"Todos os escritores (artistas) são infelizes - leio de vez em quando, não sei onde. Mas afirmá-lo o próprio não será petulância? um modo de se dizer merecedor de compaixão? um modo de 'denegar' a sua grandeza? ou a convicção dela? Das muitas injúrias com que me vão medalhando, há duas que me intrigam - a de que sou um «vaidosão» e a de que sou um «invejoso». Porque se me revejo em comprazimento e subsequente vaidade, como posso ser invejoso? E se sou invejoso, como é que posso ser vaidosão? As duas coisas é que não. É portanto favor escolherem. (...) Retornemos à primeira frase - todos os escritores são infelizes. Porque é verdade. Mas se eu disser que sou infeliz é dizer-me com direito a queixar-me, como se não houvesse mais infelizes sobre a Terra e a supor implícita a afirmação de que sou «escritor». De modo que o melhor é não dizer nada ou sequer pensá-lo. Ou pensar que sou realmente infeliz e deixar de fora do pensamento qualquer outra conversa. Ou admitir que todo o artista é um desgraçado que se cumpre em encantamento nessa desgraça. Ou que se é feliz nos raros instantes em que se levanta por sobre a infelicidade que lhe coube. Mas não insisto porque corro o risco de me sair tudo ao contrário. E porque se não há-de ser simplesmente vaidoso do que se quer fazer, não tendo por isso inveja a ninguém que não queira fazer o mesmo, sentir-se todavia arrasado de sofrimento porque se não foi capaz, como é fácil verificá-lo ao rever-se o que se fez? Todo o artista é infeliz. Dando-lhe as voltas que se quiser, acaba talvez por estar certo. "
Vergílio Ferreira, in Conta-corrente, nova série, vol IV, Bertrand Editora, p.179-180
Diário de Vergílio Ferreira - Ficcionalidade, "Intimismo", Cronologia.
Diário de Vergílio Ferreira - Ficcionalidade, "Intimismo", Cronologia.
Por JOAQUIM R. BENTO
RESUMO
Acabava
Vergílio Ferreira o seu Conta - Corrente 4, quando nos ocorreu a reflexão que
ora se publica, em sua memória. A mesma incide na problemática do estatuto
ficcional da escrita diarística, em geral, e do diário de Vergílio Ferreira -
que recentemente o destino interrompeu - em particular.
Surgiu este
estudo de um episódio ocasional: a controvérsia que se gerou no seio do júri do
Prémio da Casa Mateus, um concurso de ficção, a que foi apresentado o 3.º
volume do diário de Vergílio Ferreira, Conta - Corrente 3.
Não sabia
aquele júri se na ficção se poderia incluir a escrita diarística de Vergílio
Ferreira, já que o diário, enquanto reflexo de factos históricos
contemporâneos, parece não respeitar o carácter ficcional da obra literária.
No volume
seguinte ( Conta - Corrente 4, pp, 113-114), Vergílio Ferreira contesta aquela
relutância, argumentando que o diário não é, em relação a este aspecto, muito
diferente do romance:
Um romance
só muito raramente é pura construção imaginativa. (...) O meu romance Manhã
Submersa é todo ele praticamente assente em factos "reais". E em
alguns nem os nomes inventei. ( Referindo-se depois ao seu diário comenta:)
Considerá-lo exterior à ficção literária é julgá-lo da família do Diário da
República. Ora não é.
E o Conta -
Corrente acabou por ser premiado, juntamente com Horácios e Coriácios, livro de
poesia de Pedro Tamen. Mas a literatura autobiográfica apresenta-se paradoxal,
em relação à antinomia realidade - ficção, como anota Lejeune:
« Par
opposition à toutes les formes de fiction, la biogrephie et l'autobiographie
sont des textes référentiels: exactement comme les discours scientiphique ou
historique ...» (1975, p.36)
O diário de
Vergílio Ferreira refere-se a pessoas e factos conhecidos e reais, localizáveis
historicamente através da data que é a medida exacta do tempo e atributo do
documento histórico. Onde reside então a ficção?
Se um
romance pode assumir completamente a forma de diário íntimo, como distinguir
estes dois géneros de produção literária?
Génese e evolução do diário íntimo
Se recuarmos
até à origem do diário íntimo, verificaremos, com Gilot (1979,p.19), que a
escrita diarística, até ao século XIX, tem fins imediatamente utilitários: o
alívio do sofrimento, a preservação da personalidade, a autoformação ou
simplesmente o prolongamento da memória: «.... gens qui écrivaient pour eux
parce qu'ils avaient besoin d'écrire quelque chose, quelque part, (...) et non
pas pour faire littérature».
Estes
documentos pessoais constituem, na sua generalidade, o resultado de um circuito
fechado de comunicação: Em grande parte dos casos, é arredada toda hipótese,
por parte dos autores, de estes textos virem a ser lidos por outrem, muito
menos de virem a ser publicados.
Na prisão,
por exemplo, este género de escrita serve para aliviar a clausura, como explica
Gilot (1978, p.2):
(o
prisioneiro) désire l'enfer, s'il le croit, pour se voir en compagnie (...).
Celle d'un assassin, d'un fou, d'un malade puant, d'un ours (...). Si le
prisionnier est un homme de lettres, qu'on lui donne un écritoire et du papier,
et son malheur diminue de neuf dixièmes.
O período da
adolescência é particularmente propício à escrita diarística. Mas o
adolescente, como refere Philippe Renard, numa comunicação dedicada a este
tema, Étude sur trois journaux de jeunes filles (1978, p.298), também não
escreve para publicar.
Os diários
de adolescência constituem textos crípticos que servirão de refúgio, perante a
incomunicabilidade com o adulto.
O carácter
íntimo e secreto desta escrita resulta da natureza dos conteúdos que se
escondem, por razões morais e sociais. Encerram-se então no cofre da
consciência ou nas páginas de um diário.
Do "intimus" ao
"externus"
A partir do
século XIX, regista-se um interesse crescente por este género de escrita, e
autores de renome começam a publicar os seus diários.
Desta
evolução dá conta Aguiar e Silva (1979, p.1279), ao anotar que o diário íntimo
do século XX já aparece claramente instituído como género literário. É
procurado por um público numeroso e de póstumo passou a ântomo.
Atendendo às
origens e à designação, o diário íntimo apresenta-se como uma escrita
paradoxal: conciliando a divulgação com o "intimismo", como sublinha
Renard (1978):
«Tout
journal intime tend donc à se nier comme tel. (...) un journal intime ne devrais
pas s'assimiler à aucune forme de littérature publiable» (Renard, 1978, p.298).
Com efeito o
valor semântico de "intimo" (do superlativo latino intimus) não se
adequa a escritas como o Conta - Corrente de Vergílio Ferreira: um diário que
se destina a ser publicado e vendido e que, por isso, perde - necessariamente -
o caracter "intimo".
Deveremos
reconhecer, com Gilot (1978), que o diário deixou de ser «un dialogue avec soi»
para se transformar num diálogo «de soi avec l'autre»: (...) il y a une présence
imaginaire de l'autre à l'intérieur du journal» (p.21).
O diário
moderno, como sublinha também Chocheyras (1978-a,p.219), tem tendência a
voltar-se para o «exterior», para o diálogo com o público, reduzindo-se à
designação o carácter "superlativamente interior" desta escrita.
É neste
contexto que se enquadra o Conta - Corrente de Vergílio Ferreira:
Se
puséssemos por escrito tudo o que nos passa por dentro, seríamos monstruosos.
Sou absolutamente incapaz de me «confessar» seja a quem for, nem que seja a mim
próprio (...) se não me ponho nu na rua, não é por medo (...). É um problema de
decência, de respeito por nós (...) (Conta - Corrente 1, p. 43).
E
estabelece, a este respeito, um sugestivo contraste com o romance: «Um romance
é um biombo: a gente despe-se por detrás» (Conta - Corrente 1, p.11). Reside
aqui a derradeira diferença entre o diário e o romance - uma vez que este
último se pode apoderar das características formais do primeiro:
« (...) tous
les procédés que l'autobiographie emploie pour nous convaincre de
l'authenticité de son récit, le roman peut les immiter et les a souvent immités
(Lejeune, 1975, p.26).
No diário
ocorre o que Lejeune denomina «pacto autobiográfico», i. é, a identidade de
nome, de assinatura: o escritor assume o nome próprio da personagem,
denunciando-se implícita - ou explicitamente, como acontece em Conta - Corrente
4:
«Abeira-se
de mim um cavalheiro de meia-idade e pergunta-me: - É o escritor Vergílio
Ferreira? - Sou.» (p.192).
Ora, se o
romance se pode apropriar de todas as caracteristicas formais do diário, não
consegue, contudo, estabelecer esta identidade de nome entre autor, narrador e
personagem. Na assinatura dá-se uma aproximação imediata entre a instância que
escreve e a instância que compra e que lê. Nela se estabelece uma forma
particular de contacto entre o "graphe" e o "bios",
respondendo às frequentes tentativas que o leitor empreende no sentido de «ver
e tocar» o homem quotidiano (autor empírico), fazendo perguntas e pedindo
autógrafos, «numa dimensão de imediatismo como não esteve na própria obra»
(Conta - Corrente 4, p.195).
No diário,
para além deste pacto autobiográfico, ocorre também um «pacto referencial»
(Lejeune, 1975.p.329), em que se estabelece com o leitor uma espécie de
contrato sobre o grau de "intimidade/referencialidade" que este
último pode esperar.
Vergílio
Ferreira deixa bem explicito que não pretende «despir-se» ou «confessar-se», e
manifesta-o tantas vezes que provocou a atenção dos psicanalistas e o diálogo
frequente com estes, no próprio diário. Na página 57 do 1.º volume, Vergílio
Ferreira insiste: «Já o disse, não tenho queda para o "confesso", até
porque implica sempre um pouco de abjeccionismo e de exibicionismo».
Considera
que o seu diário está nas centenas de cartas aos amigos e «essas mesmas falsas»
no que são respeite a «questões sérias», as quais podem, ainda assim, ser
disfarçadas ou temperadas pelo gracejo.
Assim, no
projecto do escritor não cabe a exteriorização da sua vida íntima e esta
tendência revela-se cada vez mais acentuada, como se infere do início do 4.º
volume: (p.9)
Sim. Vou
começar (...) Mas na realidade é verdadeiramente um começo. Eliminar todas as
referências ao banal quotidiano, reduzir-me ao que de si tem alguma
significação (...) irei tentar outra coisa. Reflexões, impressões do que de
importante possa ter acontecido, ideias que valha a pena existirem.
Neste volume
são, com efeito, escassas as referências à vida pessoal do escritor:
correspondência, viagens, conferências, leituras, vida familiar, etc.
Predominam as reflexões sobre problemas existenciais comuns a todo o ser
humano: vida, morte, velhice, Deus, etc. Assim o «eu» e o «agora», dão lugar ao
universal e ao atemporal.
O Conta -
Corrente não é, afinal, um espaço de intimidade, mas um espaço de comunicação
com o leitor, incluindo no próprio texto respostas às reacções do público, como
acontece no Conta - Corrente 4 (pp. 129 e 295). Tem objectivos bem diferentes
dos textos utilitários designados por diários íntimos.
A data:
cronologia ou estrutura?
O que
caracteriza o diário, como sublinha Chocheyras (1978-b, p.225), é nele ser
focado o «campo da actualidade», ao contrário do que acontece com a
autobiografia, as confissões, memórias, etc., que se ocupam do passado.
Em textos de
carácter imediatamente utilitário, a data tem como finalidade primordial situar
os acontecimentos no tempo. Contudo, o Conta - Corrente segue a quotidianeidade
dos registos, não dos eventos, como decorre do seu programa: «E se eu tentasse
uma vez mais o registo diário do que me foi afectando?» (Conta - Corrente 1,
p.11).
E se, nos
primeiros volumes, os assuntos do dia detêm ainda um lugar de destaque, a
partir do IV volume, o programa já é diferente: «Eliminar todas as referências
ao banal quotidiano». (IV, p.9). E do programa passou à execução imediata: nos
quatro dias seguintes limita-se a "redigir" esse programa, o que nada
tem a ver com o acontecer diário. Em suma, salvo raras excepções, como a viagem
à Grécia (p.216 ss) e ao Brasil (p.263 ss), o leitor não consegue surpreender
qualquer relação entre a data e o conteúdo do enunciado: (1983, p.353)
«17-
Setembro (Sábado). Porque a questão é esta: um dia que não escreva parece-me um
dia esbanjado, um dia em que não paguei (...).
Ou então
encontra apenas uma relação pretextual, que é a situação mais frequente:
(p.204)
«22-
Fevereiro (Terça). Chove. Bom tempo para reflectir. Sobre quê? Reflectir. Por
exemplo (...)
A data
deixou de ter o valor referencial que lhe cabia nos primeiros diários, em
releção aos problemas quotidianos, para se transformar num artifício que
confere uma organização aparente a esta escrita. Boerner (1978, p.219) cita
Smith, a este propósito, para sublinhar que o diário é a anarquia:
«un
demi-chaos (...): changez les morceaux de place, il n'en sortira jamais une
statue, (...) l'auteur (...) a capitulé devant le probleme de la forme (...)
une des impasses de la littérature.
A data
surge, com efeito, como tentativa frustre de organização de textos
fragmentários voltados tendencialmente para a pesquisa metafísica.
Philippe
Renard (1978, p.297) pensa que esta escrita anárquica é própria de uma
sociedade que tende para a massificação, para a esquizofrenia, para o delírio,
para a desintegração do «eu».
Conta -
Corrente não deixa de constituir também um conjunto assistemático de reflexões,
aparentemente estruturadas através da datação.
Todavia,
estas numerosas páginas transportam-nos até ao pulsar quotidiano do pensamento
de Vergílio Ferreira, tornando mais viva a sua genésica presença na memória da
comunidade literária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Silva, Vitor Manuel de (1986). Teoria da literatura. Coimbra: Almedina.
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Gérard (1972). Figures III. Paris: Éditions du Seuil.
Gilot,
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formes littéraires. Geneve: Librairie Droz.
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Philippe (1975). Le pacte autobiographique. Paris: Éditions du Seuil.
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Wellec, René e Warren, Austin (1955). Teoria da literatura. Europa-América.
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