Uns quatro ou cinco dias após a morte dela, sentei-me comigo
na sala de estar a pensar no que fazer. Baralhado,
à espera que o choque aliviasse , à espera de um qualquer
sentimento estruturado que lograsse emergir do fingimento
organizacional dos meus dias. Senti-me vazio. As crianças
estavam a dormir. Bebi. Fumei cigarros de enrolar à
janela. Senti que o provável e principal resultado da sua
ausência fosse a minha transformação num organizador
em permanência neste negociador de listas
de lugares comuns de gratidão, neste arquitecto maquinal de rotinas
para crianças pequenas sem Mãe. O pesar pareceu-me quadri-
mensional , abstracto, cegamente familiar. Tinha frio.
Os amigos e família que tinham estado por cá com a sua
simpatia regressaram a casa, às suas próprias vidas.
Assim que deitei os miúdos,
o apartamento perdeu todo o sentido
tudo era imóvel.
A campainha da porta tocou e lá me preparei para mais
desvelos. Mais uma lasanha, alguns livros, um mimo,
umas quantas refeições congeladas para os miúdos. Estava,
claro, a tornar-me um especialista em comportamento
de carpideiras-satélite. Estar no epicentro implica uma
consciência curiosamente antropológica de todas as outras
pessoas; os esmagados, os afectadamente apáticos,
os nada até-à-data, os que permanecem tempo a mais, os novos
melhores amigos dela, os meus , os dos miúdos. Os que ainda agora
não faço a mais pequena ideia de quem sejam. Senti-me como a Terra
naquela extraordinária imagem do planeta rodeado
por um espesso cinturão de lixo espacial. Pensei que passariam anos
até que a ilusória corrente das demonstrações
de dor alheia pela minha mulher morta encolhesse o suficiente
para me permitir ver de novo o espaço negro e,
claro - escusado será dizer -, pensamento deste género faziam-me
sentir culpado. Mas, pensei eu em minha
defesa, tudo se alterou e ela partiu
e eu posso pensar aquilo que quiser. Ela acharia bem, já que
éramos sempre tão analíticos, cínicos, provavelmente
desleais, perplexos. Umas cabras post mortem muito sociáveis,
cheias de boas intenções. Hipócritas. Amigos .
Max Porter, in " O Luto É A Coisa Com Penas", tradução de Daniel Jonas, 20/20 Editora, Setembro de 2016, pp.14,15
Sobre o Livro:
" Aqui está ele: marido e pai, romântico , desarranjado e académico apaixonado por Ted Hughes, um homem perdido depois da morte súbita da sua mulher. E ali estão os seus dois filhos, a enfrentarem como ele, a tristeza insuportável que os engoliu no seu apartamento londrino perante um vaivém de amigos bem-intencionados e um futuro de absoluto vazio.
Neste momento de desespero, são visitados pelo Corvo - antagonista, trapaceiro, curandeiro, babysitter. Este pássaro " sentimental" é atraído pelo luto da família e ameaça permanecer com eles até que não mais precisem da sua ajuda. À medida que o tempo passa, as semanas se tornam meses e a dor se transforma em memória, esta pequena unidade de três pessoas começa a curar-se.
Numa estreia absolutamente extraordinária - parte novela, parte fábula polifónica, parte ensaio sobre o luto - Max Porter combina sensibilidade e um estilo corajoso, criando um efeito deslumbrante. Carregado de um humor inesperado e marcado por uma profunda verdade emocional, O Luto É a coisa com Penas marca a chegada de uma nova voz literária , entusiasmante e original."
O Luto É A Coisa Com Penas foi vencedor do Dylan Thomas Prize 2016.
Sem comentários:
Enviar um comentário