" Contemplar , na Noite de Natal, o presépio armado ora sobre a grande cómoda, ora sobre o canapé já com fundo de pau, era para mim um gosto cuja intensidade não poderiam os outros compreender. Chegava, sentado no chão sobre os calcanhares, chegava a imaginar-me transformado numa daquelas figurinhas de barro, e ver-me descer aqueles pequenos grandes montes cobertos de musgo, atravessar aquelas sombrias florestas representadas por galhos de arbustos, vir chegando à cabana onde Nossa Senhora e S. José, extraordinariamente vivos a meus olhos, se curvavam embevecidos para Jesus recém-nascido. À porta, com os seus presentes ao lado, camponesas e pastores ajoelhados comungavam na adoração. Outros bailavam no pequeno terreiro, entre músicos bonacheirões e fantasias. Os três Reis Magos, lá longe, mal saíam ainda do seu Castelo, a Estrela que os guiava estava pendurada sobre o sagrado curral, pela encosta abaixo havia casinhas de papelão e tocos de vela cujas chamazinhas tremeluziam... Que festa! Nunca houvera, nunca mais poderia haver outra assim. Que bem pago me sentia das canseiras que tudo aquilo pudera custar-me, aliás já entremeadas de belos sonhos em que entrevia este mundo maravilhoso! Mas que digo?! Levantado ele, já de modo nenhum acreditava que esse mundo maravilhoso pudesse haver saído das nossas mãos...
O Natal era , de facto, uma boa festa na nossa casa. Sentia-se um íntimo aconchego na grande mesa oval com velas acesas, porque ainda não havia luz eléctrica, e reunida toda a costumada companhia daquela Santa Noite." Vinha o tio Manuel, mouco perdido, com a sua cabecinha rapada e o seu nariz de judeu, repetindo sempre as suas histórias de eleições. Vinha o meu tio e padrinho com nossos primos . A Maria do Avô já viera de tarde ( era a cozinheira do avô, muito nossa estimada) para ajudar a Piedade nos trabalhos da cozinha. O avô também vinha, está claro, e outra gente da família, e era bom pensar que todos voltariam no dia seguinte. E depois no Ano Novo. E depois nos Reis, quando já estivessem ajoelhados diante da cabana..."
José Régio, in Confissão dum homem religioso, INCM, pp.42-43
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