"Coimbra, 31 de Dezembro de 1969 - É quase meia-noite. Numa inquietação crescente, vou escrevinhando a consultar o relógio a cada momento. Quero assistir à passagem do ano. Faltam vinte minutos, faltam quinze, faltam dez... Um agiota não faria melhor se estivesse ao pulso dum agonizante de quem esperasse herdar uma grande fortuna. E acabo por me rir. Farto de saber que nada vai mudar, roído de desilusões, e teimo na estupidez das mais vezes! Simplesmente, não desisto. A razão argumenta, a experiência ensina, e nos recônditos do meu ser nenhuma lição de objectividade encontra eco. Orgulhosos da nossa ciência, e seguros de que dominamos a natureza, zombamos dos nossos avós e dos rituais com que tentavam exorcizar as forças do mal e propiciar a renovação do tempo. Mas, no fundo, continuamos supersticiosos e crédulos como eles. A abafar ruidosamente a emoção a tiros de petardo ou de champanhe , ouvimos bater as doze badaladas na secreta esperança de que elas sejam a meta remissa do passado e o ponto de partida dum futuro redentor. Assim persiste sob a máscara soberba do civilizado a humildade do primitivo. A humildade que o mantém vivo nas selvas da ignorância, ao lado do morto que vai sendo nas avenidas da sabedoria..."
Miguel Torga, in Diário XI, Círculo de Leitores, p. 1056
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