Caldas de Monchique (Algarve) |
Cândida Ventura nasceu há 99 anos, em Lourenço Marques, Moçambique.
“Nasci em Lourenço Marques , mas
passei a maior parte da minha infância nas Caldas de Monchique, termas a 250
metros de altitude , no vale da serra de
Monchique (Algarve), apenas a 20
quilómetros da Praia da Rocha e a 290
quilómetros de Lisboa.”
Assim nos informa Cândida Ventura, uma mulher extraordinária que marcou a luta contra a opressão, no século XX. Fê-lo com risco da própria vida , abdicando do conforto que lhe daria um futuro que se desenhava promissor. A Liberdade foi sempre o seu dicionário. Promoveu-a em todos os lugares por onde passou, tentando resgatá-la do jugo de qualquer credo ideológico totalitário.
Quando jovem aluna da Faculdade de Letras de Lisboa, aceita entrar para o Partido Comunista Português por acreditar na autenticidade dos seus ideais . Mais tarde, na União Soviética, descobre o regime de Estaline e a força dogmática que alicerça a sua ideologia que se mantém através do uso indiferenciado de todos e quaisquer meios.
Na Checolosváquia, Cândida Ventura trabalha e assiste à Primavera de Praga. Em Portugal , após a revolução de Abril, em 1976, corta todas as amarras com o PCP e dedica-se ao que sempre a norteou: a Liberdade dos povos.
Nunca deixou de ter uma voz activa e atenta.
Nunca deixou de ter uma voz activa e atenta.
Tive o imenso prazer de conhecer esta grande mulher. Privilegiou-me com a sua amizade. Vivi momentos de intensa partilha e descoberta através de extraordinários relatos da sua longa vida. Ela era a História que eu pude ter perante mim. Nunca saberei agradecer-lhe. Ficou, contudo, no meu coração. E a saudade é a lembrança de alguém que me tocou para sempre.
No dia do seu falecimento, muitos artigos foram publicados. Alguns foram referidos e/ou transcritos neste espaço. Hoje publicamos um outro testemunho de alguém que a conheceu .
Cândida Ventura
Morreu a camarada
André
por Zita Seabra
Observador,17/12/2015, 10:30
"Cândida Ventura regressou a Portugal em 1976. Abandonou o
PCP e deixou de ser comunista. O PCP apagou-a da sua história, do seu passado,
dos seus livros, das suas narrativas heroicas. Como sempre faz.
Morreu Cândida Ventura: a camarada André. Era sempre
referida internamente por esse seu pseudónimo. Álvaro Cunhal e os outros
dirigentes do PCP que a conheceram chamavam-lhe assim. Na clandestinidade todas
tínhamos pseudónimos masculinos para enganar a Pide. Cândida era André.
Ninguém pode negar que “André” foi um dos mais destacados
militantes e dirigentes intelectuais comunistas portugueses, alguém que o PCP
tentou apagar da história nesse seu «direito» de reescrever o passado e
determinar quem pode ou não figurar na galeria dos heróis da resistência.
Cândida foi apagada e colocada na triste memória de vala
comum de silêncios e calúnias em que já nem se sabe do seu passado e, no
presente, só existe para modelo de traição. Recordo-me, por exemplo, de se
falar dela no último andar da Soeiro Pereira Gomes, num gozo mal contido do dr.
Cunhal, dizendo, entre risos e escárnio: «O camarada André aceitou um lugar no
Ministério dos Negócios Estrangeiros, arranjado pelo Mário Soares.»
Ficou assim marcada, assinalada, logo no dia em que
regressou ao país em 1976. Como se o mesmo não tivesse acontecido a toda a
gente, a todos os comunistas que vieram de Paris ou da Suíça e tiveram que ser
reintegrados num qualquer trabalho e refazer a sua vida profissional. Cândida
não podia. Vinha com o estatuto de dissidente e não lhe era permitido ter
passado, nem presente, nem trabalho, nem dignidade.
Posteriormente, muitos anos mais tarde, eu própria ouvi
muitas vezes como acusação, e li escrito em jornais, o nome de Cândida
transformado em insulto. Acusavam-me de estar «a ficar igual ou pior que a
Cândida». Escreveram-no contra mim, quando a minha vida foi uma pálida sombra
do que foi a desta grande senhora. Senti e sinto ainda vergonha da acusação,
porque eu não tinha, nem a minha vida teve, dimensão para ser aceitável tal
comparação.
Cândida entrou para o PCP muito nova. Chegou através das
lutas estudantis universitárias nos anos 36/39, em plena guerra civil
espanhola. Licenciada em Histórico-filosóficas, tinha uma imensa cultura, rara
em mulheres da época. Teve um curto casamento com Piteira Santos e frequentou a
vida cultural da capital. Escreveu em jornais e revistas e foi amiga de toda a
gente marcante das letras e das artes portuguesas. Nesse período, trabalhou
directamente com Álvaro Cunhal na Federação das Juventudes Comunistas.
Foi durante todos estes anos uma destacadíssima militante e
a primeira mulher a integrar o Comité Central do PCP.
Brilhante, culta, inteligente, corajosa, muito, muito bonita
(Cunhal dizia que parecia uma conhecida atriz francesa em moda na época),
marcou este período conturbado da vida do PCP como activista dos mais
importantes movimentos legais ou semi-legais existentes (Socorro Vermelho, por
exemplo). Muito jovem, logo que acabou o curso, deixou, porém, tudo o que tinha
na vida e tudo o que fazia para passar à clandestinidade. Ao PCP entregou a
juventude, e todo o seu futuro. Viveu anos e anos (dezoito) uma duríssima vida
de privações e perigos na clandestinidade, até ser presa.
Na clandestinidade, Cândida integrou de imediato um pequeno
grupo destacado de dirigentes comunistas que fizeram a célebre «reorganização»
dos anos 1940.
Mais tarde, quando se viveram tempos conturbados de lutas
internas, Cândida foi acusada de fraccionismo pois era o André da famosa
fracção «André e Montes», que levou à sua despromoção do Comité Central e
suspensão (em 1954). Foi readmitida em 1956 e ficou para sempre a camarada
André, o que lhe deu igualmente uma auréola muito especial de ex-fraccionista.
Enquanto clandestina foi uma das muito poucas mulheres com
trabalho de organização. Controlou grandes sectores do PCP e, além disso,
escreveu muito, colaborando em numerosas publicações clandestinas. A menos
importante, mas significativa, e que pessoalmente não resisto a sublinhar, foi
o jornal que criou e que eu própria vim a «dirigir» anos mais tarde: «O Jornal
das Amigas das Casas do Partido», que era distribuído, depois de impresso em
copiógrafo manual, a todas as mulheres que tomavam conta das casas e das
tipografias clandestinas.
Presa pela PIDE em 1960, foi condenada a 15 anos de cadeia e
medidas de segurança, mas veio a ser libertada por estar entre a vida e a
morte, ao fim de três anos vividos na cadeia de Caxias.
Quando recuperou a saúde, o PCP colocou-a como representante
sua na Checoslováquia, onde integrou a redacção da mais importante revista
teórica do movimento comunista, a «Revista Internacional – Problemas da Paz e
do Socialismo».
O Partido Comunista Checo era um partido com uma importante
elite intelectual, que incluía numerosos escritores, gente das artes e dos
meios universitários. Cândida, que era responsável pelos comunistas portugueses
que residiam na Checoslováquia, integrou-se plenamente na vida do país que
caminhava para a célebre «Primavera».
Tem-se escrito, diminuindo-a em minha opinião, que foi ganha
para a Primavera de Praga porque era amiga e vizinha de Arthur London, que a
terá influenciado. Era evidentemente amiga de Arthur London e ele próprio
prefaciou o livro que Cândida publicou anos mais tarde, mas ela foi um dos
mentores e intervenientes na Primavera de Praga, amiga de muitos a começar por
Dubcek. Esteve com os que tentaram renovar o comunismo por dentro,
democratizá-lo, os que viveram o drama da ilusão de uma pacífica e democrática
«revolução» interna, feita na sua maioria por comunistas, uma revolução
impossível que terminou debaixo das lagartas dos tanques soviéticos.
Aliás, ao longo dos muitos anos de militante e dirigente
comunista, Cândida foi marcante num partido de centralismo democrático por ter
pensamento e caminhos próprios raros, direi mesmo raríssimos. Não foi só a
fracção «André e Montes», mas também o pai da sua filha, Américo Sousa (que
participou na fuga da cadeia do Aljube com Carlos Brito), que acabou
despromovido, ao chocar novamente com Cunhal nos anos em que, após a fuga de
Peniche, ele tomou o poder no PCP.
Na Primavera de Praga, Cândida não era dissidente nem se
comporta como tal. Cândida era comunista e, como muitos outros comunistas,
queria renovar, democratizar, destalinizar. Tinha dado toda a sua vida por essa
causa. Só quem não imagina o que é entregar uma vida inteira a uma ideologia,
passar 18 anos clandestina, seguidos dos anos na prisão de Caxias e depois no
exílio, é que não pode perceber ou atingir o que foi a vida desta mulher e como
viveu estes anos de Praga, entre a alegria de um comunista convicto que procura
o impossível – democratizar o comunismo – e a tristeza da invasão das tropas do
pacto de Varsóvia.
Ainda há dias li contra ela a acusação de não ter subscrito
o abaixo-assinado de Flausino Torres contra a invasão soviética, como quem lhe
atira o atestado final do julgamento da história. Valeu tudo ao longo da sua
vida até ao presente para o Partido Comunista lhe apagar o passado, a diminuir,
caluniá-la em contraste com os seus heróis em muitos casos falsos, com
biografias forjadas e até antifascistas que nunca o foram. Tudo servido por
diligentes funcionários que transmitem a história e por intelectuais igualmente
diligentes que a tentam escrever em livros que assegurem que o passado será
como querem que seja.
Cândida Ventura regressou a Portugal em 1976. Abandonou o
PCP e deixou de ser comunista. O PCP apagou-a da sua história, do seu passado,
dos seus livros, das suas narrativas heroicas
Morreu ontem e merece ser lembrada por tudo o que deu
na sua vida à luta pela liberdade em Portugal e recordada como a primeira
mulher membro do Comité Central do PCP, bem como a primeira dissente mulher do
comunismo português. Sobretudo, a camarada André merece muito mais do que estas
linhas." Zita Seabra
CÂNDIDA VENTURA NÃO FOI PROPRIAMENTE AQUILO QUE SE PODERIA DESIGNAR UMA PENSADORA, MAS PENSAVA, E - MAIS DO QUE ISSO - FEZ-NOS PENSAR. PORQUE PENSAR QUALQUER UM PENSA, MAS NEM TODOS SÃO CAPAZES DE FAZER PENSAR!... UM MÚTUO ESPELHAR, UM SORRISO DE SABEDORIA... QUANDO O SUJEITO CONHECE O OBJECTO, E RECONHECE-SE NELE. COMO ALMADA DIRIA, SE A TIVESSE CONHECIDO, CÂNDIDA CHEGAVA SEMPRE DE NOVO A CADA INSTANTE. E EM CADA INSTANTE, ERA ELA MESMA, ERA ELA PRÓPRIA!... A MINHA HOMENAGEM à CÂNDIDA VENTURA. ATÉ SEMPRE!
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