segunda-feira, 24 de julho de 2017

Ruy Belo

 Tu estás aqui

 Estás aqui comigo à sombra do sol
 escrevo e oiço certos ruídos domésticos
 e a luz chega-me humildemente pela janela
 e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
 Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
 e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
 que uso para ser também isto este bicho
 de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
 quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
                                                                                                     o que sei o
 que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
 e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
 e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
                                                                                                   outra coisa
 esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
 a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
 bem entendido o que faço com este braço
 Estás aqui comigo e à volta são as paredes
 e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
 e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
 e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
 Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
 passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
 esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
 essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
 Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
 diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
 este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
 nome embora no mesmo nome este nome
 de terra de dor de paredes este nome doméstico
 Afinal fui isto nada mais do que isto
 as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
 a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
                                                                                         que não merda
 e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
                                                                                         outras coisas
 Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
 pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
 uma coisa para além disto que não isto
 Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
 é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
 mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
 tu és em cada gesto todos os teus gestos
 e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
                                                                                                    a palavra paz
 Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
 perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
 perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
 prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
 deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
 e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
 sou isto é certo mas sei que tu estás aqui
Ruy Belo , in Toda a Terra ,Todos os Poemas,  Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

1 comentário:

  1. Ruy Belo... Um dos mais sensíveis e talentosos poetas portugueses!.. Morreu muito cedo, o no Ruy... Devido a problemas respiratórios. Ainda não tinha feito os 50 anos! O filho, o Duarte Belo, aí ficou para expandir a maior obra poética do pai... e muito bem! Saudades do Ruy Belo!...

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