A palmeira de Nguézi
"No lugar de Nguézi há uma palmeira sagrada, dizem que nascida antes do mundo.
Do colmo pende um único fruto, de aparência estranha e que nunca pode ser
olhado. Porque, segundo a lenda, os olhos que ali apontem se enchem de estrelas
mais que as que poeiram a própria noite.
A razão dessa palmeira, vertida sobre as águas do rio, se transcreve aqui. Nem
tudo se explica, para que se compreenda melhor. Para ver a gente necessita
transparência, mas se tudo fosse transparente todos seríamos cegos. Ficará a
saber-se: em tempos de apocalipse o histórico se converte em religioso. E
vice-versa. A crença da palmeira sagrada nasceu de um facto tropeçando num
acontecimento.
Estava o mundo numa tarde, dessas de lamber o tempo. Na varanda se dispunha
Tonico Canhoto. Quem o visse parecia ele estava na simples disposição de estar,
sereno e demorado em existir. Para o Canhoto era sempre o mesmo: o tempo,
nestes dias, está muito depressa. Convém a gente se resguardar.
Mas, por dentro, o nosso varandeante se abatia a abismos. Talvez era a
monotonia do campo, esse morre-morre de esperar e ficar à espera. Talvez era
esse o motivo de seu esmorecimento.
- “Pai, há-de haver acontecimento, o senhor vai ver.
- “Vocês não entendem, filhos. Eu não careço de acontecimentos, não. Eu
pretendo é uma revelação”.
Uma revelação? A outra filha se aproximou e tentou um consolo. E lhe perguntou:
já ele olhara quanta árvore, quanta extensão pelos aís foras?
- “Se não vejo? Vejo o mato todo, em volta. Está tudo morto, tudo seco.
- “Engano seu: o mato não está seco. Apenas vazou o verde, apenas engordou o
amarelo.
- “Conversa afiada”.
Os filhos desistiram. A Canhoto lhe custava simplesmente existir. Morrer é
fácil, difícil é existir-se morto, simplesmente havido, quieto e inestudável. E
mais, aliás, menos nada. Tonico ficara assim desde que sua mulher Razia
desaparecera, ida sabe-se com quem, desconhece-se para onde. Fora há uns anos,
mas a ferida era ainda maior que a cicatriz. Quando sucedeu, nesse tempo em que
tudo era tudo, Canhoto anunciou aos numerosos filhos:
- “Vossa mãe, meus filhos. Vossa mãe, ela faleceu”.
Todos sabiam que era mentira. Ela tinha desistido de constar, tentada em
mulherar-se em outros lugares. Deixado o marido em órfã viuvez, desconsolado.
Tinha-se passado tempo, os miúdos cresceram, se graúdaram e se graduaram em
pais e mães. O que sobrava agora eram netos. Naquela tarde, fazia anos que a
avó saíra. Falecera, como dizia o avô Canhoto. A família se juntava, como era costume.
A netaria espalhava algazarras e a alegria barulhava pela varanda. Mas, o velho
Tonico Canhoto se debruçava triste sobre a paliçada. Em seu magro corpo já não
cabia mais angústia. Os filhos tentaram distrair a tentação dessa tristeza. Em
vão. O homem já havia se decidido que a sua vida era sem depois. Nada enfeitava
a sua esperança. Todos calaram quando ele anunciou:
- “Vou daqui ao rio”.
Todos lhe adivinharam o intento: ele se iria deixar tombar, encher-se de
líquido até se ensopar como se o dele corpo fosse roupa, ido na corrente, nem
corpo nem alma.
Ainda o tentaram desvanecer. Mas o velho tinha dado de testa naquela decisão.
E assim se ergueu, perante a numerosa família, todos assistindo o ancião se
afastar' converso em bruma. Chegado à margem, levantou os braços e assim,
imóvel como pau de vela, as roupas lhe começaram a cair, desabadas por forças
nenhumas, só por via de seu magro peso. A sua gente o viu nu, completamente.
Constaram, no momento, que seu corpo se mantinha de músculo e lustro, a idade
se concentrara apenas em sua cabeça. Ficou um tempo nessa espécie de despedida,
Cristo sem crucifixo. Ou simples esquecido talvez do passo próximo?
Nesse entretempo, o lugar se apoclipsou. A terra, em desfecho de estrondos, se
estremeceu. Em basaltos e baixos, esguichos de água fervente e fogos de
martifício, estrelas rebentavam como borbulhas na superfície do rio. A casa,
junto com seu tecto, insubstanciou-se e ruiu, chão no chão. Os familiares todos
se sepultaram, sem espirro nem respiro, apagados, apaguados.
Sobrou quem? O velho Canhoto, próprio. Ele vira a terra se rachar por baixo dos
pés, as duas metadas se abrirem como lábios. Nessa greta ele se afundou, pronto
a ser engolido, trevoso e súbito. Mas no momento em que seu corpo perdia o pé,
a terra se volveu a fechar, ajustada ao corpo. Ficou-lhe só a cabeça de fora.
Tudo o resto estava encravado em pedra, rocha, raiz, sobra do mundo. Mexer um
dedo, dedículo que fosse, lhe era impossível. O velho rodou a cabeça para
avistar em volta. Nada, nem rio nem árvore, nem gente. Só chão, poeira,
remoinhos de folhas mortas.
- “Deus me proíbe?”
Chorou. Sem tristeza, só para arrefecer o rosto, deixar a carícia da água lhe
premiar a boca. O sol nasceu, esmoreceu, se ocasionou. E dia. E noite. E fome.
E sede. Já nem lágrima lhe sobrava. O velho Canhoto que sempre fora acusado de
não ter essa parte de si vivia agora exclusivamente de sua cabeça. O resto, já
nem lhe restava. Todo ele aprendera a ciência de ser raiz, o orgânico sem
organismo. De noite, um cacimbito. De dia, as grainhas de uma ventania. Assim
ele se mantinha, feito único receptáculo onda a vida ainda se entesourava.
Foi quando, no fundo do sem-fim, uma andorinha riscou o céu. Feita de conta um
desenho torto, um rabisco tonto de um menino, no brevíssimo instante do
arrependimento e da borracha. A avezinha, transmeteórica, como uma foice negra
ceifou os ares. Voava mais rápido que vivia? Estranhamente, a andorinha pousou
na cabeça do velho. Fincou as patas, unhando-lhe a testa, sujando-lhe o cabelo.
O passarito piou, rodopiou e, por fim, meteu o bico nos lábios secos do velho.
Lhe dava, se imagine, uma naco de água, qualquerzita migalha. O bico beijou o
lábio, o lábio bicou o pássaro: dúzias de vezes, repetidas. O velho perguntou,
lábios rasos de silêncio:
- “É você, Razia?”
A ave toda a noite debicou o pescoço de Canhoto. Dizem que, desse mesmo
pescoço, ascendeu a matéria do colmo, dos cabelos brotou a folhagem, dos olhos
nasceu a florescência. Tudo em jeito de árvore, palmeira e sagrada.
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