sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Quem sou eu?

Duplo Império

Atravesso as pontes mas 
(o que é incompreensível) 
não atravesso os rios, 
preso como uma seta 
nos efeitos precários da vontade. 
Apenas tenho esta contemplação 
das copas das árvores 
e dos seus prenúncios celestes, 
mas não chego a desfazer 
as flores brancas e amarelas 
que se desprendem. 
As estações não se conhecem, 
como lhes fora ordenado, 
mas tecem o duplo império 
do amor e da obscuridade. 
Pedro Mexia, in "Duplo Império"  edição de autor, Lisboa, 1999


Identidade

Preciso ser um outro 
para ser eu mesmo 

Sou grão de rocha 
Sou o vento que a desgasta 

Sou pólen sem insecto 

Sou areia sustentando 
o sexo das árvores 

Existo onde me desconheço 
aguardando pelo meu passado 
ansiando a esperança do futuro 

No mundo que combato morro 
no mundo por que luto nasço 
Mia Couto,
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas" , Editorial Caminho, 1999

Nem Sempre Sou Igual no que Digo e Escrevo


Nem sempre sou igual no que digo e escrevo. 
Mudo, mas não mudo muito. 
A cor das flores não é a mesma ao sol 
De que quando uma nuvem passa 
Ou quando entra a noite 
E as flores são cor da sombra. 
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores. 
Por isso quando pareço não concordar comigo, 
Reparem bem para mim: 
Se estava virado para a direita, 
Voltei-me agora para a esquerda, 
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés — 
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra 
E aos meus olhos e ouvidos atentos 
E à minha clara simplicidade de alma ... 
Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXIX , Poemas de Alberto Caeiro”, Edições Ática, pp.52,53

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