Em busca de soluções,
o homem inventou Deus
Por Ferreira Gullar
“Sem pretender complicar as coisas, devo, no entanto, admitir que o ser
humano tem necessidade de atribuir sentido à sua existência.
Ao que eu saiba, gato, cachorro, cavalo, macaco, não têm necessidade
disso. Começa que, ao contrário do bicho-homem, não sabem que vão morrer. E aí
está todo o problema: se vamos morrer, para que existimos?, perguntamos nós,
sejamos filósofos ou não. Aliás, é por essa razão que surgem os filósofos, para
responder a essa pergunta de difícil resposta.
Em busca de soluções, o homem inventou Deus, que é a resposta às
perguntas sem resposta. Por isso mesmo, e não por acaso, todas as civilizações
criaram religiões, diferentes modos de inventar Deus e de dar sentido à vida.
Há, porém, quem não acredita em Deus e busca outra maneira de dar sentido à
existência, à sua e a do próprio universo.
Esses são os filósofos. Mas há também os que, em vez de tentar explicar a
realidade, inventam-na e reinventam-na por meio da música, da pintura, da
poesia, enfim, das diversas possibilidades de responder à perplexidade com o
deslumbramento e a beleza.
Há, porém, quem dê sentido à vida empenhando-se nas pesquisas
científicas, nas realizações tecnológicas e nas produções agrícola, industrial
ou comercial. Também existem os que encontram esse sentido na ajuda aos outros
ou na dedicação à família.
Qualquer uma dessas opções exige do indivíduo maior ou menor empenho,
conforme as características de sua personalidade e as implicações da opção
feita. Por exemplo, se a opção é no campo da arte, os problemas que surgem
podem conduzir a um empenho que às vezes implica numa entrega limite, que tanto
pode levar à realização plena como à frustração do projeto.
Diversamente, no plano político, por envolver um número considerável de
indivíduos, o sectarismo ideológico tem consequências graves, às vezes
trágicas. O exemplo mais notório é o nazismo de Adolfo Hitler, que levou ao
massacre de milhões de judeus e a uma desastrosa guerra mundial. Mas houve
outros exemplos de sectarismo ideológico, como o stalinismo e o maoismo, de
lamentáveis consequências.
No plano da religião, então, por adotar muitas vezes a convicção de que
ali está a verdade revelada, tanto se pode alcançar a plenitude espiritual como
render-se ao fanatismo intolerante, a exemplo do que ocorreu, no século 13, com
a Inquisição, quando a Igreja Católica criou tribunais para julgar e condenar
os chamados hereges. Eles eram queimados vivos na fogueira, já que teriam
entregue suas almas ao Diabo. A religião é, certamente, o campo propício ao
surgimento da intolerância intelectual, precisamente porque ela se supõe
detentora da verdade absoluta, da palavra de Deus. Hoje, temos, nesse campo, a
atuação fanática do Estado Islâmico.
Mas voltemos à necessidade que temos todos de dar sentido à nossa vida.
Generalizando, pode-se dizer que o bicho humano, para ser feliz, necessita de
uma utopia. No século 20, para muita gente, essa utopia foi a busca da
sociedade fraterna e justa, concebida por Marx e que, sem se realizar
plenamente, extinguiu-se. A consequência disso é que, hoje, vivemos sem utopia,
o que atinge particularmente os mais jovens.
Sem dúvida, a maioria deles, de uma maneira ou de outra, encontra seu
caminho, um sentido para sua vida. Mas há os que, por uma razão ou por outra,
tornam-se presas fáceis de uma opção radical, como a do fanatismo islâmico que,
além de lhes oferecer um rumo –uma espécie de missão redentora–, atende a seus
ressentimentos. A isso se somam muitos outros fatores, como as raízes étnicas,
a descriminação, a frustração social e, sobretudo, um grave distúrbio mental."
Ferreira
Gullar, em Crónica publicada na Folha de S. Paulo, Brasil, em 31/07/2016
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