Eugénio
Lisboa – escrita lúcida, límpida e luminosa
Onésimo Teotónio Almeida |
Por
Onésimo Teotónio Almeida
“Entrei no vol. V de Acta Esta Fabula,
de Eugénio Lisboa (Memórias – V – Regresso a Portugal: 1995-2015, Opera Omnia,
2015) com ânsias de o devorar num ápice, embalado que vinha pelos três
anteriores (não errei nas contas; o 2º volume ainda não foi publicado). Para um
apreciador de memórias e diários, esperava-me ali de novo uma festa. Além do
mais, este vinha anunciado como misturando os dois géneros.
Controlei a vontade de uma leitura a
eito, sem interrupções, optando por fazê-la a conta-gotas, antes de adormecer.
Em regra, tive mesmo que decidir fechar o livro e enfronhar-me entre lençóis
porque ficar horas seguidas acordado a virar páginas era o que verdadeiramente
apetecia.
Isto bastará para que o leitor conclua
do prazer que foi ter por companhia as memórias de Eugénio Lisboa nuns quantos
serões de inverno, refastelando-me regaladamente com uma escrita lúcida,
límpida e luminosa, ouvindo a voz do autor relatar-nos dias cheios,
variados, preenchidos frequentemente com
prolongadas e proveitosas leituras nos intervalos de agitadas ocupações por
esse mundo.
Nos já quatro volumes publicados, a
viagem pelas décadas da vida de Eugénio, desde os seus impenitentemente
lembrados com saudade de uma infância e adolescência na antiga Lourenço
Marques, somos expostos a uma voz que recua no tempo a limpar o pó da
recordação e a recuperar do arquivo das suas memórias o que de mais salvável
contêm. Eugénio conseguiu sempre recriar ambientes nítidos, retratando cenas e
personagens da sua vida com uma vitalidade e acutilância só possíveis graças a
uma memória espantosamente fresca.
A maior novidade neste V volume é a
abertura de janelas com vista para o seu apetitoso diário inédito. Sugerindo
levemente no volume IV, aqui o espaço concedido ao diário é significativamente
alargado. Se na escrita memorialista Eugénio Lisboa não deixa nunca a distância
derrapar em sentimentalismos ou nostalgias românticas, na escrita diarística,
traçada sobre o acontecimento, ele revela o seu agudo, fulminante olhar sobre
o quotidiano. Na verdade, a prosa de Eugénio é vigorosa porque enxuta, limpa de
toda a adiposidade pegajosa. Ela salta em cima dos dias acompanhando
penetrantes relances sobre o quotidiano, oferecendo-lhe uma expressividade que
cativa o leitor e o faz testemunha de cada acontecimento.
São magníficos certos retratos
desenhados por este artista do verbo, alguns deles elaborados em sucessivas
revisitações, como é o caso de Eduardo Prado Coelho. José Saramago, António
Lobo Antunes também, tal como José Rodrigues dos Santos (e, entre as figuras
políticas, Santana Lopes). Vergílio Ferreira surge como uma éminence grise que
Eugénio Lisboa trata quase como sua nemesis, pelo menos um símbolo daquilo que
ele não gostaria de ser (o autor destas linhas, amigo e admirador de Vergílio,
consegue apreciar a perspectiva de Eugénio e o modo como a expressa, sem
necessariamente concordar com tudo o que ele diz acerca do nosso
ensaísta-romancista). Sobre Eduardo Prado Coelho, são-nos servidas várias
entradas captando ângulos da personalidade e obra do crítico literário que
durante duas décadas imperou na cena cultural portuguesa. Espreite-se esta:
“[…] o EPC vive numa agitação, num saltar, numa “acumulação”, numa ausência de
sossego (necessário à nutrição de um pensamento) – que não são o leito
fecundador de algo que tenha solidez. Quer mostrar que está em todas, que tudo
o interessa com minúcia, que vai a todas as exposições, a todo o teatro, a
todos os concertos, conhece todas as divas, todos os actores, leu todos os
livros, viu todos os filmes, papou todos os almoços importantes, sabe tudo de
ciência, de filosofia, de lingerie, de cosmética, de psiquiatria, de casas de
alterne, de psicopatologia, de sexo (de todas as orientações e mais que
houvesse, ETC!”) (págs. 309s). Entre os
seus altamente estimáveis autores, reemergem, como habitualmente acontece nos
escritos do autor, Montherlant, Camus (não Sartre) e José Régio; mas também
António Sérgio e Ferreira de Castro, este desinibidamente elogiado por obras
injustamente esquecidas, como por exemplo A Selva (“Os intelectuais da nossa
praça farão boquinhas […] [p]referem acreditar que o Lobo Antunes é um génio e
o Saramago outro. Quanto a mim, prefiro, folgadamente, A Selva, […] que é,
fora de qualquer dúvida, um grande livro.” pág. 302)
Transparece ao longo de todas estas
páginas uma coerência de pensamento e intervenção cívicas norteados por uma
ética sólida e interiorizada, uma hombridade desenvolta e livre, mas
consciente e responsável pelas posições que toma e os pontos de vista que
defende e pratica na vida real, como o demonstra a obra deixada na empresa
petrolífera em Lourenço Marques; na Embaixada de Portugal em Londes, onde foi
Conselheiro Cultural; na presidência da Comissão Nacional da Unesco; na
Universidade de Aveiro, onde foi Professor Convidado.
Tudo o acima mencionado é servido ao
leitor em páginas de um português escorreito e directo, exacto e firme, lúcido
e transparente, porque Eugénio ama a língua como meio de expressão que deve ser
elegantemente cultivada, não para ofuscar ideias nem, na ficção, atrapalhar uma
boa narrativa. Por isso Eugénio não tem rebuço em confessar abertamente as suas
preferências romanescas: “A leitura dos bons romances ingleses e americanos
leva-me a ter alguma impaciência com quase toda a ficção lusíada. Pergunto aos
meus botões: “Esta gente terá vivido? Terá alguma coisa a dizer? E não me
venham com o sempiterno trabalho de linguagem. A linguagem serve para, não se serve
a si própria, por mais que possa e deva ser trabalhada. Não vive nem deve viver
no puro reino da masturbação.” (p. 262)
A linguagem de Eugénio Lisboa é um
exímio exemplo de como pôr em prática esse seu sentir sobre o que deve ser o
lugar da língua e como devemos usá-la para fazer arte romanesca e expressar
ideias, dialogar cívica e democraticamente com os nossos interlocutores.
O título geral destes volumes
memorialistas - Acta Est Fabula – revela um sentimento de estar feito aquilo
que o autor tinha de fazer. Todavia falta-lhe ainda escrever muito. Não apenas
mais esse 2º volume sobre o seu intenso e rico passado; os leitores seus fãs
esperam também que possa por muitos anos continuar a intervir na cena cultural e cívica lusitana,
ajudando-nos a pensar e a ver claro, saboreando a sua bela e fresca prosa.” Onésimo Teotónio Almeida, artigo
publicado em Portuguese Times - Crónicas
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