Rui Knopfli. Há uma cadeira vazia à mesa do poeta
Diogo Vaz Pinto 28/07/2017 13:53
"Duas décadas depois do desaparecimento de Knopfli, uma pequenísima editora de Coimbra traz de volta do exílio e da morte um poeta desta língua que Moçambique não quis e Portugal não soube merecer
Habitante das escassas memórias ou testemunhos daqueles que com ele conviveram, do retrato tremido que nos chega de Rui Knopfli percebe-se essa “figura prematuramente frágil”, onde a ira se apaziguou pelo desgaste. É difícil dizer exactamente onde, mas o mesmo banco de pedra que um dia ergueu nos versos, ainda lá está, sujeito à vaga inclinação das lembranças. E nele o poeta, “pendurado num eterno cigarro”, fazendo do castigo um gosto, ainda que lhe pese a própria voz. E se o acento lírico não cedeu à ferrugem, em consequência da sua “linguagem castigada com desvelo de amante”, transparece dolorosamente “uma mágoa de naufrágios, e derrotas cruéis, que impõem o exílio do espaço habitado e bem amado”.
Nascido em plena savana de Moçambique, Rui Knopfli viveu a oclusão do período colonial, e acabaria “colhido na engrenagem da contradição histórica”, mesmo se assumiu desde sempre uma postura muito crítica face aos desmandos da administração colonial. Nada disso impediu que viesse a sentir-se escorraçado do seu país – já em 1959, o seu primeiro livro, “O País dos Outros”, recortava esse sentimento –, em 1975: “Quando a FRELIMO tomou conta do poder, o inimigo era o português, estou convencido disso. Claro que havia um certo racismo, aliás compreensível mas, mesmo aí, os brancos eram identificados com os portugueses”, disse o poeta numa entrevista à revista “Ler”, um ano antes de morrer.
Knopfli perfila-se assim na galeria dos poetas que nenhum território sente a obrigação ou o orgulho de reivindicar. Mas essa é uma desafeição sentida de parte a parte, uma vez que ele próprio nunca sentiu grandemente o apelo de uma pátria. “Eu nunca reivindiquei a nacionalidade moçambicana, só reivindiquei um facto, que ainda hoje reivindico, de ser africano”, registou num testemunho no volume “Vozes Moçambicanas”, organizado por Patrick Chabal (Vega, 1994). De resto, e em linha com o que Pessoa viera afirmar, num dos seus versos também foi avisando: “pátria é só a língua em que me digo”.
Este poeta cuja apresentação a Portugal só veio tardiamente – sendo que, depois da independência das colónias, culturalmente o país não soube evitar uns amuos de dondoca ofendida, rejeitando até o que ainda era seu, ou lhe dizia respeito –, teve de admirar-se muito, em 1982, quando a Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM) recolheu a sua obra em “Memória Consentida”. Este foi um dos mais primorosos volumes de poesia portuguesa da segunda metade do século XX, e o poeta veria distinguido com o prémio de Poesia Pen Clube, “O Corpo de Atenas”, em 1984. Antes, portanto, de esta instituição ser tomada por uma pandilha que não faz outra coisa senão utilizá-la para insinuar-se lá fora, indo os próprios em viagem a tudo o que é festival para fazer o país representado pelos seus versos, que nem para lixo dos que cá dentro vão dando continuidade ao diálogo milenário desta língua.
Além do eco que sempre recobra forças nesta obra, tão prenhe das vozes que, solitária e arrastadamente se respondem entre épocas e neste balanço do fulgor à ruína, enquanto perseguem o alvo em movimento que as “coloca no trilho seguro e exigente da autodescoberta”, Knopfli ganhou com aquela edição um estudo que, sendo breve, é um dos grandes actos de justiça feito por um poeta tão desirmanado na experiência e cultura de uma época, na difusa rede da sensibilidade e consciência que uma língua tece.
Luís de Sousa Rebelo, ensaísta que dirigiu uma cátedra no King’s College – tendo ali trabalhado ao longo de quase quatro décadas, antes de vir morrer, em 2010, a este cemitério de elefantes em que Lisboa se tornou, pela ignorância em relação às figuras que podiam ter coroado uma elite por haver –, assina um prefácio que só precisa de ser lido para deixar-nos absolutamente convencidos da tão peculiar grandeza de Knopfli: “O seu lirismo antilírico, a sua ironia comovida, o seu sarcasmo – bem menos iconoclasta do que, à primeira vista, poderá parecer – aparentam-no, umas vezes, com João Cabral de Melo Neto ou Carlos Drummond de Andrade. Outras vezes, no apuro torturado da forma, Knopfli lembra essoutro maneirista, Gerard Manley Hopkins (1844-1889), o que o não faz menos poeta do seu tempo do que este o foi do dele, e é e continuará ainda a ser do nosso. A poesia de Rui Knopfli é uma poesia dramática, de alusão maliciosa e de ritmos subtis, sinuosa e sedutora na sondagem dos fundões da psique, e deve ser lida sem prevenções de leituras anteriores (...)”.
Agora, 35 anos após aquela edição, coube a uma editora de Coimbra – um desses tão discretos como decentes projectos que, fora de Lisboa, têm sido o sal da terra depois dos consórcios editoriais terem varrido a autonomia e diversicadas espécies no campo das letras – fazer-nos recordar Rui Knopfli, trazê-lo de volta e ao seu ofício de mil cerimónias com a linguagem e nenhumas com a vida: “eu trabalho, dura e dificilmente,/ a madeira rija dos meus versos,/ sílaba a sílaba, palavra a palavra”.
Do lado esquerdo, a editora de Maria Sousa e Nuno Abrantes, publicou já uma série de originais de poetas portugueses, e, ao mesmo tempo, leva a língua muito além do bilhar grande, com traduções de autores de outras línguas – Pablo García Casado, Hal Sirowitz, Jesús Jiménez Domínguez entre outros – que, sem dificuldades, chegam à nossa e envergonham as associações de bairro e os clubes recreativos em que se divide hoje o mapa da nossa poesia, mostrando-lhes que para “melhores do mundo” ainda lhes falta terem mundo. Ainda assim, tem sido votada ao geral desinteresse (no que também nos penitenciamos) e ao silêncio a que se condena tudo o que se faz do outro lado da cerca, numa estratégia que, ao invés de procurar alargar a caderneta cultural e incitar as trocas, se vale do sufoco para fazer passar por ícones aqueles cromos mais repetidos. A este respeito, será curioso comparar as atenções que serão dadas a uma antologia de Knopfli que, logo depois desta, começou a ser elaborada para sair na colecção de poesia dirigida por Pedro Mexia para a Tinta-da-China.
“Uso Particular” é uma selecção pessoal dos editores da do lado esquerdo que, feita a partir da edição da INCM, e que, sem se ater muito a critérios de representatividade, é extensa o bastante para nos dar uma visão da globalidade da obra poética de Knopfli. A pecha da edição é o seu lado material, o objecto. Os livros desta editora denunciam excessivamente a sua modesta condição, e é a própria imagem da capa – uma fotografia de João Francisco Vilhena que, reproduzida em melhores condições, revela uma poderosíssima carga evocativa, mostrando “as mãos aracnídeas” do poeta segurando um caderno manuscrito – que vê esbaterem-se excelentes intenções. A fazer as vezes de prefácio, o depoimento de António Cabrita não chega de apresentação para quem não conheça já Knopfli, mas dá um lamiré que cumpre a função, se a ideia era somente lançar umas coordenadas e abrir o apetite.
Quanto ao resto, e superando os aspectos gráficos, a selecção revela uma pontaria danada, dá a sensação de que não lhe escapou nenhum dos poemas que figurariam nas listas que cada um de nós faríamos, fazendo um rapto feroz de uma obra que, já de si, soube esperar e esperar pelos versos, e, por isso, não fez lixo. (“Como fazer versos?/ Sentar/ numa cadeira à secretária,/ papel à frente, caneta em punho./ Esperar. Esperar em vão. Esperar./ Esperar mais ainda. Esperar sempre./ Se é fumador, fumar então/ antes, depois ou no decurso./ Se não, continuar a esperar./ Se ao fim de um certo tempo/ o dito tempo exceder o tempo/ que se achou ser justo esperar,/ desistir.”)
“Poeta êxul em terras africanas, onde bebe os ares da cultura europeia e sonha esse Norte longínquo, enquanto escreve uma poesia sem os exotismos gratos ao gosto do leitor metropolitano, ele começa um novo exílio no dia em que vagueia pelas ruas das grandes cidades cosmopolitas, ao ar frio desse Abril em que se ‘engendram flores’”, refere Sousa Rebelo no prefácio de “Memória Consentida”. Esta poesia, que se demarcou dos “discursos poéticos vigentes na língua portuguesa”, não estava por outro lado alheada dos sinais de fumo que eram trocados, não entre grupos e grandes movimentações, mas entre os que desenham as fugas ao pelotão, e encontrou, assim, na tradição anglo-americana e, particularmente, na poesia e nos ensaios de T.S.Eliot, um correlegionário tão mais instigante quanto radical face aos entusiasmos que Lisboa, então, ainda ia decalcando de Paris. Note-se que, se pôde falar-se de um certo ânimo cosmopolita gozado em Lourenço Marques, isto deveu-se à proximidade das colónias anglófonas, e em especial da África do Sul.
Hoje, é natural que Rui Knopfli surja como um poeta tão original no quadro da poesia portuguesa, pelo modo como a sua poesia não ficou à espera que certas noções que capturaram e deram caminho à sua intuição se tornassem assunto nos cafés onde a tristeza provinciana portuguesa ia pôr-se em dia. Se a “vaga e subliminal resistência” à sua obra nunca foi inteiramente vencida, pode ser este um momento propício, não só pela dispersão de influências que têm alargado o horizonte dos novos poetas portugueses (que como se sabe estão em maior número entre os leitores de poesia), como pelo afrouxamento da guarda pretoriana que, até há uns anos, dominava a crítica. Esta, além de recomendar a dieta literária, obrigava os poetas que quisessem o nome no jornal a formar na linha, batendo a continência, ou beijando a mão, o pé, quando não outras coisas. Ninguém fala disso, mas muitos ouviram as histórias de um distinguido crítico e professor universitário que, aqui há não muitos anos, não poucas vezes prometia fazer deste ou daquele efebo o Rimbaud da sua geração se... pois.
Na sua “subjectividade lúcida e autovigiada”, Knopfli não foi só um poeta desinteressado das questiúnculas que fazem a intriga nas pequenas messes da literatice. Os que com ele conviveram recordam que aparecia sempre com um livro novo, algum autor recém-descoberto, era também um magnífico fotógrafo, um apaixonado do jazz, e o seu empolgamento era infeccioso, de tal modo que Eugénio Lisboa, o seu grande cúmplice na dinamização da cultura de Lourenço Marques, reconhece o quanto ele e outros lhe ficaram a dever essa e outras iniciações.
No capítulo das lembranças, onde hoje podemos recolher as impressões necessárias para pôr a carne sobre os ossos que os versos nos dão, vale a pena abrir aqui espaço ao retrato que Eugénio Lisboa deixa de Knopfli no terceiro volume das suas Memórias, “Act Est Fabula” (Opera Omnia, 2013), referentes ao período entre 1955 e 1976. “Foi nessa altura que afinei contactos com os amigos do ‘Kremlin’ (‘Café Nicola’). Um deles, foi o Rui Knopfli, que aparecia com ar de pássaro predador, boné nada proletário e palavra afiada e maldosa. Adorava dizer coisas que ofendiam a ortodoxia do ‘Kremlin’, mas tudo lhe era perdoado. Gostava de praticar um humor ultrajante, com uma espécie de grosseria de grand seigneur. Se alguém elogiava muito as qualidades de carácter e de trabalho de um bonzo qualquer, o Knopfli interrompia, brutal: ‘Toma pouco banho!’ Se alguém embasbacava, liricamente, para os filmes de Chaplin, o Knopfli cortava, rente: ‘Prefiro, de longe, o Bucha e Estica.’ Adorava ferroar os neo-realistas, sobretudo em dias de missa de esquerda bem pensante. O cúmulo do gozo era, para si, destoar.”
Vale a pena, ainda, citar mais uma passagem, em que um desses episódios servem de testemunho simples e onde o fantasma mostra a raça que o faz perambular distintamente daqueles que se esbatem no fundo das memórias que se compõem sem esforço: “Para os esquerdistas burros, e bem-intencionados, o Knopfli afectava uma indomável intolerância. Um dia, estávamos sentados no Nicola, em conversa desataviada, aparece, pesadote e opaco, o notário Camilo Sequeira. Era um oposicionista inofensivo, e quase inocente, e um implacável purista da língua. Chato como a potassa. O Knopfli não tinha paciência. Quando o Camilo fez menção de se sentar, junto a nós, o Rui avisou: ‘Ó Camilo, se V. se senta, vou-me eu embora...’ O Camilo sorriu, com ternura: ‘Este Rui é um brincalhão...’ Sentou-se e o Knopfli levantou-se, de rompante, e, muito sério: ‘Eu avisei. Adeus, meus senhores!’ E largou a grande velocidade, desaparecendo porta fora.”
Também na sua poesia Sousa Rebelo sinaliza “uma estratégia da desfiguração do discurso instituído”, e é fácil dar com o homem nas coisas que diz de si, nos lugares a que ainda regressa, onde ainda encontra os outros e convive com a mesma impaciência, um desejo de que a vida furasse o tédio, mesmo com o risco de cair tantas vezes do lado da amargura, da fatal tristeza que, mesmo se não tem razão, aparece como esses “restos de inverno mordendo o ar primaveril”.
Eis um “Fim de tarde no cáfe: Na tarde cor de azebre/ falávamos de coisas amargas./ Ali, na mesa triste do café/ com moscas adejando/ sobre restos de açúcar/ e um copo de água/ morna de esquecida,/ falávamos da amargura das coisas,/ entre rostos graníticos e enxovalhados,/ entre estranhos e estranhos/ de estranhos e com os que,/ nada tendo de estranhos,/ cuidam de cuidar/ o que se passa entre estranhos./ Na tarde comprida e silenciosa/ tecíamos gestos inúteis/ e palavras entre dentes,/ mergulhados na paisagem geométrica/ do café. Do café tão cheio de gente/ e fumo e moscas e caras tristes/ e afinal tão profundamente,/ tão desesperadamente vazio.”
Esta é uma poesia que não tem da vida uma grande opinião, o que lhe dá para servir a angústia na pele de poderosos exercícios de sarcasmo, aliviado pela ironia. Knopfli, como recordou o diplomata Francisco Seixas da Costa, que com ele se cruzou, em 1990, quando o poeta cumpria os anos do exílio “eternizado em posto em Londres”, recorda um tipo que, aos 58 anos, estava no fio: “Vergado e cansado, pendurado num eterno cigarro, tinha o mais caótico gabinete de que tenho memória. Homem de vícios que o foram debilitando, mantinha uma ironia cáustica e, sendo de trato fácil, era de condução diária difícil, pelos corredores da rotina diplomática a que nunca se acomodara verdadeiramente.”
De resto, essa fraca opinião que a vida lhe merecia já antes levara o poeta a declarar que padecia de uma certa “Mania do Suicídio: Às vezes tenho desejos/ de me aproximar serenamente/ da linha dos eléctricos/ e me estender sobre o asfalto/ com a garganta pousada no carril polido./ Estamos cansados/ e inquietam-nos trinta e um/problemas desencontrados./ Não tenho coragem de pedir emprestados/ os duzentos escudos/ e suportar o peso de todas as outras cangas./ Também não quero morrer/ definitivamente./ Só queria estar morto até que isto tudo/ passasse./ Morrer periodicamente./ Acabarei por pedir os duzentos escudos/ e suportar todas as cangas./ De resto, na minha terra/ não há eléctricos.”
“Uso Particular” é uma excelente senha para que nos tentemos sentar àquela mesa, incorrendo no risco de o poeta se levantar e desaparecer ou, inversamente, de ficar ali, e se dar a entender. E é aqui que a poesia de Knopfli tem algo mais para nos oferecer do que as energias do sublime a lançar os dardos, a tentar prender alguma borboleta a qualquer que seja o alvo. Há uma respiração que consome o ar inteiro, um não ter lugar nenhum onde ir, nenhuma outra pá para escavar uma saída do exausto quotidiano senão o convívio. Essas palavras trocadas sobre uma mesa, e que têm uma experiência e um peso, o de um poeta que disse que todos os seus poemas eram, afinal, poemas de amor. As suas palavras não são ditas por acaso, existem dentro de um pacto e, como notou Sousa Rebelo, “dessa cinza diluída, vão emergir com geométrica nitidez os traços de um rosto, de uma mão ou de um ombro”. E mais à frente, sublinha como estes poemas se organizam “numa recuperação de cariz alquímico, que restitui o gesto ao acto, o movimento à forma e o amor à vida”.Diogo Vaz Pinto, Jornal i , 27.06.2017
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