terça-feira, 13 de junho de 2017

129º aniversário de Fernando Pessoa

Aniversário
 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
 Eu era feliz e ninguém estava morto.
 Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
 E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
 Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
 De ser inteligente para entre a família,
 E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
 Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
 Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

 Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
 O que fui de coração e parentesco.
 O que fui de serões de meia-província,
 O que fui de amarem-me e eu ser menino,
 O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
 A que distância!...
 (Nem o acho... )
 O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
 Pondo grelado nas paredes...
 O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
 O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
 É terem morrido todos,
 É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...


 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
 Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
 Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
 Por uma viagem metafísica e carnal,
 Com uma dualidade de eu para mim...
 Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

 Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
 A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
 O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
 As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

 Pára, meu coração!
 Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
 Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
 Hoje já não faço anos.
 Duro.
 Somam-se-me dias.
 Serei velho quando o for.
 Mais nada.
 Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

 O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos, in "Poesias", Colecção Obras Completas de Fernando Pessoa, Edições Ática, Lisboa, Janeiro de 1964, pp.282-284
Completam-se, hoje,  13 de Junho, terça-feira, 129 anos sobre o nascimento de Fernando António Nogueira Pessoa, nascido em Lisboa, em 1888. Para assinalar a data, seleccionámos alguns textos escritos por especialistas e uma notícia promovida pela radio. 
A escolha foi difícil, tanta é a oferta  e a riqueza desta volumosa obra que não está ainda totalmente divulgada.
FERNANDO PESSOA OU ANTÓNIO MORA, O OFICIALMENTE LOUCO.
Cascais, disse Pessoa, Cascais, que belo sítio, eu também lá passei alguns dias, não mais de duas semanas, é a primeira vez que falo disto a alguém e de boa vontade lhe confesso a si que é meu amigo, meu caro Soares, fui a uma consulta na clínica psiquiátrica de Cascais; foi lá que conheci António Mora, o filósofo panteísta, e devo dizer que passei nessa pequena vila os dias mais serenos da minha vida, porque uma onda negra tinha-se abatido sobre mim e tinha-me arrastado e eu só tinha vontade de morrer, mas conheci António Mora, que me deu confiança na Natureza.
António Mora?, perguntou Bernardo Soares. Nunca me tinha falado nele, gostaria de saber alguma coisa a seu respeito.
Bem, disse Pessoa, António Mora é louco, pelo menos oficialmente é louco. Mas é um louco lúcido, que reflectiu muito sobre o paganismo e o cristianismo. Posso dizer-lhe que se veste com uma túnica como os antigos romanos, uma túnica branca que lhe desce até aos pés, calça sandálias à maneira antiga e raramente fala, mas comigo falou
E o que é que ele lhe disse?, perguntou Bernardo Soares.
Disse-me muitas coisas, respondeu Pessoa. Disse-me primeiro que os deuses voltarão, porque essa história de uma alma única e de um único deus é uma coisa passageira que está a acabar no final de um curto ciclo de história. E quando os deuses voltarem perderemos essa unicidade da alma, e a nossa alma poderá de novo ser plural, como a Natureza quer.
Antonio Tabucchi, in Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa,
Quetzal Editores, 1994, pp. 48-50

Fernando Pessoa: O Poeta dos Muitos Rostos
"Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em 1888, em Lisboa, aí morreu em 1935, e poucas vezes deixou a cidade em adulto, mas passou nove anos da sua infância em Durban, na colónia britânica da África do Sul, onde o seu padrasto era o cônsul Português. Pessoa, que tinha cinco anos quando o seu pai morreu de tuberculose, tornou-se num rapaz tímido e cheio de imaginação, e num estudante brilhante. Pouco depois de completar 17 anos, voltou a Lisboa para entrar no Curso Superior de Letras, que abandonou depois de dois anos, sem ter feito um único exame. Preferiu [que cedo abandonou, preferindo] estudar por sua própria conta na Biblioteca Nacional, onde leu livros de filosofia, de religião, de sociologia e de literatura (portuguesa em particular) a fim de completar e expandir a educação tradicional inglesa que recebera na África do Sul. A sua produção de poesia e de prosa em Inglês foi intensa durante este período, e por volta de 1910, já escrevia também muito em Português. Publicou o seu primeiro ensaio de crítica literária em 1912, o primeiro texto de prosa criativa (um trecho do Livro do Desassossego) em 1913, e os primeiros poemas de adulto em 1914.
Vivendo por vezes com parentes, outras vezes em quartos alugados, Pessoa ganhava a vida fazendo traduções ocasionais e redacção de cartas em inglês e francês para firmas portuguesas com negócios no estrangeiro. Embora solitário por natureza, com uma vida social limitada e quase sem vida amorosa, foi um líder activo da corrente modernista em Portugal, na década de 1910, e ele próprio inventou alguns movimentos, entre os quais um «Interseccionismo» de inspiração cubista e um estridente e semi-futurista «Sensacionismo». Pessoa manteve-se afastado das luzes da ribalta, exercendo a sua influência, todavia, através da escrita e das tertúlias com algumas das mais notáveis figuras literárias portuguesas.
Respeitado em Lisboa como intelectual e como poeta, colaborou regularmente [publicou regularmente o seu trabalho] em revistas, algumas das quais ajudou a fundar e a dirigir, mas o seu génio literário só foi plenamente reconhecido após a sua morte. No entanto, Pessoa estava convicto do próprio génio, e vivia em função da sua escrita. Embora não tivesse pressa em publicar, tinha planos grandiosos para edições da sua obra completa em Português e Inglês e, ao que parece, guardou a quase totalidade daquilo que escreveu.
Em 1920, a mãe de Pessoa, após a morte do segundo marido, deixou a África do Sul de regresso a Lisboa. Pessoa alugou um andar para a família reunida –  ele, a mãe, a meia irmã e os dois meios irmãos – na Rua Coelho da Rocha, n.º 16, naquela que é hoje a Casa Fernando Pessoa. Foi aí que Pessoa passou os últimos quinze anos da sua vida – convivendo muito com a mãe, que morreu em 1925, e com a meia irmã, o cunhado e os dois filhos do casal (os meios irmãos de Pessoa emigraram para a Inglaterra), embora também passasse longos tempos na casa sozinho. Familiares de Pessoa descreveram-no como afectuoso e bem humorado, mas muito reservado. Ninguém fazia ideia de quão imenso e variado era o universo literário acumulado na grande arca onde ia guardando os seus escritos ao longo dos anos.
O conteúdo dessa arca – que hoje constitui o Espólio de Pessoa na Biblioteca Nacional de Lisboa – compreende mais de 25 mil folhas com poesia, peças de teatro, contos, filosofia, crítica literária, traduções, teoria linguística, textos políticos, horóscopos e outros textos sortidos, tanto dactilografados como escritos ou rabiscados ilegivelmente à mão, em Português, Inglês e Francês. Pessoa escrevia em cadernos de notas, em folhas soltas, no verso de cartas, em anúncios e panfletos, no papel timbrado das firmas para as quais trabalhava e dos cafés que frequentava, em sobrescritos, em sobras de papel e nas margens dos seus textos antigos. Para aumentar a confusão, escreveu sob dezenas de nomes, uma prática – ou compulsão – que começou na infância. Chamou heterónimos aos mais importantes destes «outros eus», dotando-os de biografias, características físicas, personalidades, visões políticas, atitudes religiosas e actividades literárias próprias. Algumas das mais memoráveis obras de Pessoa escritas em Português foram por ele atribuídas aos três principais heterónimos poéticos – Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos – e ao «semi-heterónimo» Bernardo Soares, enquanto muitos poemas e alguma prosa em Inglês foram assinados por Alexander Search e Charles Robert Anon. Jean Seul, o solitário heterónimo francês, era ensaísta. Os muitos outros alter-egos de Pessoa incluem tradutores, escritores de contos, um crítico literário inglês, um astrólogo, um filósofo, um frade e um nobre infeliz que se suicidou. Havia até um seu «outro eu» feminino: uma pobre corcunda com tuberculose chamada Maria José, perdidamente enamorada de um serralheiro que passava pela janela onde ela sempre estava, olhando e sonhando.(...)"
Richard Zenith , publicado pela Casa Fernando Pessoa

Documentário radiofónico sobre Fernando Pessoa estreia na terça-feira
"A Casa Fernando Pessoa (CFP), em Lisboa, anunciou na sexta-feira a estreia na próxima terça-feira do documentário radiofónico "Não sei o que o amanhã trará: um passeio sonoro na Lisboa de Fernando Pessoa", de Sofia Saldanha.
Completam-se, a 13 de Junho, terça-feira, 129 anos sobre o nascimento de Fernando António Nogueira Pessoa, cuja última residência foi em Campo de Ourique, na rua Coelho da Rocha n.º 16, e onde se realiza uma sessão intitulada "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos" na qual é estreado o documentário radiofónico, anunciou aquele equipamento cultural.
"'A Dona Irene era a lavadeira. Entrava pela porta da Rua Coelho Rocha e vinha com um saco de pano-cru debruado com um fitilho vermelho, com um F e um P: Fernando Pessoa', assim conta Manuela Nogueira, sobrinha de Pessoa, no documentário rádio", que é apresentado pela primeira vez na terça-feira às 18:30, numa conversa conduzida pelo jornalista Adelino Gomes.A autora do documentário, Sofia Saldanha, tem trabalhado nos últimos três anos neste documentário, no qual revela episódios da vida do escritor e tem por base um percurso em Lisboa, real ou metafísico, segundo a mesma fonte.
"Este documentário tem 13 segmentos/estações. O texto que nos é dado a ouvir é a montagem das conversas que a jornalista foi tendo ao longo do tempo com vários pessoanos, com diferentes opiniões e visões sobre a obra e a biografia de Pessoa", afirma a CFP.
Adelino Gomes conversa com a autora do projecto radiofónico e também com Manuela Nogueira, Luís Miguel Rosa Dias, Manuela Parreira da Silva, Teresa Rita Lopes, José Barreto, Pedro Teixeira da Mota e António Cardiello.
Campo de Ourique foi o último bairro lisboeta onde morou Fernando Pessoa (1888-1935), que residiu, com a família, no 1.º piso de um prédio no n.º 18 da rua Coelho da Rocha, depois de ter deambulado pela cidade, tendo alugado quartos, na Estefânia, S. Bento, e no Príncipe Real, entre outros bairros.
Fernando Pessoa é autor de obra vasta e plural, escrita em português e também em inglês, tendo publicado poucos textos em vida. O único livro que publicou foi "Mensagem" (1934), tendo a maior parte da sua obra sido publicada na segunda metade do século XX. Actualmente, continuam a surgir inéditos.
Numa nota biográfica que escreveu meses antes de morrer, em Lisboa, a 30 de Novembro de 1935, Pessoa afirmou-se poeta e escritor "por vocação".TSF
Às vezes tenho ideias felizes

Às vezes tenho ideias felizes

Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despejam...

Depois de escrever, leio...
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...
                18-12-1934
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 66.
Lapso corrigido segundo: Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. 


Livro(s) do Desassossego
 ‘O Fernando Pessoa anda por aí todo deturpado’
"Quem o afirma é Teresa Rita Lopes que  estuda a obra de Fernando Pessoa há meio século e já deu a volta aos 27 mil documentos do espólio por mais de uma vez. 
Esta edição do Livro(s) do Desassossego foi  preparada por uma das mais respeitadas especialistas na obra de Fernando Pessoa, Teresa Rita Lopes. 
"É o livro da vida de Fernando Pessoa, finalmente editado como o autor queria, respeitando todos os semi-heterónimos que fazem parte dele, devidamente assinados - Vicente Guedes, Barão de Teive e Bernardo Soares. Vale explicar que a expressão "semi-heterónimo"é do próprio Pessoa, que considerava como heterónimos apenas três: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Ainda assim, são vozes muito próprias, que partem de biografias inventadas como personagens de teatro. Não estarem misturados ou até preteridos como em publicações passadas é a grande novidade dessa edição (...). Por isso a sugestão do plural do nome: Livro(s) do Desassossego. Assim como o autor foi vários, o livro também é. A primeira parte é O livro de Vicente Guedes. Os textos nessa época ainda são muito influenciados pela corrente literária simbolista. A segunda parte, O livro do Barão de Teive, já assume um tom mais seco, de um personagem que definiu por si o fim da própria vida. A terceira parte, O livro de Bernardo Soares, é notoriamente parte do que conhecemos como Modernismo. Todos têm introduções que iluminam suas leituras, escritas por Teresa Rita Lopes, em linguagem descomplicada, ainda que contendo profundo conhecimento de causa. Ler essa obra é como espiar as décadas de dedicação aos textos, tanto da parte de Fernando Pessoa quanto dos pesquisadores de seu espólio. Teresa Rita Lopes conta que frequentemente a caligrafia do poeta é indecifrável. Somente a convivência com as leituras por anos e anos de seus poemas, muitos deles escritos à mão, ou mesmo datilografados e corrigidos à mão, é que torna possível a publicação."

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