20.11.85
Eugénio
de Andrade, in Vertentes
do Olhar (1987)
"Há lugares onde o espírito morre
a fim de que nasça uma verdade que é a sua própria negação. Quando estive em
Djemila, havia vento e sol, mas isso é outra história. O que é preciso dizer,
em primeiro lugar, é que ali reinava um vasto silêncio, pesado e compacto –
algo semelhante ao equilíbrio de uma balança. Pios de pássaros, o som da flauta
de três orifícios, um patear de cabras, rumores que vinham do céu e outros
tantos ruídos compunham o silêncio e a desolação desses lugares.
(...) Por esse árido esplendor
andáramos a vagar o dia inteiro. Pouco a pouco, o vento, que mal se percebia no
inicio da tarde, pareceu-nos crescer com o passar das horas e ocupar novamente
toda a paisagem. Soprava de uma abertura entre as montanhas longínquas, a
leste, chegava apressado do fundo do horizonte e vinha cabriolar em cascatas por
entre as pedras e o sol. Sem parar, zunia com força através das ruínas, girava
num circo de pedras e de terra, banhava os montões de blocos devastados pelo
granizo, envolvia cada uma das colunas com seu sopro e depois ia derramar-se
com gemidos incessantes sobre o foro que se abria ao céu.
Sentia-me estalar ao vento como os
mastros de um navio. Esvaziado pela metade, os olhos a arderem e os lábios
crestados, minha pele secava a um ponto tal que não mais me pertencia.
Antigamente, graças a ela eu decifrava a escritura do mundo. Nela o vento
costumava traçar os sinais de sua ternura ou de sua cólera, aquecendo-a com seu
hálito de verão ou mordendo-a com seus dentes de gelo. No entanto, tão
longamente roçado pelo vento, sacudido durante mais de uma hora e aturdido de
tanto resistir, acabei por perder a consciência do contorno do meu próprio
corpo.
Tal um seixo polido pelas marés, assim
estava eu, polido pelo vento, desgastado até a alma. Sentia-me parcela daquela
força que me fazia oscilar; cada vez uma parte maior dela; até que finalmente
eu era essa própria força, confundindo as pulsações do meu sangue com as
grandes batidas sonoras do coração omnipresente da natureza.
(...) Logo, difundido pelos quatro
cantos do mundo, descuidado, esquecido de mim mesmo, sou este vento e, no
vento, estas colunas e este arco, estas lajes que exalam calor e estas
montanhas pálidas que circundam a cidade deserta. E jamais senti com tanta
intensidade, e a um só tempo, o desprendimento de mim mesmo e a minha presença
no mundo."
Albert
Camus,in Núpcias, O Verão, Círculo do Livro
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