não vai mesmo querer perder nas salas de cinema em 2018.

O Sacrifício de um Cervo Sagrado

Depois de A Lagosta colocar muitas cabeças às rodas, desta vez o realizador grego Yorgos Lanthimos escolheu um ambiente mais familiar e íntimo em O Sacrifício de um Cervo Sagrado. Misturando o terror psicológico com o seu típico humor desconfortável, o filme segue um cirurgião (Colin Farell), que mantém uma relação de amizade com um misterioso adolescente. Após o rapaz ser apresentado aos membros da família do doutor, estes contraem uma estranha doença. O Sacrifício de um Cervo Sagrado estreia nas salas nacionais no dia 4 de Janeiro.

Um Desastre de Artista

Poucos filmes têm um culto de fãs tão fiel como o de The Room. Tommy Wiseau, o seu realizador/produtor/protagonista já alcançou um nível de popularidade apenas comparável ao de Ed Wood. Sendo assim, era só uma questão de tempo até que alguém fizesse um filme acerca de The Room. Esta obra protagonizada e realizada por James Franco tem como data de estreia prevista em Portugal o dia 4 de Janeiro.

A Hora Mais Negra

Com a invasão da França e da URSS pelos Nazis, o futuro da Europa encontra-se nas mãos do recém-eleito primeiro ministro inglês, Winston Churchill. Cabe-lhe decidir se há de negociar com Hitler ou lutar contra probabilidades incríveis. A Hora Mais Negra é um dos candidatos aos Óscares, com um elenco liderado por Gary Oldman. O filme realizado por Joe Wright estreia nas salas portuguesas no dia 11 de Janeiro.

Uma Mulher Não Chora

Laureada este ano em Cannes com o Prémio para Melhor Interpretação Feminina, Diane Kruger é Katja, uma mulher cuja vida é despedaçada quando o seu marido e filho morrem num ataque terrorista. Passado o luto, Katja decide que não vai deixar o caso entregue à lei, procurando antes justiça pelas suas próprias mãos. Fita que representa a Alemanha na corrida ao Óscar para Melhor Filme Estrangeiro, Uma Mulher Não Chora estreia a 18 de Janeiro em Portugal.

Chama-me pelo Teu Nome

Chama-me pelo Teu Nome é o mais recente projecto do realizador italiano Luca Guadagnino e conta a história da relação amorosa entre Elio, um jovem de dezassete anos, e Oliver, o assistente do seu pai, no verão de 1983 numa aldeia no sul de Itália. A película, encabeçada por Armie Hammer e Timothée Chalamet, que conquistou já a crítica internacional e promete ser uma das grandes revelações de 2018, tem estreia marcada em Portugal no dia 18 de Janeiro.

The Post

Poucos consideram que Steven Spielberg ainda seja um realizador no topo da sua profissão. No entanto, é impossível negar que os seus filmes ainda têm paixão e um toque de mestre único. The Post é o filme mais recente de Spielberg a lidar com eventos históricos – neste caso, o foco está na revelação dos Papéis do Pentágono. The Post é já considerado um dos melhores filmes que o realizador fez recentemente e chegará às salas de cinema no dia 25 de Janeiro.

Linha Fantasma

A longa-metragem mais recente de Paul Thomas Anderson será também o último de Daniel Day-Lewis. Se isso não é o suficiente para dar vontade de ver o filme, talvez o facto de se focar na indústria da moda da década de 1950 o seja. Linha Fantasma chega a Portugal em 1 de Fevereiro.

A Forma da Água

O novo projecto de Guillermo del Toro, A Forma da Água, conta a história de Elisa (Sally Hawkins) e a sua descoberta de uma misteriosa criatura aquática com quem desenvolve uma forte relação. O mais recente “conto de fadas” do realizador mexicano reúne ainda Octavia Spencer, Michael Shannon e Richard Jenkins naquele que é um dos mais aguardados filmes do ano. A película estreia nas salas de cinema nacionais no dia 1 de Fevereiro.

The Florida Project

Após o sucesso de Tangerine (2015), o realizador Sean Baker regressa ao grande ecrã com The Florida Project, o drama que acompanha Moonee, uma menina de seis anos, e seu grupo de amigos num verão repleto de aventuras e surpresas. Os adultos que os rodeiam lutam, ao mesmo tempo, contra as adversidades da vida, tudo isto nas sombras do parque temático da Disney World. Este conto que retrata a realidade da América moderna junta a jovem protagonista Brooklynn Prince e Willem Dafoe numa película que deverá estrear nas salas de cinema portuguesas no dia 15 de Fevereiro.

Black Panther

É o 18.º filme do Universo Cinematográfico da Marvel. Black Panther traz-nos Chadwick Boseman como T’Challa, rei e protector da nação africana de Wakanda. Boseman já se tinha dado a conhecer com eficácia em Capitão América: Guerra Civil, mas assume agora o protagonismo pela primeira vez. O elenco inclui ainda impressionantes adições ao universo da Marvel, tais como Lupita Nyong’O, Michael B. Jordan e Forest Whitaker. Black Panther estreia a 16 de Fevereiro.

Eu, Tonya

Margot Robbie prepara-se para aquele que pode muito bem vir a ser um dos papéis da sua carreira. A actriz foi a escolhida para protagonizar Eu, Tonya, filme sobre a história verídica da patinadora artística Tonya Harding, acusada de agredir violentamente a sua adversária Nancy Kerrigan. A realização é de Craig Gillespie e tem estreia prevista para dia 22 de Fevereiro.

Uma Viagem no Tempo

Esta é uma das apostas da Disney para 2018, aposta esta que marca o regresso de Oprah Winfrey ao grande ecrã. Uma Viagem no Tempo é uma fantasia adaptada do romance de Madeleine L’Engle sobre uma rapariga que procura o pai cientista numa misteriosa Quinta Dimensão, ao mesmo tempo que luta contra os principais dramas da adolescência. Tem estreia marcada nas salas de cinema portuguesas a 8 de Março.

Tomb Raider

Depois de Angelina Jolie, é a vez de Alicia Vikander vestir a pele da grande heroína dos videojogos, Lara Croft. Um reboot cinematográfico às aventuras da personagem, Lara é uma jovem herdeira de 21 anos com dificuldades em encontrar o seu rumo. Sete anos depois da morte do pai, deixa tudo e vai à procura do último paradeiro deste: uma ilha mítica na costa do Japão. Será este o primeiro grande filme baseado num videojogo? Descobre dia 15 de Março nos cinemas.

Lady Bird

Christine é uma adolescente em busca de aventuras, sofisticação e oportunidades – nenhum dos quais encontra na secundária católica que frequenta em Sacramento, Califórnia, onde vive com a sua mãe. Lady Bird explora o último ano de escolaridade de Christine, que inclui o seu primeiro amor, uma peça de teatro e as candidaturas para a universidade. No papel principal está Saoirse Ronan e a realização é de Greta Gerwig. O filme estreia em Portugal no dia 15 de Março.

Maria Madalena

Depois de duas nomeações ao Óscar, Rooney Mara interpreta Maria Madalena. O drama bíblico é realizado por Garth Davis, numa segunda parceria com Mara, depois de Lion – A Longa Viagem para Casa (2016). É contada a história da personagem bíblica, que deixa para trás a sua vida para se juntar a um movimento que mudará o mundo. Joaquin Phoenix promete ainda uma grande interpretação como Jesus de Nazaré nesta obra a estrear dia 22 de Março.

Ready Player One

Treze anos depois de Guerra dos Mundos, o celebrado realizador Steven Spielberg regressa à ficção científica, com uma adaptação do best-seller homónimo de Ernest Cline. A acção passa-se em 2044: Tye Sheridan é Wade Watts, um jovem solitário que encontra refúgio na imensa plataforma de realidade virtual Oasis. Quando o bilionário fundador da Oasis (Mark Rylance) falece, deixa a fortuna e controlo da plataforma como um easter egg em Oasis. Aí a corrida de Wade e tantos outros pelo prémio começa. O filme estreia a 29 de Março nas salas de cinema portuguesas.

Batalha do Pacífico: A Revolta

Cinco anos após a estreia de Batalha do Pacífico, Jake Pentecost (John Boyega), filho de Stacker Pentecostes (Idris Elba), reúne-se com Mako Mori (Rinko Kikuchi) de modo a liderar uma nova geração de pilotos Jaeger, incluindo o rival Lambert (Scott Eastwood) e uma jovem hacker de 15 anos, contra uma nova ameaça que pode levar à extinção da humanidade. Poderá ser visto nos cinemas portugueses a partir de 5 de Abril.

Ilha dos Cães


Após uma pausa que durou quatro anos, Wes Anderson regressa à cadeira de realizador com Ilha dos Cães. O filme segue a viagem de um jovem na procura pelo seu cão numa ilha exclusiva a estes animais, que foram lá colocados de forma a prevenir a contaminação de uma doença. Com um elenco de luxo, que junta nomes como Bryan Cranston, Edward Norton, Bill Murray, Scarlett Johansson, Tilda Swinton e Yoko Ono, Ilha dos Cães tem estreia prevista em Portugal para dia 25 de Abril.

Vingadores: Guerra do Infinito

2018 vai marcar o décimo aniversário de Homem de Ferro, o filme que inaugurou o Universo Cinemático da Marvel. Mas com a ocasião também se aproxima a conclusão dos vários anos que prometeram a chegada do vilão Thanos. Guerra do Infinito vai ainda ter o crossover mais ambicioso da Marvel Studios, ao incluir não só Os Vingadores como também os Guardiões da Galáxia. A sua data de estreia está prevista para o dia 3 de Maio.

Deadpool II


Depois do sucesso que causou no dia de São Valentim nas salas de cinema, era inevitável que Deadpool voltasse aos grandes ecrãs. Pouco se sabe deste filme para além do regresso de Ryan Reynolds, Morena Baccarin e T.J. Miller e da inclusão de Josh Brolin e Zazie Beetz. David Leitch, responsável por Atomic Blonde, vai ser o realizador deste projecto que deve estrear em Portugal no dia 31 de Maio.

Mundo Jurássico: Reino Caído

Depois de Mundo Jurássico ressuscitar em 2015 o franchise iniciado por Steven Spielberg, Mundo Jurássico: Reino Caído promete seguir essa senda. A multifacetada e divertida campanha de marketing tem sido elogiada e eficaz, mas é o regresso de Jeff Golblum enquanto Ian Malcolm que está a captar toda a atenção. Mundo Jurássico: Reino Caído apresenta-se ao público a 22 de Junho.

Ocean’s 8

Em 2018 o crime chega no feminino… e vem cheio de estilo. Vem aí uma nova versão da trilogia que começou com Ocean’s Eleven – que juntou George Clooney, Brand Pitt e Matt Damon no mundo do crime – mas, desta vez, só com mulheres. Ocean’s 8 acompanha Danny Ocean (Sandra Bullock) e as suas parceiras de crime, que tentam assaltar a gala anual de angariação de fundos do Costume Institute do Metropolitan Museum of Art. Elas são Cate Blanchett, Anne Hathaway, Helena Bonham Carter, Mindy Kaling, Sarah Paulson, Awkwafina e Rihanna. O filme chega às salas de cinema portuguesas a 14 de Junhoo.

Sicario II: Soldado

A sequela de um dos filmes mais bem recebidos de 2015. Denis Villeneuve e Emily Blunt não regressam, mas Benicio Del Toro e Josh Brolin sim. Sicario 2: Soldado promete fazer regressar a tensão constante e a fotografia deslumbrante que cativaram o público há dois anos. O filme tem estreia marcada para 29 de Junho.

Os Incríveis II

Após o enorme sucesso de Os Incriveís, em 2004, a Pixar traz-nos por fim a aguardada sequela. Com Os Incriveís II regressa grande parte da equipa original, incluindo o realizador Brad Bird e o elenco de vozes de Craig T. Nelson, Holly Hunter e Samuel L. Jackson. O filme retoma a história do seu antecessor, com os nossos heróis a enfrentar um novo vilão, o Underminer. Os Incríveis II estreia a 15 de Junho e será certamente um dos maiores filmes do verão.

Mamma Mia: Here We Go Again


Dez anos depois do sucesso de Mamma Mia, “lá vamos nós de novo”. Desta vez, desvenda-se a história da jovem Donna (Lily James) – a sua banda, o seu grande amor e gravidez – enquanto é revelado o rumo das personagens depois do primeiro filme. Mamma Mia: Here We Go Again, escrito e realizado por Ol Parker, junta novamente Meryl Streep, Amanda Seyfried e Pierce Brosnan, entre outros, além do novo elenco que conta com a participação de Cher. O filme tem data de estreia marcada para 27 de Julho."
Artigo redigido por Adriano Ferreira, Carlos Bonifácio, Gonçalo Silva, Hugo Geada, Matilde Castro, Pedro Rodrigues, Rita Inácio e Rui F. Pereira, Espalha-Factos