Por Miguel Urbano Rodrigues
22.Jan.16
"Há escritores
que entraram no Olimpo da literatura tendo publicado apenas um ou dois
romances. Assim sucede, por exemplo, com o príncipe siciliano Giuseppe di
Lampedusa, autor de Il Gatopardo, e com o mexicano Juan Rulfo, com a novela
Pedro Páramo. Caso similar é o do boliviano Marcelo Quiroga Santa Cruz
(1931-1980). Com a particularidade de que Quiroga Santa Cruz, além de um grande
escritor, foi um exemplar revolucionário.
É muito raro
mas acontece. Há escritores que entraram no Olimpo da literatura tendo publicado
apenas um ou dois romances. Um exemplo: o príncipe siciliano Giuseppe di
Lampedusa (1896-1957), autor de Il Gatopardo *, obra póstuma. Outra excepção
foi o mexicano Juan Rulfo (1917-1986), pioneiro do realismo mágico, com a
novela “Pedro Páramo”**. Caso similar é o do boliviano Marcelo Quiroga Santa
Cruz (1931-1980).
Conheci Marcelo Quiroga em La Paz em Outubro
de 1970. Fomos amigos.
O general
Juan José Torres tinha tomado o poder após um golpe militar. Respirava-se uma
atmosfera de revolução na capital da Bolívia quando Augusto Montesinos - El
Canalla, personagem de um livro meu - me levou a casa de Marcelo.
- Quero que o conheças. Vale a pena.
E mais não
disse.
Ele morava
então num apartamento muito confortável, mas não luxuoso. Nas paredes havia quadros
de pintores bolivianos e um desenho de Picasso. O bom gosto e a sensibilidade
do proprietário estavam presentes na sobriedade dos móveis do salão.
Marcelo tinha o porte de um aristocrata
espanhol do século de ouro.
Trocamos
impressões sobre o governo de Torres.
Citou Marx
durante a conversa. A sua linguagem impressionou-me. Escolhia as palavras
cuidadosamente. Falava pontuando.
Reencontrei-o semanas depois em Santiago numa
festa em casa do poeta brasileiro Tiago de Melo. Representava o seu partido, o
Socialista, na posse de Salvador Allende.
Nessa noite
falamos muito, sobretudo da Bolívia. Ele acreditava que Torres iria realizar
uma política progressista, rompendo a tradição, mas não confiava no frágil
apoio do exército.
Dois anos
depois voltei a estar com ele, também em Santiago. Era um dos muitos bolivianos
que pediram asilo ao Chile apos o golpe militar de Hugo Banzer em Agosto de
1971.Visitou-me no hotel e depois convidou-me para almoçar na casa onde vivia
com a mulher e os dois filhos. Cristina era uma jovem muito bonita; falava
pouco, mas ouvia o marido com devoção.
A nossa
conversa incidiu sobretudo sobre a América Latina. Marcelo encarava com algum
cepticismo o futuro do governo da Unidade Popular chilena e temia a
intensificação da ofensiva do imperialismo num contexto em que as teses da
guerrilha rural tinham perdido credibilidade apos a trágica morte do Che na
Bolívia.
Revi-o em
1973, ainda em Santiago. Amílcar Cabral tinha sido assassinado semanas antes.
Recordo que a descolonização africana foi o tema principal desse reencontro.
Surpreendeu- me a sua formação humanista e a vastidão inesperada dos seus
conhecimentos sobre a História da África
subsaariana.
O golpe de
Pinochet fermentava nos bastidores e, quando ocorreu, Marcelo Quiroga e a
família refugiaram-se na Argentina, onde a convite de Perón foi professor de
Ciências Politicas na Universidade de Buenos Aires.
No Brasil eu
recebera, enviado por um amigo, um livro seu, editado em La Paz em 1959, “Los
Deshabitados”***. Era uma novela, o que estranhei, pois não o imaginava voltado
para a literatura.
Tremendo
erro. Tão grande que somente hoje, transcorridos quarenta anos, tomei
consciência de que Marcelo Quiroga era desde a juventude um grande escritor, um
dos mais importantes da América Latina.
Não conservo
a menor ideia da minha reacção ao ler a novela. Sei que escrevi sobre Deshabitados uma recensão que foi
publicada na revista literária Crisis, de Buenos Aires. Perdi o recorte. Na
memória apagou-se a recordação desse artigo. Mas sinto vergonha ao imaginar o
que Marcelo Quiroga terá pensado então de mim.
Ele não fez
referência à minha desastrosa recensão quando almoçamos em sua casa, num
subúrbio da capital, no dia do funeral de Perón. Foi amistoso, tratou-me como
amigo do seu povo e camarada estimável.
Devo ter lido
Los Deshabitados em diagonal. Não
percebi que era uma obra-prima literária.
Não voltei a
encontrar Marcelo Quiroga. Rompeu-se o contacto quando voltou a La Paz em l977,
clandestinamente, para reorganizar o Partido Socialista.
Marcelo
Quiroga nasceu em Cochabamba numa família abastada da classe dominante.
Seu pai, José
Quiroga, foi administrador da Patiño Mines, de Simon Patiño, o multimilionário
rei do estanho.
Marcelo
recebeu uma educação de qualidade nos melhores colégios. Estudou Direito em
Santiago do Chile e formou-se em Filosofia e Letras na Universidad Mayor de San
Andrés em La Paz onde ocupou posteriormente as cátedras de Ciências Politicas e
Historia Universal da Literatura.
No exilio foi
também professor de Economia Politica na Universidade Nacional do México. Tinha
adquirido como académico e intelectual revolucionário um grande prestígio em
toda a América Latina.
Foi um dos
fundadores do Instituto dos Economistas do Terceiro Mundo e participou em
Washington como membro da delegação latino-americana num seminário sobre a
Politica Hemisférica, em Paris, na Sorbonne, do Congresso de Americanistas; e
em Caviat, na Jugoslávia, de uma reunião internacional para Análise do
Socialismo Cientifico.
Publicou
centenas de artigos em jornais da América Latina, da Europa e dos Estados
Unidos.
LOS
DESHABITADOS
Em 1957
escreveu a novela “Los Deshabitados” que guardou na gaveta durante quase dois
anos. Quando decidiu publicá-la, em 1959, numa modesta edição, passou
desapercebida. Nem os seus amigos mais íntimos tiveram a percepção de que esse
livro, bem após a morte do autor, seria considerado pela crítica um clássico da
literatura latino-americana. Na opinião de Jorge Luis Borges e de Gabriel
Garcia Marquez é uma das melhores novelas latino-americanas da segunda metade
do século XX.
Na minha
primeira leitura não me apercebi, repito, de que tinha em mãos um grande livro.
É um daqueles que em que cada página, quase cada parágrafo, deve merecer uma
atenção concentrada. Parece monótono, mas não é.
Quando a
crítica internacional, décadas depois, descobriu a importância de Los Deshabitados, e dezenas de trabalhos
académicos foram dedicados ao seu estudo, surgiram opiniões contraditórias
sobre as influencias que Marcelo Quiroga reflectia na obra.
Houve quem
citasse Camus e Sartre, e até Kafka. Marcelo era um leitor apaixonado da grande
literatura francesa e do grande checo, mas essas opiniões não têm fundamento.
Los Deshabitados é uma novela sem acção. A técnica
narrativa é a de Joyce no Ulisses. No
texto da contracapa Marcelo escreve que o livro nasceu de um estado de
melancolia e o seu «conteúdo argumental é insignificante».
À medida que
se avança na leitura surgem em cadeia personagens cujo discurso revela uma
solidão inultrapassável. São fechadas, caminham sem alegria na fronteira da
incomunicabilidade. A cidade onde vivem não tem nome, mas fica transparente que
é uma urbe provinciana, talvez na Bolívia. Não há descrição de paisagens, de
interiores. O importante é o que se passa na consciência das personagens, como
em Proust e Virgínia Woolf. O Padre Justiniano sabe que pisa a fronteira da
heresia. Durcot, aspirante a escritor que teme a aventura da escrita (nunca
escreveu) e Maria, sua namorada, toleram-se com desprezo, sem se amarem. Ele
chegou a admitir a opção pelo sacerdócio para fugir ao nada. Mas é agnóstico,
desconhece Deus e prescinde dele.
«Não nos
habita sequer uma dúvida» - diz a Justiniano- «estamos desabitados».
Flor e Teresa,
as duas idosas irmãs, arrastam uma existência triste, vegetativa, rumo à morte.
Acabam por se suicidar.
Dois
adolescentes, Pablo e Luis, são a excepção nesse aquário humano de gente vazia.
Trocam o primeiro beijo na busca ainda distante e incerta do sexo e do amor.
Ambos destoam da asfixiante atmosfera envolvente.
O
REVOLUCIONÁRIO ÉTICO
Conheci
poucos revolucionários tão puros como Marcelo Quiroga. Eles me trazem à memória
dois amigos maravilhosos, ambos comunistas: Henri Alleg e Georges Labica.
Um dos
biógrafos de Marcelo Quiroga, o escritor Adolfo Cáceres Romero, afirmou que a
sua vida foi «um modelo de virtudes e sacrifício». Faço minha a opinião.
A revolução
democrática e nacional boliviana de 1952, que levou à Presidência Victor Paz
Estenssoro (que logo a traiu), contribuiu para uma reflexão profunda do jovem
Marcelo. Mas a sua ruptura com o meio social a que pertencia não foi imediata.
Eleito deputado pela primeira vez, como independente, pelo Partido Democrata
Cristão, utilizou a tribuna parlamentar para combater a ditadura do general
René Barrentos. Foi então, alvo de um atentado; cassaram-lhe o mandato, foi
preso e deportado para a região selvática do Alto Madidi.
Em 1969,
quando o presidente Ovando lhe confiou o Ministério de Minas e Petróleo, já era
marxista. A sua decisão de nacionalizar a Gulf Oïl foi encarada em Washington
como desafio intolerável.
No ano
seguinte, demitiu-se quando Ovando deu uma guinada à direita; fundou então, com
um grupo de intelectuais, o Partido Socialista, com um programa claramente
revolucionário.
Apoiou desde
o início o governo progressista do general Juan José Torres e lutou nas ruas
contra o golpe de estado de Hugo Banzer.
Somente
regressaria à Bolívia, clandestinamente, em 1977, para reorganizar o seu
Partido Socialista.
Eu
acreditava, com alguma ingenuidade, que Marcelo Quiroga seria um dia Presidente
da Bolívia. Foi três vezes candidato, a última em 1980. Mas obteve sempre
votações inexpressivas.
Nesse mesmo
ano, quando resistia na Central Obrera Boliviana - COB ao golpe militar do
general narco traficante Garcia Mesa foi barbaramente assassinado pelos paramilitares
do coronel Luis Arce.
Ao receber a
notícia em Portugal, recordei o amigo e o revolucionário com afecto e emoção.
O
descobrimento do grande escritor tardou muitos anos.
Foi
prodigiosa a evolução do novelista de Los
Deshabitados para o revolucionário que aprendi a admirar. Continuo a ter
dificuldade em acompanhá-la.
No seu
espólio foi encontrado o manuscrito de uma novela Otra vez marzo. Deveria ser parte de uma trilogia. Foi publicada
postumamente. Não tive a possibilidade de a obter.
A ponte entre
o pessimista proustiano e joyciano e o lutador que adquire uma confiança
inquebrantável no povo como sujeito da História é muito difícil de atravessar.
Marcelo conseguiu.
Fernando
Pessoa lembrou que «é possível «viver uma vida desapaixonada e culta, e
pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta per estar sempre à beira
do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele. Viver essa vida longe
das emoções e do pensamento. Só no pensamento das emoções e na emoção dos
pensamentos.» (in Livro do Desassossego, pag.70).
O jovem
escritor de Los Deshabitados poderia ter seguido por esse caminho. Mas dele se
desviou. Marcelo, consciente do mistério da breve aventura da vida, compreendeu
que, para lhe conferir significado e dignidade, o intelectual que recusa o
sistema deve lutar pela transformação das sociedades modeladas pela engrenagem
opressora do capitalismo. E soube fazê-lo exemplarmente.”
*GIUSEPE DE
LAMPEDUSA, O LEOPARDO, Editorial Teorema,256 páginas, Lisboa
**JUAN RULFO, PEDRO PÁRAMO, Fundo de Cultura
Económica, México***
*** MARCELO QUIROGA SANTA CRUZ, Ediciones Los
Amigos del Libro, 214 páginas, La Paz, 1980-2ª Edicion
Miguel Urbano Rodrigues, Crónica publicada em diário.com, 22.01.2016
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