Por Eugénio Lisboa
“No dia 7 de Abril de 1911, à tarde, isto é, seis meses após a proclamação da República em Portugal, Manuel Teixeira-Gomes chega a Londres, onde irá ser acreditado como Ministro de Portugal, na capital britânica.A escolha do escritor algarvio, doublé de homem de negócios de considerável fortuna, não fora pacífica. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Bernardino Machado, procurara outro nome que correspondesse, segundo ele, a um maior número de qualidades adequadas ao cargo. Estas qualidades definidoras do “perfeito diplomata” têm sido motivo de especulação, ao longo dos séculos e, por vezes, o caderno de encargos previsto chega a roçar o delírio. Ottaviano Maggi, por exemplo, publicou em 1596 uma tese intitulada De Legato, na qual sustentava que um enviado diplomático deveria ter formação teológica, conhecimento dos filósofos gregos e ser especialista nas ciências matemáticas, incluindo-se nestas a arquitectura e a física; deveria ainda ser competente em direito, música e poesia e ser especialmente conhecedor de ciência militar; sem esquecer proficiência em Grego, Latim, Francês, Alemão, Espanhol e Turco, deveria, além disso, ser aristocrata, de nascimento, rico e bem parecido. Está-se mesmo a ver que nem Teixeira-Gomes nem ninguém do seu tempo ou de qualquer outro tempo poderia jamais responder positivamente a um tão sumptuoso caderno de encargos.
Teixeira-Gomes, à primeira vista, não mostrava sequer o perfil mínimo requerido: pouco versado em política – que lhe não interessava por aí além -, sem curso superior concluído, homem de negócios activo e eficaz mas também viajante compulsivo e impecável gozador dos “alimentos terrestres”, imoralista assumido, mas de maneiras irrepreensíveis, que lhe davam o perfil de “a very distinguished gentleman”, que, todavia, se não exprimia em inglês, escritor aos quarenta anos e criador, na década que precedeu a sua nomeação para Londres, de uma espécie de produto literário que não apontava para o perfil mais exigido ao diplomata (elegante, hedonista, desbocado e frontal, assumidamente “sem moral nenhuma”), o autor de Sabina Freire (1905) ofereceria pois algum fundamento à relutância de Benardino Machado. Mas um homem arguto e experimentado nas lides da diplomacia, o Ministro da Grã-Bretanha em Lisboa, Sir Lancelot Carnegie, acolheu calorosamente o nome de Teixeira-Gomes, “quase garantindo”, informa Norberto Lopes, na sua biografia do escritor- diplomata, “[quase garantindo] que o seu governo daria, com satisfação, o desejado agrément.”
O famoso – e notório – diplomata Harold Nicholson, no seu livro Diplomacy, inventaria, mais modestamente, apenas quatro qualidades requeridas por um bom diplomata: veracidade, precisão, calma e despretensiosidade. São poucas, mas boas. De notar, sobretudo, uma que parece desmentir a cínica sabedoria corrente: refiro-me à “veracidade”, qualidade de que o diplomata português usaria sempre, recusando, na sua bagagem, as clássicas “manha” e “duplicidade”, vulgarmente tidas como fazendo parte do equipamento diplomático. Teixeira-Gomes, de-resto, faria uso sistemático das quatro vantagens enumeradas por Nicholson: veracidade, precisão, calma e despretensiosidade. Elas seriam instrumentais na sua final e decisiva aceitação por parte do establishment inglês.
Como tantos, antes e depois dele, Teixeira-Gomes não pensava que o posto em Londres viesse a ser de trabalho absorvente. Talvez ali pudesse dar continuidade aos trabalhos literários a que se entregara, com prazer, nos últimos dez anos. Como se enganava! A sinecura entrevista afinal não o era e o homem de acção, que também havia nele, aliado ao profissional consciencioso, iria abater uma média de dezoito horas de trabalho por dia, com a luz do seu gabinete na missão de Londres ainda acesa bem para além da meia-noite. De tudo isto dá o diplomata conta, numa admirável carta que, com data de 20 de Abril de 1927, escreve de Túnis, a João de Barros: “Pensava, no entanto, a caminho da Inglaterra”, observa o escritor, “que a missão não seria de tal modo absorvente, que me impedisse de continuar os trabalhos literários, a que por via de regra, e por tradição, quase todos os diplomatas se dedicam e pensava, sobretudo, em terminar um livro, Londres Maravilhosa, cujo primeiro capítulo aparecera no único número da revista intitulada Vida Nossa ou coisa semelhante – que o Fialho publicara. Mas depressa me desiludi ao perceber a situação em que tinha de me desenvencilhar, e compreendia a hostilidade da corte, do governo, da imprensa, e do público inglês; as maquinações do ilustre, mundano e influente Soveral, a acção de presença de D.Manuel e D. Amélia; e as intrigas dos numerosíssimos emigrados realistas, que tinham assentado barraca em Londres, entre os quais havia gente activa e inteligente, e que dispunha de dinheiro, e forma de o empregar em proveitosa propaganda.”
Eram, de facto, três obstáculos de monta: a Inglaterra e os ingleses, com o seu peculiar modo de ser; a monarquia inglesa e os realistas portugueses emigrados em Londres (incluindo o ex-rei e o ex-ministro de Portugal em Londres, Marquês de Soveral). Mesmo para um espírito cosmopolita e culto, como Teixeira-Gomes, o solo inglês não era o seu habitat preferido: dera-se sempre melhor com a luz, o colorido e a vivacidade dos países do meio-dia: Itália, Espanha e Portugal, desde que, por Portugal, se entendesse, sobretudo, o Algarve. Os ingleses, enfim, tinham, é claro, qualidades. Mas era uma “gente singular” – de uma singularidade diferente daquela que o escritor descodificara no seu conto célebre. Não gostavam de mudanças e os portugueses acabavam de mudar tudo em Portugal, de havia seis meses àquela parte. “Deplorar a mudança é o imutável hábito de todos os ingleses”, disse-o um inglês, Raymond Postgate. Primeiro agravo. Havia também, é provável, a comida: o diplomata português não era um comilão, mas tinha o paladar sofisticado e exigente dos alados fruidores dos alimentos terrestres – que trincara, com gosto, em Portugal e na Itália. Ora a Inglaterra disse-o já Jackie Mason, “é o único país do mundo em que a comida á mais perigosa do que o sexo.”
Havia também a conversa: embora distinto de maneiras e discreto q.b., Teixeira-Gomes era português e algarvio – amava o comércio social e, em viagem pelo estrangeiro, nunca lhe custou entabular relações com estranhos ou, sendo necessário, relações íntimas com estranhas. Ora, disse-o o poeta alemão, Heinrich Heine, “o silêncio pode definir-se como uma conversa com um inglês.” Havia também, naquela gente, o recato, a famosa reserva, o gosto exagerado da privacidade, a recusa quase mórbida do brilho e do talento cintilante: “Os ingleses admiram instintivamente quem quer que não tenha talento e seja modesto a esse respeito”, dizia esse escritor, grande crítico de teatro e de literatura, e espírito pecaminosamente fulgurante, que se chamou James Agate.
Ainda um ponto: o trincador dos frutos da terra, habituado a viver em boas moradias e a frequentar, em viagem, hotéis confortáveis, estranharia não pouco o inglês, uma criatura que, nas palavras escarninhas de George Bernard Shaw, “pensa estar a ser virtuoso quando está simplesmente a sentir-se inconfortável”.
Havia, no outro prato da balança, alguns sinais “mais”. Ao longo da obra do diplomata-escritor, são várias as passagens dedicadas às diversas seduções da capital britânica. Nas Cartas sem Moral Nenhuma, por exemplo, refere-se à “relva – esse «green» túpido e macio, que é uma das incomparáveis especialidades inglesas” e, ainda neste mesmo livro, refere a cidade de Johnson, em termos inesquecíveis: “Com um francês da minha amizade, [ao tempo destemido decadentista e faustoso deformador à maneira de Beardsley – hoje de um classicismo cristalino -] me encontrei a miúdo em Londres no decorrer de dum Verão abafado, sufocante, afumegado, como só nas fabulosamente povoadas margens do Tamisa a humanidade suporta. Nem por isso a babilónica metrópole – Londres estarrecedora, Londres incalculavelmente múltipla, desvairadamente infinita, misteriosa, tentacular, hermética, derradeiro refúgio da Esperança que o mundo inteiro baldasse, etc. [...] – nem por isso perdia qualquer das suas seduções nas inumeráveis, iriadas cambiantes da arte e da luxúria.” Não devem também esquecer-se as páginas admiráveis com que abre o livro Londres Maravilhosa, nas quais, depois de tecer uma comparação bem recortada entre a esbelteza cartesiana e ampla de Paris, e as seduções ínvias, tortuosas e perturbantes de Londres, acaba por concluir: “Toda a gente gosta de discretear a respeito de Paris; eu prefiro lembrar-me de Londres...”
Isto, em resumo muito resumido, quanto à Inglaterra e os ingleses.
Depois, havia a monarquia. Os ingleses têm o hábito intrigante de achar que, sem a monarquia, não há uma Inglaterra viável. O mais extraordinário é que muito trabalhista de topo de gama partilha deste dogma bizarro. Os ingleses agarram-se à monarquia como a um hábito perverso. Já no final do século XX, o actual príncipe Carlos – eterno rei adiado – achava maneira original e desastrada de defender o regime, dizendo que “a monarquia é a profissão mais antiga do mundo.” E ao simpático Rei Jorge VI, que tão galhardamente se comportou durante a 2ª Guerra Mundial, escorregou-lhe um dia o pèzinho, sem se aperceber bem do alcance do que dizia: “Nós [a família real] não somos uma família: somos uma firma.” Como firma bem gerida, ela cuida, fundamentalmente, dos seus próprios interesses, pondo-os ocasionalmente acima dos interesses nacionais. O que não perturba, por aí além, o país que tão bem glosa os “british interests”, pondo-os acima dos interesses da humanidade em geral e até da ética mais corrente. É verdade que a pompa e circunstância, tão bem orquestradas pelo compositor Elgar, mais do que deslumbrar os inocentes, serve também como boa forma de rendimento: os pacóvios de todo o mundo acotovelam-se diariamente às portas do palácio de Buckingham, para assistirem ao patusco render da guarda e, se possível, espreitarem a fímbria de um vestido de Sua Majestade. Seja como for, a monarquia é, ali, para ser levada a sério. Como muito bem postulou Lord Birkenhead, “nos homens como nos cavalos, o princípio hereditário quer dizer alguma coisa.” O que terá levado o inevitável e sempre arreliador George Bernard Shaw a retorquir: “Os reis não nascem reis, são fabricados por alucinação artificial.”
Depois, havia a monarquia. Os ingleses têm o hábito intrigante de achar que, sem a monarquia, não há uma Inglaterra viável. O mais extraordinário é que muito trabalhista de topo de gama partilha deste dogma bizarro. Os ingleses agarram-se à monarquia como a um hábito perverso. Já no final do século XX, o actual príncipe Carlos – eterno rei adiado – achava maneira original e desastrada de defender o regime, dizendo que “a monarquia é a profissão mais antiga do mundo.” E ao simpático Rei Jorge VI, que tão galhardamente se comportou durante a 2ª Guerra Mundial, escorregou-lhe um dia o pèzinho, sem se aperceber bem do alcance do que dizia: “Nós [a família real] não somos uma família: somos uma firma.” Como firma bem gerida, ela cuida, fundamentalmente, dos seus próprios interesses, pondo-os ocasionalmente acima dos interesses nacionais. O que não perturba, por aí além, o país que tão bem glosa os “british interests”, pondo-os acima dos interesses da humanidade em geral e até da ética mais corrente. É verdade que a pompa e circunstância, tão bem orquestradas pelo compositor Elgar, mais do que deslumbrar os inocentes, serve também como boa forma de rendimento: os pacóvios de todo o mundo acotovelam-se diariamente às portas do palácio de Buckingham, para assistirem ao patusco render da guarda e, se possível, espreitarem a fímbria de um vestido de Sua Majestade. Seja como for, a monarquia é, ali, para ser levada a sério. Como muito bem postulou Lord Birkenhead, “nos homens como nos cavalos, o princípio hereditário quer dizer alguma coisa.” O que terá levado o inevitável e sempre arreliador George Bernard Shaw a retorquir: “Os reis não nascem reis, são fabricados por alucinação artificial.”
Foi contra esta “alucinação” que teve de confrontar-se Teixeira-Gomes, representante de um país que acabara de mandar pela borda fora uma monarquia que tantos amigos contava na congénere inglesa. Disse um francês que “uma raça de deuses e de deusas desceu do Olimpo aterrando na Inglaterra.” Estes deuses e deusas, ainda por cima, ricos e com “interesses” em Portugal, não acharam graça nenhuma à mudança de regime nem à entrega do poder aos fraldiqueiros da República: ficavam ameaçados, de uma só vez, o dinheiro e as boas maneiras.
O rei D. Manuel II e mãe, a rainha D. Amélia |
Na primeira biografia de fundo dedicada ao grande diplomata português a quem Teixeira-Gomes sucedeu, Paulo Lowndes Marques, com objectividade, brilho e humor, recria, para nós, O Marquês de Soveral – Seu Tempo e Seu Modo. Dele recolho esta curta passagem acutilantemente definidora: “Soveral, hábil e inteligente, sabia fazer grande uso da sua capacidade de criar relações próximas, até íntimas, com os grandes do seu tempo, em especial com as figuras reais. Foi o seu acesso rápido aos centros do poder que lhe deu o seu grande prestígio profissional e o tornou um instrumento tão útil como importante da política externa do seu país. Verificámos já essa habilidade em Berlim, como em Madrid, e também em Lisboa, onde se revelou tão íntimo de todos, nomeadamente do rei D. Carlos. Mas Londres, foi onde Soveral sublimou esta «arte», chegando ao cúmulo de se tornar o amigo mais próximo do príncipe de Gales, mais tarde, em 1901, rei Eduardo VII. Na verdade, era não só amigo no sentido convencional, como companheiro de muitas pândegas e aventuras, sobretudo no capítulo feminino. Eram ambos exímios coureurs de femmes, não só conquistadores de mulheres bonitas da alta sociedade, como clientes das afamadas «maisons closes» da Belle Époque parisiense.” O que, se era geralmente aceite e confirmado, lhe suscitava também algumas invejas e remoques, na imprensa, onde era alcunhado de “the blue monkey”. Eram farpas ocasionais mas, de um modo geral, o marquês era adulado, admirado e invejado. Carlos Lima Mayer, citado por Lowndes Marques, escrevia, de Londres a um amigo: “Luiz Soveral”, dizia, “é um autêntico “enfant miracle”: está a caminho de colocar na lapela toda a alta sociedade de Londres [...]. É íntimo do Ritz, cozinheiro do Jockey – o que é um triunfo mundano; e joga o bilhar com o Príncipe de Gales – o que é apenas um triunfo político.” Mas os seus triunfos de diplomata não se resumiram a isto. Foi, por exemplo, à sua intimidade com D. Carlos e com Eduardo que se deveu ter podido impedir que os domínios ultramarinos portugueses fossem partilhados entre a Inglaterra e a Alemanha. Ser aristocrata, ser importante socialmente, ajudava, nesta altura.
Sir John Ure, que foi embaixador britânico em vários países e desempenhou o importante cargo de Comissário Geral do Reino Unido na Exposição de Sevilha, em 1992, no seu livro interessante, bem informado e extremamente divertido, intitulado Diplomatic Bag – An Anthology of Diplomatic Incidents and Anecdotes from the Renaissance to the Gulf War, afirma ter existido “uma autêntica maçonaria internacional de diplomatas oriundos da aristocracia que tinham, frequentemente, mais em comum com os seus homólogos de outros países do que com os seus próprios compatriotas”. Isto, como é óbvio, foi motivo de preocupação, nas democracias modernas, e não pouco foi feito para pôr cobro a esta situação, até no Reino Unido onde, actualmente, ser aristocrata não figura nas especificações que tornam elegível, para o cargo, qualquer aspirante a diplomata. Mas Soveral foi ainda do tempo em que vigorava esta “maçonaria internacional” e não pouco lhe deve ter doído ver, como sucessor seu, um burguês como Teixeira-Gomes, mesmo endinheirado e de distintas maneiras. Deste ressentimento terá derivado o acinte que, segundo o autor de Agosto Azul, teria posto na intriga que moveu ao primeiro enviado da República, em Londres. De pouco – ou por pouco tempo – lhe valeu. Teixeira-Gomes não levaria muito a impor-se junto do Foreign Office e da família real. Sir John Ure, no livro que já citámos, confirma o que muitos outros diplomatas, de Talleyrand para cá, têm vindo a sustentar, nomeadamente, que a diplomacia não é feita de conversa suave e rendilhada, nem de astúcia e duplicidade. Sir John identifica quatro qualidades insignes que deve ter o grande diplomata: imaginação, engenho, integridade e inteligência. Saliente-se, mais uma vez, a tónica na integridade, de que Teixeira-Gomes fez grande uso na sua vida profissional em Londres. Com determinação, trabalho, coragem e seriedade, foi-se impondo. E viria, ele próprio, a dizer: “No Foreign Office, com o andar do tempo, estreitei amizades, das quais algumas ainda subsistem e outras foi a morte que as rompeu; o inglês, se é amigo, é-o para sempre, de uma forma igual e inalterável, embora sem as manifestações excessivas que são habituais aos latinos.” O próprio Soveral, fino apreciador do mudar dos ventos, acabaria por se render, enviando a Teixeira-Gomes um livro, assim como quem fuma o cachimbo da paz. Mas o seu prestígio não se ficou pelo Foreign Office: estendeu-se à sociedade aristocrática e à da própria Casa Real. Norberto Lopes, na sua preciosa biografia, nota: “Outra prova do prestígio que gozava na Corte inglesa e do apreço em que era tido o seu gosto em matéria de arte consiste no facto de a rainha Alexandra ter pedido a Teixeira-Gomes que dirigisse a decoração do seu gabinete oriental no Palácio de Buckingham, o que fez morrer de inveja os melhores decoradores e antiquários de Londres, que nunca tinham conseguido transpor os umbrais desse misterioso santuário.”
Teixeira-Gomes desempenhou um papel ímpar na defesa dos interesses de Portugal, no contexto europeu, apesar de todas as intrigas e até torpezas que teve que defrontar, num período especialmente difícil para a afirmação da jovem República. Intrigas feitas, não só nos meios ingleses e na imprensa inglesa, mas igualmente na portuguesa. Numa carta de desagravo dirigida ao ministro dos estrangeiros, Teixeira de Queirós, em 1915, o grande escritor e diplomata, reagindo aos ataques malévolos de certa imprensa portuguesa, faz, de caminho, um inventário eloquente do seu trabalho diplomático, nos anos de estadia em Londres: “Tenho seguido com muita curiosidade”, observava, “a campanha ultimamente movida contra mim na imprensa portuguesa e não posso deixar de exprimir a V. Exa. a minha surpresa pela ignorância em que os meus acusadores se encontram a respeito da forma como me tenho desempenhado do alto e tão honroso como difícil cargo em que me investiu o Governo Provisório.
“No dizer dos meus detractores tem sido constantemente nociva aos interesses da República a acção do homem que tratou do reconhecimento das novas instituições pelo Governo inglês, conseguindo que este resolvesse a Alemanha, a Áustria, a Itália e a Espanha a acompanhá-lo no reconhecimento; que obteve de Sir Ed. Grey declarações claras e precisas no Parlamento acerca da existência e natureza do trabalho de aliança; que obteve do Governo inglês a sua nota cominatória e decisiva ao Governo Espanhol quando este pretendeu apossar-se das ilhas Selvagens; que na questão esclavagista levou o governo inglês a substituir-se ao nosso próprio governo para nos defender em repetidos «Livros Brancos» e no Parlamento das piores acusações que nos assacavam os nossos adversários, os quais, para que a dificuldade fosse maior, eram vultos de grande importância no seu próprio partido; que, apesar da oposição da corte inglesa, obteve deste Governo, em Outubro de 1917, que ordenasse a ida a Lisboa de um navio de guerra (...) embora os monárquicos afirmassem que nunca o conseguiríamos e para o impedir despendessem toda a sua influência; que levou Sir Edward Grey, a declarar no Parlamento que o governo não interviria no caso dos prisioneiros políticos, quando a opinião inglesa na sua parte mais influente e importante reclamava essa intervenção; que impediu a assinatura do tratado anglo-alemão de 1898 sobre as nossas colónias africanas, o qual o parentesco e amizade das famílias reinantes nos dois países e a influência de que dispunha o marquês de Soveral não conseguira evitar; que de sua iniciativa diligenciou e obteve que se efectuasse em nome do Governo da República um tratado de arbitragem com a Inglaterra, tratado que, anteriormente feito em nome do rei de Portugal, fora ruidosamente reclamado pelos monárquicos como penhor exclusivo das vantagens que a Realeza trazia ao País; e que, finalmente (para encurtar esta resenha que desejo cingir só a factos capitais), quando as circunstâncias da presente guerra tornaram inevitável a nossa participação activa, solicitou e recebeu das mãos de Sir Ed. Grey o memorando de 10 de Outubro invocando a aliança e encarecendo a importância do nosso auxílio em termos tais que o Sr. João Chagas, no seu recentíssimo folheto Portugal perante a Guerra, declara ser esse o documento mais honroso para Portugal que existe no arquivo do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros.”
Teixeira-Gomes foi realmente a quem se ficou devendo, por influência pessoal e firmeza de negociador, a salvaguarda dos interesses portugueses em África, pagos à custa da entrada de Portugal no apocalipse de 14-18.
O Presidente da República,Manuel Teixeira Gomes e o chefe do Governo, António Maria da Silva, cercados pelos generais Vieira da Rocha e Norton de Matos. |
O lugar escolhido para o retiro final, depois de anos de deambulação por Itália, pelo norte de África, foi Bougie, a 250 Kms de Argel. Deste ancoradouro final, dirá Norberto Lopes, que ali visitou o ex-Presidente, em 1939, que era “a cidade mais graciosa, mais alegre, mais verde, mais florida, mais bem situada do norte de África”. O grande esteta, o grande fruidor sempre soubera escolher. Em Bougie, passaria os últimos dez anos da sua vida, olhando a magnífica baía, passeando a pé, encharcando-se de sol. E recordando os bons momentos que a vida lhe dera – e não foram poucos. Ali recordaria, por certo, os onze anos passados em Londres, onde representara, galhardamente, uma República frágil e desarrumada. A qual defendera, com honra, trabalho árduo, competência, coragem e elegância. Recordaria a Londres do bom combate diplomático, mas também a outra, da qual escrevera: “Sim, não oferece dúvida, em Londres é que se vêem os mais formosos cabelos do mundo inteiro, e era com uma dessas prestigiosas comas – mas douradas ao gosto da moda nos moldes do penteado grego – que a menina inglesa, extremamente gentil, por detrás de quem o acaso me colocara, no concerto do Sarasate, me tirava a luz dos olhos e me açambarcava a atenção que eu deveria consagrar, ciosamente, à música.”
Estes momentos, em que recordava os frutos da terra, que outrora trincara, com delícia, amaciavam-lhe, por certo, o envelhecer e faziam-no aceitar, com sagesse, a morte que se aproximava. E que veio buscá-lo, em 18 de Outubro de 1941, no seu isolamento multiplamente populado. Teixeira-Gomes sempre se dissera “suficientemente apetrechado para a existência solitária”. Com tais “apetrechos”, mesmo em Londres, mesmo manietado pela necessária discrição e reserva a que o votava o protocolo diplomático, Teixeira-Gomes achara modo de se deixar seduzir pelos alimentos terrestres – que lhe iriam mais tarde, recordando-os, junto ao soberbo mar africano, povoar prodigiosamente uma solidão que o não era. " Eugénio Lisboa
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