A Travessia de Milton Nascimento
Primeiro disco do cantor e compositor brasileiro completa cinquenta anos
"Em Abril de 1972, os membros do Weather Report viajaram para o Rio de Janeiro para tocar no Teatro Municipal. Wayne Shorter, que havia comprado, numa loja de discos de Los Angeles, o LP Courage, tinha muita vontade de conhecer o autor: Milton Nascimento. Shorter soube por um jornal que o músico brasileiro estava a apresentar um disco intitulado Clube da Esquina no Teatro Fonte da Saudade e foi até lá com seus colegas da banda.
Voltou outras noites, assim que terminou seus compromissos no Municipal. Caetano Veloso, recém-chegado do exílio, foi levado ao teatro por Gal Costa, que repetia porque tinha achado o show genial. Caetano diz que, embora impressionado com a beleza nobríssima de máscara africana, a sua atmosfera celestial e triste, e a aura mística e sexual, nesse dia não foi capaz de detectar a grandeza de sua música. Nos camarins, Shorter disse a Milton: “Quero fazer um disco com você”. Native Dancer levaria quase três anos para ser gravado, mas em sua capa, sob o nome do saxofonista, se pode ler, em caracteres um pouco menores. “Participação especial de Milton Nascimento”.
Completam-se agora cinquenta anos do primeiro disco de Milton. Foi impresso no pequeno selo Codil e contou com a participação do Tamba Trio, do pianista e arranjador Luiz Eça e dos arranjos de Eumir Deodato. O título de Travessia, canção com letra de seu amigo Fernando Brant, foi extraído do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: é a última palavra do livro. Com ela Milton Nascimento se apresentou no Festival Internacional da Canção (FIC) e se tornou conhecido no Brasil. Existem gravações de Travessia –em inglês, Bridges, de Sarah Vaughan, Tony Bennett ou Björk. Também foi cantada por Elis Regina, que chegou a dizer que, se Deus tinha voz, era a de Milton. O menino negro nascido no Rio de Janeiro, adoptado por uma família branca e criado em Três Pontas, uma pequena cidade do interior do Estado de Minas Gerais, deixou, nos anos setenta, vinis intensos e bonitos, como Minas, Gerais e os do Clube da Esquina –Ângelus, editado em 1993, poderia ser considerado o terceiro da série de obras colectivas das quais Milton foi o catalisador. Os duplos Clube da Esquina (1972) –assinado com Lô Borges– e Clube da Esquina 2 (1978) se tornaram uma referência para Pat Metheny: o guitarrista afirma que o segundo deles está à altura dos melhores trabalhos dos Beatles e do Songs in the Key of Life, de Stevie Wonder. Entre os admiradores de Milton Nascimento –muitos gravaram com ele– estão Paul Simon, James Taylor, Sting e a falecida Mercedes Sosa, e músicos como Herbie Hancock, Jack DeJohnette, Ron Carter, Esperanza Spalding… O mineiro é único: amálgama de Miles Davis e samba-jazz; rock progressivo e música sacra de Minas; península Ibérica e América Latina, Beatles e Crosby, Stills, Nash & Young. O bispo Pedro Casaldáliga escreveu: “Cante Milton, as estrelas não podem permanecer impassíveis”.
"1972 foi definitivamente um dos anos mais importantes para a história da MPB. No mesmo ano em que “Acabou Chorare” vinha à luz, outra obra-prima do cancioneiro nacional era lançada: “Clube da Esquina”. Combinando ricos arranjos instrumentais à belíssima voz de Milton Nascimento (mas que não é o único a cantar no álbum), o disco é um desfile de jóias (“Tudo Que Você Podia Ser”, “Cais”, “O Trem Azul”, “Paisagem da Janela”). Destaquei a “Clube da Esquina nº 2”, canção que tem história curiosa. Originalmente lançada apenas em versão instrumental, com Nascimento a revelar-se um grande melodista, a composição posteriormente recebeu a contribuição de Márcio Borges, que escreveu a letra. E foi assim que, em 1970, enquanto John Lennon declarava em “God” que “o sonho acabou”, no Brasil, o Clube da Esquina respondia: “Sonhos não envelhecem”."
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou prá trás
Ao primeiro passo asso asso ...
Por que se chamavam homens
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases lacrimogéneos
Ficam calmos calmos calmos...
E lá se vai
Mais um dia
ah ah...
E basta contar compasso
E basta contar consigo
Que a chama não tem pavio
De tudo se faz canção
E o coração na curva de um rio rio rio rio...
De tudo se faz canção
E o coração na curva de um rio ...
E lá se vai...
mas um diaaa
E o rio de asfalto e gente
Entorna pelas ladeiras
Entope o meio fio
Esquina mais de um milhão
Quero ver então a gente gente gente...
Milton Nascimento/ Márcio Borges
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