sábado, 5 de dezembro de 2015

Distopia

DISTOPIA
                  Para Mussa José Assis

Como será  o amanhã...!?
um itinerário sem destino?
um calendário de incertezas?
O que restará dessa anémica biosfera...!?
do fluxo agonizante das nascentes...
das bandeiras hasteadas pela vida!?
Dia a dia e esse palco inquietante...!
esse escasso oxigénio,
essa delgada água,
esse termómetro assustador.
Ano a ano e a ampulheta  do  caos escorrendo lentamente  nossas  vidas...!
nessa paisagem devorada,
nesse carbono letal,
nesse mapa pontilhado pela morte.

Como será o planeta do amanhã...!?
Um mar sem arquipélagos?
um oceano de migrantes?
uma praia de naufrágios?
Falo de uma temperatura cruel,
de paisagens derretidas,
de uma frota de icebergs navegando os sete mares.
Como será a terra do amanhã!?
um campo  calcinado?
uma lavoura sinistra?
Que sabor terão os frutos na próxima estação?
que surpresas nos escondem os segredos da ciência?
o que colheremos da alquimia da ganância?
Falo de patentes  criminosas,
de sementes suicidas,
dessa dinastia de flores virulentas polinizando a vida
e desse bizarro contrabando germinando sobre a terra.

Como será  teu  amanhã!?  
um teclado de emoções?
um híbrido palpitar?
Com que apetite digitarás as tuas ânsias
degustando essa cultura cibernética?
digerido  pelos circuitos  virtuais,
pelo marketing neurológico das partículas,
por esse “chip” instalado no teu cérebro,
processando uma ordem dogmática: conecte, “navegue”, consuma...
Com que senha  abrirás teu coração?
haverá um ícone para a solidariedade?
um link  para a compaixão?
Qual a fronteira entre tu mesmo e a máquina?
quem são essas moléculas engenhosas?
esses átomos amestrados
a devassar teu íntimo recanto de criatura?
Como será nosso amanhã!?
Uma bússola sem norte?
um insulto à liberdade?
com que farol iluminaremos nosso rumo
acuados pela ousadia da violência
e sitiados pelo próprio livre-arbítrio?
Aqui e acolá as estreitas fronteiras do pânico...
esse semáforo que não abre...
esse alguém que te observa...
esse olhar engatilhado...
uma abordagem indigesta
e o cronómetro do pavor computando teu destino.
No roteiro dantesco da sobrevivência
reabres dia a dia tua agenda...,
é o teu cotidiano decomposto,
essa incerteza diária de chegar...
essas balas que assobiam no perímetro dos teus passos.

Como será nosso amanhã!?
Um mundo sem idioma?
um cântaro de fel?
Falo de um território  dominado por estranhas hierarquias,
por facções tatuadas com os signos da maldade,
pelos  mercenários do vício
enriquecidos  pelos lucros homicidas.
Falo de uma legião de vítimas,
de uma síndrome cruel e invencível,
de criaturas e sonhos em farrapos.
Falo dos “juízes” da vida e da morte,
de sentenças e chacinas,
de um comando sinistro e impassível.
Falo da cidadania encurralada pelas milícias do ódio
e de um mercado inexorável do extermínio.
Como será o amanhã!?
um shopping de entretenimentos?
uma oficina de vaidades?
um imenso bazar de grifes e mesmices?               
Quem sabe...,  uma alameda  “fashion”...
onde desfilam as esbeltas silhuetas da ilusão,
estampadas, dia a dia, nas páginas coloridas do glamour. 
Ou, talvez, um teatro de incautos “marionetes”...
encenando  a sensualidade e  o acinte
na  pública ribalta do hedonismo!

Como será o amanhã?
Um santuário virtual do “encanto”?
uma cidadela da luxúria?
Falo da explícita pedagogia do erotismo,
 seus ícones, seus balcões,
suas vitrines pontocom.
De suas telas insinuantes,
seu varejo literário,
e sua indigesta ditadura musical.
Falo da sodomia on-line,
de devassadas alcovas eletrónicas
e desse promíscuo ritual de fantasias.
E pergunto, perplexo, pela pátria do amanhã...
e falo das paisagens sedutoras do poder,
desse cheiro putrefato que chega do planalto.
Falo de uma oficial  voracidade...
dessa doméstica fauna de homens públicos,
...essa nossa biodiversidade insustentável.
Falo da ascensão vertiginosa da esperteza,
dessa inumerável galeria de “celebridades”,
trajadas com as fisiológicas legendas do poder.
Falo do escândalo nosso de cada dia,
da nação envergonhada por quadrilhas palacianas,
por dossiês sonegados e pelos crimes arquivados.
Falo dessa insultante presunção de inocência,
dessa triste balada da alma humana,
dançando pela culpa absolvida
e gargalhando com escárnio da justiça.

O que sobrará enfim desse perene banquete...!?
para onde caminha essa infantil humanidade...
embriagada pelo licor das ilusões
e indiferente à dor dos desgraçados?
Quem sabe reste um naco qualquer de fraternidade
para ser digerido com um gole de esperança...
um “cardápio” para os filhos da miséria,
uma migalha perene...
para saciar essa fome que janta, na calçada,  o nosso lixo remexido.
E eis porque falo de uma alarmante geografia de lágrimas,
de uma favela planetária
de uma legião mundial de parias.
Falo de criaturas açoitadas pela vida
de um mundo que  “não dorme e que não come”
que “não lê e não escreve”...
Como saciar tanta  sede de justiça?
como conter essa fome parindo seus herdeiros?
Ó  Senhores...é tão triste ironizar a esperança
mas diante dessa insólita passarela
nós nos perguntamos: o que se espera dessa sórdida assembléia ???
Um projeto político para a solidariedade humana?
ou  emendas com  intenções inconfessáveis,
retórica ambiental e ongs humanitárias?
E o que se pode esperar  desse desfile de beldades...
novas “tendências” para a fraternidade
um  “estilo de vida” para os excluídos,
finos “tecidos” para cobrir o pudor dos maltrapilhos!!!???
Ou, talvez, “padrões” mais “chiques” de caridade,
 “estampas” coloridas para a compaixão,
melhores “ângulos” para fotografar a beneficência!!!???
Mas afinal quem ousa desfilar nessa excêntrica avenida!?
quem  são essas almas extraviadas,
essas tribos debochadas?
Quem comanda essas falanges
essa alcatéia  de homo sapiens,
de corruptos e deslumbrados,
de perversos e pervertidos?
Que poder é esse...
esse paradigma sombrio que invadiu nossa decência?

Que poder é esse?
potencial, subliminar, imprevisível...
É uma corporação, uma egrégora ???
Falo de um império global com seus invisíveis tentáculos,
seu discurso sedutor,
suas catilinárias e suas litanias,
suas metáforas globalizadas,
seus descarados silogismos e seus slogans mentirosos.
Quem  são eles?
nossos irmãos bastardos,
nossa herança cármica,
nosso “presente de grego” ?
Digo que é um sinistro “cavalo de Tróia”
há meio século parindo suas satânicas criaturas
invadindo  todos os caminhos
disputando os espaços da ilusão
conquistando todas as trincheiras
mascarando a liberdade
ironizando os códigos da verdade
silenciando a voz do coração.
São os negociantes do poder
os mercadores do sexo
as falanges do vício.
São os falsos profetas,
os tribunos celestes da intolerância
franqueados pela simonia
inaugurando um templo em cada esquina.
São os senhores do mundo e do impasse
manchados com as cores da discórdia.
São os fabricantes da bomba,
os que gargalham sobre o sangue dos caídos.
Seus nomes  se escrevem em todos os idiomas,
se escrevem  sob o signo de uma águia poderosa,
com os mortos e os órfãos das nações vencidas.
Se escrevem  com as siglas planetárias da ganância
e com os filhos planetários da miséria.
Senhores...para onde caminhamos...?
em que galeria serão expostas nossas ‘artes’...?
o que revelarão amanhã nossos retratos de Dorian Gray”,
pincelados com as cores da cobiça e da luxúria.
Falo da alma humana adoecida por chagas milenares
e pergunto como surgirá nossa face no espelho do amanhã...
maquiada com as sombras do orgulho e do egoísmo
e tatuada com tantos desatinos.
Falo dessa estesia emasculada,
dessa irreverente cadência de vaidades.
Falo dessa máscara hilariante da “felicidade”,  
de criaturas tombadas do abismo da ilusão.

E diante de “triunfo de tantas nulidades”
Todos afinal nos perguntamos: como  descrever o enredo do futuro???
Será um show permanente de aparências
ou uma trincheira de gangues e facções?
Será uma ilha oficial da fantasia
ou o gueto planetário da miséria?
Será ainda um vale semeado de ambição
ou já um planeta inteiramente saqueado?

(Ah! esse mundo  sitiado...
essa convivência pari passu  com a maldade...
esse estresse à flor da pele...
esse desencanto, essa impotência...
esse presente sem sentido do amanhã...)

O que restará do estado de direito
das Bastilhas e dos muros derrubados
das bandeiras hasteadas sobre o sangue dos tiranos
o que restará do Sermão da Montanha e  das chagas do Calvário
da revolução de outubro e do sonho de Ernesto
quem manterá acesa a memória luminosa dos heróis
quem defenderá a trincheira da decência
quem ousará dizer não
o que acontecerá com os últimos rebeldes

Senhores..eu vos peço perdão...
por este lirismo sombrio,
pelos meus versos perplexos,
por esse indigesto cantar.
                                                                         
Senhor, nós te pedimos perdão...
por tantas balas perdidas,
por tantas pérolas aos porcos
e pelos dossiês da vergonha.
Perdão Senhor
pela pedofilia on-line
e pela inocência ultrajada.
Perdão pelas cartilhas da vaidade
e as dietas assassinas.
Nós te pedimos perdão
por esses ninhos queimando,
por essa relva secando,
por essa floresta no chão.
Perdão, Senhor, por esses cardumes boiando
pelos rios asfixiados
por essas águas morrendo
Perdão pelas  chaminés borbulhantes,
por essas folhas exaustas,
pela agonia do ozônio,
por essa Gaia ferida.
E contudo...senhores, é imprescindível sonhar...
juntar os cacos da utopia
e crer, incondicionalmente, num amanhã...
É imprescindível sustentar a vida
para que os filhos da esperança possam respirar sua beleza.
Senhores... é também imprescindível indignar-se
não se acovardar ante a maldade,
porque é imprescindível virar o jogo
saber que só o que é justo faz sentido
e empunhar com paixão essa bandeira.
É  sobretudo  imprescindível unir nossas mãos em prece,
falar  consigo mesmo e com as estrelas
e acreditar..., que sobre esse vale de lágrimas,
um olhar compassivo nos ampara.
                                               Curitiba, 12 de Dezembro de 2006
Manoel de Andrade, poeta brasileiro, in " Cantares", Ed. Escrituras, São Paulo - Brasil, 2007

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