Nova Iorque
“O mais colossal
espectáculo do mundo. Nem o cinema, nem a fotografia, nem a reportagem, puderam
dar conta deste acontecimento surpreendente que é Nova Iorque à noite, vista de
um quadragésimo andar, Esta cidade pôde resistir a todas as vulgarizações, a
todas as curiosidades dos homens que experimentaram descrevê-la, copiá-la.
Conserva a frescura, o inesperado, a surpresa, para o viajante que a olha pela
primeira vez.
O navio, em andamento lento, desloca devagar as perspectivas; procura-se a
estátua da Liberdade, o presente da França; é uma pequena estátua modesta,
esquecida no meio do porto, diante deste novo continente audacioso e vertical.
Mas não se vê, por muito que levante o braço o mais alto possível. Inutilmente,
não ilumina mais do que uma vela, coisas enormes que mexem, formas que,
indiferentes e majestosas, a cobrem de sombra...
Seis horas mais tarde. O navio avança lentamente. Uma massa direita, alta,
elegante como uma igreja, aparece ao longe, envolvida na bruma, azul e rosa,
esfumada como um pastel, fechada numa ordem gótica, projectada para o céu como
um desafio. Que nova religião é esta?
É Wall Street, que domina da sua altura este mundo novo. Depois de seis dias de
travessia na água fluida e imperceptível, móvel, ágil, chega-se diante desta
montanha, abrupta, obra de homens, que lentamente se define, se torna mais
nítida, se precisa com os seus ângulos cortantes, as suas janelas alinhadas, a
sua cor metálica. Levanta-se violentamente acima do nível do mar. O barco
roda... Wall Street desapareceu lentamente, silhueta reluzente como uma
armadura.
É a apoteose da arquitectura vertical; uma combinação audaciosa de arquitectos
e de banqueiros sem escrúpulos, empurrados pela necessidade. Uma elegância
desconhecida, involuntária, desprende-se desta abstracção geométrica. Apertados
entre dois ângulos de metal, são cifras, números, que sobem, rígidos, para o
céu, domados pela perspectiva deformante...
Um mundo novo!...
Brooklyn!, os cais maciços. jogos de sombra e de luz, as pontes, com as suas
projecções de linhas verticais, horizontais, oblíquas… O nascimento de Nova
Iorque. na luz que, pouco a pouco, aumenta, à medida que se avança na cidade...
Nova Iorque, milhões de janelas luminosas... Quantas janelas? Quando aparecerá
um alemão para fazer esta original estatística?
Espantoso país, onde as casas são mais altas do que as igrejas, onde os
limpadores de janelas são milionários, onde se organizam desafios de futebol
entre os prisioneiros e a Polícia!
A beleza de Nova Iorque à noite é feita de inumeráveis pontos luminosos e do
jogo infinito da publicidade móvel.
O rigor ria arquitectura é quebrado pela fantasia sem limites das luzes
coloridas. O grande espectáculo começa mal nos levantamos, e esta visão radiosa
tem a particularidade de nenhum artista, de nenhum encenador ter contribuído
para ela. Esta música comovente é tocada por casas em que habitam pessoas como
vós eu. Estes milhares de fogos, que nos espantam, iluminam pessoas que
trabalham modestamente na sua tarefa ingrata e quotidiana. Estas arquitecturas
ciclópicas são estritamente úteis, racionais; o crescimento vertical é de ordem
económica.
Elevou-se o número de andares, porque o terreno é pouco e caro, porque não é
possível construir em extensão; construiu-se obrigatoriamente em altura. Não há
nenhum sentimento romântico em tudo isto, a sombra de um orgulho deslocado.
Toda esta orquestração surpreendente é estritamente útil. O mais belo
espectáculo in the world não é criação de um artista.
Nova Iorque tem uma beleza natural, como os elementos da natureza, como as
árvores, as montanhas, as flores. Está aí a sua força e a sua variedade.
Pretender tirar partido artístico de semelhante tema é uma loucura. Admira-se
modestamente, e é tudo.
No interior desta vida múltipla e organizada corre uma personagem indispensável
a esta vida ilimitada: o telefone, actor principal. Faz parte da família. É o
brinquedo da criança americana; pega-lhe como numa boneca, e essa boneca toca,
fala, ri. É uma corda ininterrupta que liga, como aos alpinistas, toda esta
gente rápida e apressada.
Se um dia morrer subitamente, não haverá ninguém no seu enterro, porque ninguém
saberá o dia e a hora do funeral.
Nova Iorque e o telefone vieram ao mundo no mesmo dia, no mesmo barco, para
conquistar o mundo.
Em Nova Iorque a vida mecânica está no apogeu. Tocou o limite, ultrapassou o
fim… crise!
A vida americana é uma sucessão de aventuras, conduzidas com optimismo até ao
fim.
Arriscou-se tudo, experimentou-se tudo; e há realizações definitivas.
Naturalmente, o volume da arquitectura deveria tentá-los. Antes de mais, tudo
quanto se vê. A arquitectura e a luz são os dois pólos da sua expressão
plástica; no barroco, atingem o monstruoso.
Nova Iorque e
Atlantic City têm cinemas que é difícil descrever a quem não os viu. Um
amontoamento inverosímil de todos os estilos europeus e asiáticos; um caos
colossal, para ferir a imaginação, fazer publicidade, fazer «mais que em
frente»; a Enormidade no «mais rico do que tu».
Escadas inúteis, empregados em número incalculável, espantar, atrair e ganhar
dinheiro. É o fim de toda esta vertigem que atinge a repugnância e a beleza.
Gosto tanto desta inundação de espectáculos, de toda esta força incontida,
desta virulência, mesmo no erro... É muito novo. Engolir um sabre a sorrir,
cortar um dedo, porque está sujo...
Até ao fim, é sempre a América. Naturalmente, se me detenho a reflectir, se
fecho os olhos, entrevejo os dramas que pairam à roda deste dinamismo
exagerado, mas eu vim para ver — e continuo.
As cartas lançadas do quinquagésimo andar pelo tubo pneumático, aquecem com o
atrito e chegam a arder ao rés-do-chão. É necessário gelar os tubos — mas
demasiado frios, as cartas chegarão no meio de neve.
Tudo fuma em Nova Iorque, «até as ruas». Ouvi raparigas dizer que fumar durante
as refeições distrai e impede de engordar, uma inesperada relação entre o
cigarro e a elegância.
O dia, em Nova Iorque, é muito severo; falta-lhe cor e, se o tempo está
enevoado, Nova Iorque é uma cidade de chumbo.
Porque não se hão-de colorir as casas? Porquê esta lacuna, na terra de todas as
invenções?
Fifth Avenue, vermelha — Madison, azul - Park Avenue, amarela. Porque não? E a
falta de verdura? Nova Iorque não tem árvores. A medicina decretou há muito que
o verde, em particular, é uma cor indispensável à vida; deve viver-se no meio
da cor: é necessário como a água e o fogo.
Poder-se-ia obrigar os vendedores de modas a lançar em série vestidos verdes,
fatos verdes...
Periodicamente, um ditador da cor decretaria as cores mensais ou trimestrais; o
trimestre azul, a quinzena rosa! Para aqueles que não podem ir ao campo,
passear-se-iam árvores pelas ruas. Paisagens móveis com flores tropicais, passeadas
lentamente por cavalos de penacho.
Duas da manhã, ao acaso das ruas… bairro popular... Avenue «A» ou «B»... Uma
imensa garagem de camiões, todos parecidos, em filas de seis, reluzentes como
para um desfile, como elefantes, uma luz fixa. Nada se move: entro e olho.., um
ridículo barulho de guizos... ao fundo, à esquerda, descubro um cavalo arreado.
A única coisa viva, neste silêncio de ferro... O prazer de lhe tocar, de o ver
mexer, de o sentir quente. O animal ganhava um tal valor, pelo contraste, que
eu teria podido registar todos os barulhos que pode fazer um cavalo em repouso;
barulhos minúsculos, sempre os mesmos; ouvia-lhe a respiração… movimentos
delicados… as orelhas... os olhos pretos... uma estrela branca na cabeça... o
casco polido e o joelho que, de tempos a tempos, se move lentamente.
O último cavalo de carga, à espera de reforma. Depois, aos domingos, será
exposto numa vitrina e as crianças ficarão espantadas por Napoleão ter
conquistado o mundo montado nele.
Em casa do arquitecto Corbett, juntamente com Kiessler. Ë um dos maiores
construtores do edifício americano. Um homenzarrão simples... conseguir meter
20.000 pessoas num edifício, diz-me ele, eis o meu trabalho actual. Não julgue
que se trata apenas de uma questão de número de andares! Não, é mais
complicado, é uma questão de elevador, O problema é o de manobrar verticalmente
este exército! Fazê-lo descer todos os dias para as quatro salas de jantar que
se encontram a vinte metros debaixo da terra... Dar vazão a tudo isto, nas
horas requeridas.
Depois, a saída de toda esta gente, sem engarrafar o trânsito... Seis meses de
trabalho.
Dez engenheiros especializados, e a solução ainda não foi encontrada.
Problema específico dos americanos, imbatíveis na racionalização, na série, nos
números.
Partir do total, para dar conforto à unidade... Novo mundo!
Dão a impressão de nada os deter; vida sucessiva e rápida. Destruí Nova Iorque,
construí-la-ão de outro modo. Aliás, que alvos admiráveis estas arquitecturas.
Demolir Nova Iorque! Não é possível que o marechal Pétain não tenha tido, por
um segundo, por meio segundo, a tentação. Que magnífico trabalho para um
artilheiro! Militarmente não seria problema, pois não, meu general? Estive em
Verdun sob as suas ordens, é suficiente, mas por desporto, por amor do ofício!
Os americanos seriam os primeiros a aplaudir e, então, que veríamos nós? Pouco
tempo depois, uma nova cidade estaria construída. Adivinhai como: aposto um
contra mil: de vidro, de vidro!
Esta é a sua última invenção. Alguns engenheiros encontraram meio de fabricar
vidro com leite coalhado, mais barato do que o betão. Imaginai: todas as vacas
americanas a trabalhar na reconstrução da capital!
Nova Iorque transparente, translúcida, os andares azuis, vermelhos, amarelos!
Uma fantasmagoria inédita, a luz desencadeada por Edison trespassando tudo isto
e pulverizando as arquitecturas.
Os bairros populares são belos a qualquer hora. Há uma tal crueza, uma tal
variedade de matérias-primas! Bairros russos, judeus, italianos, chineses. A
Third Avenue, ao sábado à noite e ao domingo, é Marselha!
Chapéus cor-de-rosa para os negros. Vitrinas onde se encontra uma bicicleta
pendurada por cima duma dúzia de ovos, alinhados sobre areia verde...
Frangos depenados, suspensos, em contraluz, sobre fundo negro... dança macabra!
Uma vida decorativa intensa valoriza infinitamente o objecto à venda.
O ar dos desempregados: nada os distingue, se não que andam mais devagar do que
os outros. Apinhados nas praças, uns contra os outros, não conversam. Estas
multidões são silenciosas: o indivíduo permanece isolado, não comunica; lê ou
dorme!
Wall Street de dia: milhentas vezes descrita, mas ide lá ver!
Wall Street à noite, Wall Street às duas da manhã. Sob o luar seco e brilhante.
O silêncio é absoluto. Ninguém, nestas ruas estreitas e estranguladas pela
projecção violenta de linhas cortantes e perspectivas multiplicadas ao
infinito, em direcção ao céu. Que espectáculo! Onde estamos? Um sentimento de
solidão oprime-nos, como uma imensa necrópole. Os passos ressoam no pavimento.
Nada se move. No meio desta floresta de granito, um pequeno cemitério de
pequeninos túmulos, humildes, modestos: é a morte que se faz pequena, ao pé da
exuberância da vida que a rodeia. O terreno deste pequeno cemitério é,
certamente, o mais caro do mundo. Mas os businesssmen não lhe tocaram.
Permanece como uma pausa, uma paragem na corrente vital… Solucionar a morte,
último problema!
Wall Street dorme. Continuemos o passeio… Oiço um fraco murmúrio regular. Wa]l
Street ressona? Não, é uma perfuradora que, harmoniosamente, começa o seu
trabalho, como um trabalho de térmita. Nenhum barulho! É a única parte de Nova
Iorque que verdadeiramente dorme. É preciso digerir os números do dia, as
somas, as multiplicações, a álgebra financeira e abstracta destes milhares de
indivíduos virados para o grande problema do ouro. Wall Street dorme
profundamente. Deixemo-la dormir. A trinta metros debaixo da terra, na rocha,
as caves de aço do Irving Bank. No centro, os cofres-fortes de fechaduras
magníficas e brilhantes, complexas como a própria vida, um posto de polícia
onde alguns homens velam. Microfones ultra-sensíveis trazem-lhes os menores
ruídos da rua, e os barulhos que se notam sob as abóbadas de aço do banco
moderno. Uma mosca a voar… Ouvem voar a mosca... Um velho negro deambula pelas
ruas, canta baixinho uma velha melodia do Sul. A canção sobe, perde-se nas
arquitecturas, mas desce também aos microfones que, debaixo da terra, registam
discretamente a velha canção do Sul.
Wall Street não dorme... Wall Street está morta. Volto a passar ao pé do
pequeno cemitério. Não são, agora, os maiores bancos do mundo! Não, são os mais
orgulhosos túmulos de família dos grandes milionários. Aí, repousam os Morgan,
os Rockfeller, os Carnegie. Como novos faraós, edificaram as suas pirâmides.
Serão enterrados de pé como semideuses; e como estes gigantes modernos se
tornam legendários e imortais, abriram-lhes mil janelas para que o povo saiba
que talvez não estejam mortos, que respiram, que voltarão ainda uma vez para
espantar o mundo com novas concepções ciclópicas.
Wall Street é a imagem da América audaciosa, deste povo que está sempre a agir
e que nunca olha para trás de si.
Nova Iorque... Moscovo...
Os dois pólos da actividade moderna... A vida actual concentra-se aí...
Somente aí se ousa a experiência perigosa de que os outros aproveitarão.
Nova Iorque .. Moscovo!
Moscovo... Nova Iorque!
Paris, posto de observação!
Georges Duhamel veio à América. Dentro da mala, trouxe as suas concepções de
francês médio e as pantufas. Talvez não tenha podido servir-se delas, das
pantufas, o que o deixou, manifestamente, de mau humor. Por aqui, ainda não se
usa disso. Pelo que as americanas são rainhas e têm pés bonitos. Ë preciso não
ficar a querer mal à locomotiva que, ao passar a cem à hora, nos faz voar o
chapéu.”
Fernand Léger, in Funções da Pintura, trad. Tomás de Figueiredo, Livraria
Bertrand, 1965
Fernand Léger, " A grande parada" |
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