Mas guerra, guerra, qual guerra?
"Eu avançava dentro de mim. Via o
mundo em guerra e desconhecia o que era a guerra, excepto na indigestão de
guerras que estudava nos livros de História. Tudo guerras, as páginas e páginas
de compêndios que me obrigavam a engolir relatavam umas com cem anos, outras
com trinta, batalhas, cercos, tratados, pilhagens, nomes de heróis, e
finalmente vinha a paz. Eu assistia pela primeira vez na vida, cá de longe, aos
reflexos da guerra, coisa que se passava para lá dos Pirenéus, em avançadas, em
destruições totais, carnificinas de aldeias, cidades, um mundo que me chegava
nas primeiras páginas dos jornais, no noticiário que relatava as campanhas
pelos vários campos da Europa. Ia aprendendo geografia. Um vazio enorme
apoderava-se de mim no momento preciso em que escalava a ladeira dos anos. O
pneu furado deixava sair tudo o que de bom e mau lá tinha dentro. Aquilo a que
mais tarde chamariam um 'washbrain'. Esvaziara-me o esforço desconexo de tanto
exame e de tanto trânsito para ser homem. Nunca pensei o que era ser homem,
desconhecia que um homem só é digno quando aceita as consequências das suas
acções, desconhecia os esforços empregados para se fingir que se mantém um zelo
permanente pelas instituições. E tal a inconsciência do nosso estado de
espírito, que estou a ver o actor António Silva, em representação no teatro
Variedades, pleno de guerra, notícias aterradoras, ele, no meio da confusão do
palco, em que toda a gente perguntava as últimas notícias, onde se relatavam
casos que só podiam ser salvos pela Cruz Vermelha. No encontro dessas
conversas, o António Silva, como vindo das cavernas, olha para aqueles tipos
que discutiam e, muito admirado, diz: "Mas guerra, guerra, qual
guerra?"
Ruben
A., «O Mundo à Minha
Procura», vol. II, Assírio & Alvim, p.121
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