A casa da minha infância
Por Urbano Tavares Rodrigues
"A casa da minha infância foi um «monte»
alentejano, próximo do rio Ardila, a cerca de quatro quilómetros da branca
cidade de Moura.
A
frontaria dava para um pátio empedrado, de onde ainda se vêem, num alto, a
eira, e mais perto, outras construções: a habitação do feitor, a cavalariça, a
vacaria, o galinheiro, o curral dos porcos, o alpendre onde guardavam o trem, o
churrião e vários carros de lavoura e alfaias agrícolas, a charrua, a
debulhadora, o trilho...
A toda a
volta da casa mansas oliveiras, quase cinzentas por tempo fosco, mas de prata
quando o sol se mostra. E, quase encostada à casa, as olaias, muito visitadas
pelos pardais sobretudo à noitinha, e a suave glicínia, trepando por uma parede
caiada, junto a janelas de grega do quarto dos meus pais.
Foi nesse
cenário rústico, que de Inverno acordava muitas vezes branco de geada e onde a
Primavera vinha cedo, de ouro e azul, sobre a verde germinação das searas, que
decorreram os anos mágicos da minha infância, escutando os cantos e os dizeres
dos camponeses, brincando com os pastorinhos das ovelhas e das vacas, galopando
pelos montados do outro lado do rio, escalando cabeços cobertos de estevas e
mistério, descobrindo os caminhos que levam ao Guadiana, a imensa herdade da
Rola, aos longes de Espanha.
Entre a
catequização da minha professora, a D. Guilherminha, piedosa senhora docemente
ridícula no seu outono de vida cheio de folhos, fitas e sonhos gorados, e a
rebeldia franca dos trabalhadores ranchos, que pelo nosso «monte» passavam,
vindos da Amieira e de Portel, comecei a tactear a vida, a dar pela injustiças
sociais mesmo ao meu lado, a crescer entre cheiros e sons, visões, bem
diferentes, mas misturados, do paraíso e do inferno.
Sentimentos em guerra nasciam dentro de mim e
aos meus momentos contemplativos do fim do dia, após as horas de estudo ou os
passeios pela beira do Ardila, a pé ou a cavalo, sucediam-se interrogações sem
resposta. Deixara de acreditar nos mitos cristãos e procurava outras crenças,
outros valores. Era o fim da minha infância, na altura em que meu pai ia ter de
hipotecar a herdade (salvando-se anos depois do descalabro) e nós já víamos
pela frente a partida para Lisboa, o Liceu, o «exílio» entrecortado por breves
férias no Alentejo.” Seixo Review
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