O dia de Portugal ou o dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas celebra-se a 10 de Junho. Tem revestido muitas formas de celebração. Quem nasceu no tempo da ditadura sabe a importância que era dada à força organizacional do poder instituído e ao militarismo em muitas paradas e marchas nas praças mais emblemáticas da capital ou, por razões nacionalistas, noutras zonas do país. Herdou-se o dia de Portugal com uma forte conotação castradora, um sabor a censura, um travo de falta de liberdade, uma hipócrita oportunidade de prender os incautos à história nacional que os agrilhoava. Não era o espírito português que levara Camões a percorrer o mundo. Não era a voz do poeta que se fazia ouvir, espalhando-se pelos quatro cantos do mundo. Era , talvez, a pretensa imagem de um Portugal ultramarino que desejava fazer deste minúsculo território dos confins da costa mais ocidental da Europa, uma grande força .
E foi traumática esta herança. Reabilitar o dia de Portugal foi uma terapia longa que levou tempo.
Muitos poetas, alguns escritores e diversos intelectuais se propuseram dar a esta data o seu verdadeiro significado. O novo tempo , iniciado titubeantemente no 25 de Abril de 1974, veio alterar esta imagem do 10 de Junho. A lusofonia tinha de ter uma roupagem nova. Libertadora e sem restrições orientadoras. A data passou a ter como responsáveis muitos desses nossos valores da Literatura e de outros áreas da Cultura. Recordo o valoroso Jorge de Sena e ainda, mais recentemente, António Barreto, lúcido e assertivo. Muitos souberam fazer deste dia um dia português, embora a interminável cerimónia de condecorações pelo Presidente da República seja excessiva e desmotivadora.
( Este ano, a cerimónia é em diáspora. Realiza-se em Paris. Não conheço o programa.)
Mas houve quem soubesse levar Portugal bem longe, em 1987. Um dos meus poetas eleitos: Miguel Torga. Foi a Macau falar de Camões. Fê-lo com magnânima sabedoria e originalidade. Eis um excerto do seu Diário:
"Macau, 9 de Junho de 1987 - Era preciso que um poeta português viesse aqui falar nesta hora final , para que ela não tivesse fim. E vim eu.
CAMÕES
Evocar Camões em Macau tem , pelo menos, um perigo: o de parecer que se dá como certa a lenda de que ele pisou este chão. Era ponto assente na minha selecta de quarta classe que aqui teria sido provedor-mor dos defuntos e ausentes, e até uma gravura celebrava a gruta , com um busto à entrada , onde o épico se refugiara para dar largas à inspiração. Ora, nenhum documento coevo, nem qualquer investigador idóneo confirmam tais asserções, e o mais provável é que nunca tenha aportado em carne e osso a estas paragens. O que não aquenta, nem arrefenta. Nunca me meteram medo as ratoeiras da tradição.
(...) Sim, Camões esteve aqui e é daqui, porque aqui chegou o espírito de todo um povo que, como ninguém, consubstancia na vida e na obra , a legitimar-nos o impulso errático, a curiosidade, a ousadia, a tenacidade, a sabedoria e as ambições na América, na África , na Ásia, e na Oceania. Génio ímpar que o mundo memoriza e honra mas não conhece, a nossa própria pedagogia caseira no-lo ensinou, e creio que ensina ainda, erradamente. Na escola do meu tempo, d'Os Lusíadas aprendia-se tudo, menos o que importava. Os mestres de então como que profiavam em os tornar odiosos à nossa compreensão e sensibilidade juvenis. Para além da gramática e da genealogia das ninfas , nada nos diziam da beleza sem par da poesia que faísca a cada passo dos trâmites da narrativa, da erudição que subjaz a cada estrofe, da imaginação que flumina cada episódio e o emblematiza, e, sobretudo, da significação universal da obra , a mais actual e objectiva epopeia de quantas se conhecem. A história mental da humanidade regista outras igualmente famosas. A de Gilgamesh, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida e a própria Divina Comédia, que é uma epopeia de almas. Mas nenhuma como Os Lusíadas cantou a natureza com tanta naturalidade e flagrância, exprimiu o homem tão de acordo com o entendimento que ele hoje tem de si mesmo, e celebrou com igual justiça e perenidade um esforço civilizacional colectivo. Tudo se encontra nesse prodigioso relato da insatisfação moderna a vencer as trevas da ignorância , a arredondar a concepção do mundo e a antever-lhe a harmonia futura.O homem é, finalmente, não mais um adorador limitado, mas um interrogador ilimitado. Duvida, congemina, verifica. O próprio poeta, em vários passos da obra , confirma esse vezo de uma mentalidade nova.
A verdade que eu canto, nua e pura
vence toda a grandíloqua escritura.
Ou ainda:
Se os antigos filósofos , que andaram
Tantas terras por ver segredos delas,
As maravilhas que eu passei, passaram,
A tão diversos ventos dando as velas,
Que grandes escrituras que deixaram!
Que influição de sinos e de estrelas,
Que estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo sem mentir, puras verdades.
(...) O poema é ao mesmo tempo um hino de exaltação nacional e uma exegese inexorável da realidade. Ainda hoje impressiona o verismo com que a tromba marítima ou o escoburto nos são descritos no canto quinto.
" (...) O difícil para cada português não é sê-lo; é compreender-se. Nunca soubemos olhar-nos a frio no espelho da vida . A paixão tolda-nos a vista. Daí a espécie de obscura inocência com que actuamos na História. A poder e a valer , nem sempre temos consciência do que podemos e valemos. Hipertrofiamos provincianamente as capacidades alheias e minizamos maceradamente as nossas , sem nos lembrarmos sequer de que uma criatura só não presta quando deixou de ser inquieta. E nós somos a própria inquietação encarnada. Foi ela que nos fez transpor todos os limites espaciais e conhecer todas as longitudes humanas.
Quatrocentos anos depois de a termos alargado até este Extremo Oriente, estamos aqui a despedir-nos de um recanto da pátria e a evocar Camões. Não, como disse em termos formais, mas em termos factuais. É uma definitiva meta cronológica que irrevogavelmente assinalamos. E, numa circunstância tão significativa, tudo quanto disséssemos e fizéssemos à revelia do maior de todos os portugueses seria lamentavelmente negativo. Sem a benção dos seu nome e o critério da sua universalidade , nem daríamos um penhor válido de nós, nem poderíamos ter a certeza de voltar. De voltar eternamente."
Miguel Torga , in " Diário XV - Diário ( volumes XII a XVI)", pp 1466,1467,1468,1474, Círculo de Leitores
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