terça-feira, 20 de setembro de 2016

Há lugares onde o espírito morre

"Eu tinha dois ou três anos, tenho agora sessenta, e o apelo da luz é o mesmo, como se dela tivesse nascido e só a ela não pudesse deixar de regressar. Entre o primeiro crepúsculo e o último, sempre o corpo todo se deixou penetrar por esse ardor que se fazia carícia na parte mais diáfana e imponderável do ser, e a que, se não lhe chamarmos luz também, não saberemos nunca que nome dar."
20.11.85
Eugénio de Andrade, in Vertentes do Olhar (1987)
"Há lugares onde o espírito morre a fim de que nasça uma verdade que é a sua própria negação. Quando estive em Djemila, havia vento e sol, mas isso é outra história. O que é preciso dizer, em primeiro lugar, é que ali reinava um vasto silêncio, pesado e compacto – algo semelhante ao equilíbrio de uma balança. Pios de pássaros, o som da flauta de três orifícios, um patear de cabras, rumores que vinham do céu e outros tantos ruídos compunham o silêncio e a desolação desses lugares.
(...) Por esse árido esplendor andáramos a vagar o dia inteiro. Pouco a pouco, o vento, que mal se percebia no inicio da tarde, pareceu-nos crescer com o passar das horas e ocupar novamente toda a paisagem. Soprava de uma abertura entre as montanhas longínquas, a leste, chegava apressado do fundo do horizonte e vinha cabriolar em cascatas por entre as pedras e o sol. Sem parar, zunia com força através das ruínas, girava num circo de pedras e de terra, banhava os montões de blocos devastados pelo granizo, envolvia cada uma das colunas com seu sopro e depois ia derramar-se com gemidos incessantes sobre o foro que se abria ao céu.
Sentia-me estalar ao vento como os mastros de um navio. Esvaziado pela metade, os olhos a arderem e os lábios crestados, minha pele secava a um ponto tal que não mais me pertencia. Antigamente, graças a ela eu decifrava a escritura do mundo. Nela o vento costumava traçar os sinais de sua ternura ou de sua cólera, aquecendo-a com seu hálito de verão ou mordendo-a com seus dentes de gelo. No entanto, tão longamente roçado pelo vento, sacudido durante mais de uma hora e aturdido de tanto resistir, acabei por perder a consciência do contorno do meu próprio corpo.
Tal um seixo polido pelas marés, assim estava eu, polido pelo vento, desgastado até a alma. Sentia-me parcela daquela força que me fazia oscilar; cada vez uma parte maior dela; até que finalmente eu era essa própria força, confundindo as pulsações do meu sangue com as grandes batidas sonoras do coração omnipresente da natureza.
(...) Logo, difundido pelos quatro cantos do mundo, descuidado, esquecido de mim mesmo, sou este vento e, no vento, estas colunas e este arco, estas lajes que exalam calor e estas montanhas pálidas que circundam a cidade deserta. E jamais senti com tanta intensidade, e a um só tempo, o desprendimento de mim mesmo e a minha presença no mundo."
Albert Camus,in  Núpcias, O Verão, Círculo do Livro

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