"Nunca
mais esquecera a oferta de Carlos Lacerda em mostrar-lhe a propriedade. Já
ensaiara algumas vezes embrenhar-se pelas alamedas com a ajuda das irmãs gémeas,
mas assim que percorria os primeiros metros escutava as palmas das amigas. Eram
o sinal da presença de Genoveva.
Então retornava para junto da mansão,
simulando apenas um pequeno passeio. E lá estava Genoveva conversando com as
gémeas, tentando convencê-las de que queria inteirar-se da saúde de Gemma, pois andava sempre preocupada com o bem estar dos
hóspedes.
O
tempo ia passando e a propriedade continuava um mistério. O fascínio de a
explorar era cada vez maior. Tinha necessidade de sentir o cheiro da terra
cultivada, de olhar as copas das árvores que se erguiam lá no fundo.
Apesar
da família Lacerda desvalorizar a atitude de Genoveva , não tinha ainda sido
capaz de se libertar do temor estranho
que esta sombra permanente lhe provocava. Os outros hóspedes
sentiam o mesmo. Tinham já feito conjecturas sobre a melhor maneira de a
ludibriar, mas todas tinham sido infrutíferas.
Genoveva
protegia um mistério ou defendia um segredo. Era uma barreira implacável para
quem se atrevesse a ir para além dos limites que ela impunha.
Concluiu
que todos a receavam e que estavam seguros que ela escondia vigorosamente
qualquer coisa.
Assim,
quando Carlos Lacerda a convidou para ir na manhã seguinte ao chalé a fim de
convidar o amigo para o concerto de Fados de Coimbra, aceitou de imediato.
Idalina que estava com ela foi igualmente convidada e nem sequer hesitou para
anuir.
Tomás
e Luísa Albuquerque iriam também. Partiriam por volta das dez horas da manhã,
pelo que o encontro seria no terraço.
Nessa
tarde, o tema da conversa com as gémeas e Teresa Gusmão foi sobre a excursão ao
chalé. Todas elas gostariam de a acompanhar, mas não tinham forças para um
grande passeio. Teresa Gusmão estava limitada
pela locomoção deficiente e as gémeas não se expunham a grandes esforços
receando o agravamento da saúde de Gemma. Preferiam apoiá-la na retaguarda como o vinham fazendo.
À noite sonhou com a quinta da infância. Percorreu todos os caminhos, acompanhada
pelos cães que com ela iam saudando a vida numa alegria incontida até chegar ao rio e espojar-se naquele tapete
verde imenso que o ladeava. Então, era o labirinto do devaneio onírico com a fantasia do real almejado. E quando
acordou, já Idalina estava pronta para sair para o pequeno almoço.
Tivera
uma noite longa e apaziguadora. Sentia-se em paz. Estava preparada para a
descoberta.
O
pequeno almoço foi tomado com um prazer que há muito não experimentava. Mas, quando
chegou ao salão sentiu uma dor pungente por todos aqueles que ali ficavam e não
podiam sonhar como ela por uma manhã de novos horizontes. Viver num horizonte
fechado ou ter perdido o horizonte era uma condenação abominável.
Colocou
Teresa Gusmão no terraço e esperou com Idalina e as gémeas a chegada da comitiva
exploradora.
Emília Navarro foi a primeira a chegar , esboçando um lindo sorriso:
Emília Navarro foi a primeira a chegar , esboçando um lindo sorriso:
-
Muito bom dia! Então sempre vai conhecer um pouco da propriedade! É uma pena que não se afoite mais, pois nada
a impede de a explorar. Eu não os posso
acompanhar. Tenho um compromisso com a escrita. Lamento muito porque gostaria
de lhe mostrar os meus locais preferidos. Fica, porém, para uma próxima
“expedição”. Se tiverem tempo, visitem a capela. É magnífica, além de ser um
local de grande valor arquitectónico e artístico, também faz bem à alma.
Por
que razão Emília parecia insinuar que ela tinha relutância em embrenhar-se
sozinha na propriedade. Consideraria
talvez que a sua relação com o desconhecido era problemática e que não
ultrapassara as imediações do Lugar porque isso representava uma enorme temeridade?!
Como
era possível apagar a ameaça que representava Genoveva. Que cegueira era aquela
que a impedia de enxergar a real Genoveva? Ou seria Genoveva ainda mais
astuciosa com estes hóspedes especiais? Tomaria outras precauções, ou
afivelaria mil e uma cândidas máscaras?
E que pena só agora todos se oferecerem para
lhe mostrar a propriedade. Trazia há muito o desejo de a visitar estampado nos
olhos, na boca, no rosto… E se isso não bastasse, todo o seu ser era atirado
para lá do horizonte percepcionado pela vista . A saudade do reencontro com a
terra era já uma força recuperada. Não esmorecera porque era uma lutadora. A
sobrevivência habitava-lhe o corpo e enchia-lhe a alma.
-
É muito difícil passear nesta propriedade. Quando cheguei ao Lugar, a Directora
alertou-me para que não me afastasse muito, pois a propriedade era muito grande
e poder-me-ia perder. Claro que não me assustei porque sou uma provinciana
habituada a longas caminhadas pelos campos e jamais me perdi. Na primeira
tentativa que efectuei para descobrir este espaço, mal tinha dado os primeiros
passos já Genoveva me abordava para que não prosseguisse sem a sua companhia,
apesar de nesse dia ser impossível
fazê-lo por razões que não recordo de tão vãs que eram. – dizia Idalina. – Mais tarde
solicitei-lhe que me acompanhasse numa visita pelas alamedas que enveredam para
o Sul da propriedade e novamente se mostrou gentilmente indisponível por tão
importantes afazeres que acabei por concluir ser impossível transpor a “barreira
Genoveva”.
-
No entanto, aconselhou Idalina a não tentar afastar-se e a esperar que ela lhe
mostrasse a propriedade. Prometeu que o
faria dentro de pouco tempo como era habitual fazê-lo com os demais hóspedes. –
acrescentou Antonia. – Mas não lhe
revelou que
prometia sempre o mesmo, e nunca o cumpria. O papel que ela desempenha é
puramente obstrutivo e controlador. Ela veda qualquer um de avançar para além daquilo que ela delimita
como território próprio.
-
Todas nós consideramos muito estranha esta atitude. Acreditamos que não se
trata de um acto preventivo, mas antes de um deliberado acto restritivo da
nossa autonomia. Genoveva pretende
impor-nos restrições que não são compreensíveis, nem aceitáveis. Somos quase
obrigadas a pensar que há qualquer coisa de muito misterioso no seu
comportamento. – declarou Gemma .- A nossa amiga tal como nós cresceu numa
quinta e, por isso, negar-nos a
liberdade de respirar o ar no meio deste espaço, de olhar o céu através
das árvores, de escutar os ruídos dos ramos uivando com o vento, de sentir os
odores inconfundíveis da terra, de gritar por aí fora a redenção da vida, de, enfim,
poder celebrar em cada dia o despertar de um outro novo dia é uma aberração
inqualificável.
-
Estamos numa prisão sem grades que nos disponibiliza apenas um reduzido e
limitado “recreio”, onde Genoveva é o
carcereiro . –volveu Antonia. – São poucos os hóspedes que podem fazer
caminhadas pela propriedade, mas até a esses lhes é vedada essa possibilidade. Genoveva controla com tal determinação que concluímos que pretende manter-nos afastados de um alvo qualquer desconhecido .
-
Realmente não compreendo o que se passa. Eu nunca me senti vigiada por
Genoveva, embora tenha de confessar que ultimamente quase não tenho saído da mansão.
Devemos, contudo, indagar o que está a acontecer, pois a propriedade é
espantosa e devem usufrui-la como podem e quiserem. Vou estar atenta e
investigar. Genoveva foi sempre uma personagem estranha, soturna, mas com esse
comportamento passa a ser uma ameaça nas nossas vidas. E isso não é admissível . – concluiu Emília Navarro.
Aos
poucos foram chegando. Um a um iam
sentando-se até que às dez horas, Carlos Lacerda iniciou a expedição.
Seguiram,
então, pela alameda que Genoveva tomava todos os dias, à hora da merenda,
levando um cesto na mão.
À
medida que avançavam o arvoredo tornava-se mais denso, mas era possível
avistar, a norte, campos cultivados e algumas estufas destinadas a culturas
mais sensíveis.
Carlos
Lacerda ia acrescentando algumas informações sempre que as alamedas se
bifurcavam, até que numa clareira surgiu o chalé rodeado por pequenas árvores e
alguns arbustos. Era uma construção antiga e rústica com janelas em madeira envernizada e uma linda
porta primorosamente trabalhada.
Junto
aos muros, havia vários canteiros repletos de flores: rosas, malmequeres,
jacintos e muitas hortênsias de cores extraordinárias e invulgares. Num pequeno
retalho, pejavam alguns pés de formosas violetas. Eram todas elas obra do
inquilino do chalé.
Carlos
Lacerda bateu à porta e, em seguida, entraram sem que alguém aparecesse.
Estavam numa sala ampla com uma grande lareira de pedra. Os tectos eram
suportados por robustas traves de madeira e nas paredes exibiam-se algumas
pinturas em óleo sobre tela ou em tapeçaria . Pela sala estavam dispostos sofás e cadeirões que contribuíam para uma atmosfera confortável. Num canto, via-se uma
linda “chaise longue”.
De
uma porta lateral que estava aberta podia-se antever uma biblioteca onde se
descortinavam estantes fechadas com prateleiras cheias de livros. Na mesa da
sala também estavam espalhados alguns
livros, muitos deles com marcações bem
assinaladas. O amigo de Carlos Lacerda gostava de livros e de leituras.
Quando
Carlos Lacerda começava a verificar se o amigo realmente estava ou não em casa
e se preparava para percorrer as outras divisões do chalé, surgiu, de supetão, Genoveva arfando
violentamente. Carlos Lacerda estremeceu de espanto por a ver ali."
Maria José Vieira de Sousa, in " O Lugar, memórias de um romance", Junho de 2008
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