Shakespeare
«Para
lá do organizado, do metódico, das horas certas, dos acontecimentos de
calendário, das festas com os primos dos primos dos primos de um nobre, estava
o verdadeiro valor universal do Inglês, esse, ele sabia da sua existência,
era-lhe dado todos os dias por Shakespeare. Quis conhecer esse fenómeno, sabia
de umas peças que tinha escrito, 'Hamlet' e "Macbeth' para ilustrar, mas o
resto não chegava muito além das fronteiras, talvez umas comédias para chorar
no irreal quotidiano. Sem Shakespeare eu não podia meter o dente na Inglaterra,
menos ainda na humanidade. Comecei à cata, devorando jornais, indo aos sítios
mais espantosos para o ver no palco. Lembro-me dos tempos heróicos de Campden
Town onde o actor Donald Wolfit deve ter dado umas vinte peças, representando
sempre os principais papéis - seu Rei Lear arrebatou-me, fisgou-me no mundo que
eu procurava. O final, com Cordélia nos braços, atingiu o sublime, arrasou-me,
fui ao camarim para o abraçar. Precisamente para isto que eu emigrara,
encontrava-me certo, encontrava o que queria. Estava feliz, a felicidade do
contentamento, do homem que realiza em si uma obra de arte, efémera, mas verdadeira
escultura que permanece. Lear actuava no mundo, a mensagem presente, o domínio
da tragédia sem mácula. Por detrás da organização aparente dos Ingleses, vivia
o caos da humanidade, o grito de sobrevivência, o andar para a frente nos
domínios infinitos de um dia a dia que, à vista desarmada, era chocho, chato,
insonso, mal condimentado, cerveja quente sem tempero, na decadência. Um mundo
que tem o Shakespeare nunca está na decadência, esta a verdade que os meus
conterrâneos vedavam no seu panorama míope. O Shakespeare puxava outros lá para
longe, para fora do âmbito do jornal, das partidas e chegadas, das sessões
solenes, da energia ociosa. Quem não tem um Shylock na família? Quem não tem um
Iago? Quem não tem um Bruto? Quem não tem um Banquo? Quem não tem um Romeu?»
Ruben A., «O
Mundo à Minha Procura», vol. III, Assírio & Alvim, p.165,166
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