Por Vinicius de Moraes
“A Inglaterra não foi para mim um amor à primeira
vista. Ao chegar a Londres, em Agosto de 1938, em gozo da primeira bolsa para
Oxford, dada a um brasileiro pelo Conselho Britânico, a cidade surpreendeu-me
pela sua reserva. Senti, de facto, a poesia do grande porto, com o meu navio a
penetrar lentamente o Tamisa nas luzes de uma antemanhã cinza-azul, toda
povoada de lentas asas brancas de gaivotas. Mas quando enfrentei as calçadas de
Piccadilly Circus, perto de meu hotel, senti como se a cidade imensa estivesse
se divertindo em observar o rapaz carioca – o rapaz carioca em quem o moleque
de praia era doublé de um poeta um tanto metafísico e esotérico – em seu
primeiro contacto com a austeridade do Império Britânico. E encabulei. Eram
seis horas da tarde e havia multidões pelas ruas desembocando de Regent e Bond
Street, multidões que passavam por mim sem me olhar, a dar-me a sensação de que
eu era justamente o que a minha vaidade de jovem poeta premiado não podia
permitir que eu fosse: uma forma liliputiana a mais a passear no rosto
gigantesco de Gulliver, acorrentado, mas a divertir-se com a pequenez dos seus
conquistadores. Lembro-me de que, num dado momento, passou por mim uma família
hindu, vestida a carácter, os homens de turbante, as mulheres envoltas em saris.
Eu nunca tinha visto um hindu na minha vida. Aquilo foi demais para mim. Fui
refugiar-me atrás de um sherry no bar do meu hotel, de onde só saí para ir
dormir, às nove da noite. No quarto, sozinho, senti um isolamento atroz, que me
parecia vir da cidade infinita a trazer-me de vez em quando, adormecidos pela
distância, os ruídos informes de sua vida nocturna.
Foi só três ou quatro dias depois, ao tentar
atravessar uma rua no momento errado, que me senti realmente protegido pelo
Império Britânico, e comecei a achar que, malgrado a minha selvajaria de menino
de ilha, poderia amar a Inglaterra. Ao avançar, pousou-se sobre o meu ombro uma
mão, a um tempo imperiosa e amiga, que me fixou ao solo sem maior esforço.
Olhei para o lado e vi, acima, muito acima de mim, mirando em frente, esse ser
especial no mundo que se chama um guarda inglês, um constable: alto como a
Torre de Londres, firme como a rocha de Gibraltar. Quando o momento de
atravessar chegou, a pressão desfez-se do meu ombro, a mão retirou-se e eu pude
partir. Dei-lhe um olhar grato, a que ele respondeu com um outro, em que senti
um frio e inteligente senso de humor.
Sir Neville Chamberlain |
Não me lembro mais se foi na véspera de Munique, ou
pouco antes, que correu a notícia de que Londres seria bombardeada. Eu passara
o dia em casa de um conhecido e ao sair à rua, sem saber ainda de nada, entrei
no fog mais espesso que já vi na minha vida. Encostei-me a um edifício e
resolvi esperar, e não sem um certo sentimento de estranheza no coração. Foi
novamente um constable que me tirou da dificuldade, encaminhando-me, como um
guia de cego, até um táxi; e só quando cheguei ao meu quarto, numa pensão para
onde me mudara – um quarto no subsolo, desses de onde se vê, através da janela,
apenas os pés da humanidade – é que encontrei um bilhete do British Council
mandando-me seguir de urgência para Oxford. Do céu nocturno de Londres
chegava-me, maciço e constante, o ronco dos aviões de caça, à espera de
qualquer eventualidade. Era a minha primeira experiência de guerra, mas não
tive nenhum medo e resolvi desobedecer ao Conselho Britânico. Deitei-me e
fiquei à escuta daquele ruído informe, sinistro e pressago, o ouvido atento ao
silvo eventual da primeira bomba ou ao estilhaçar da primeira explosão. Aquilo
tudo era, para mim, uma grande aventura, uma grande aventura que,
misteriosamente, me aproximava da Inglaterra e do seu povo. Achei dentro de mim
que seria uma covardia eu desertar, abandonar Londres às bombas alemãs, não
estar presente a sua defesa, não defendê-la eu mesmo – à cidade que tinha mãos
para proteger minha vida, cuidados maternos para com a minha inexperiência. E
assim foi que acabei por dormir. Nunca cheguei a confessar ao Conselho
Britânico,a minha indisciplina, o que faço agora, certo de que, no seu fair
play, a nobre entidade a estimará mais do que estimaria uma obediência mecânica
e menos proveitosa, do ponto de vista da experiência e do coração.
Piccadilly Circus |
Depois, em Oxford, muitos outros elementos vieram
solidificar a estrutura desse sentimento de afectividade crescente para com a
Inglaterra. Lembro-me, por exemplo, da primeira gafe que cometi à mesa de
jantar, no grande hall de Magdalen College. Ignorante ainda dos usos e costumes
da Universidade, alguma coisa fiz que foi notada pela high table, ou seja, a
mesa do deão e dos professores do colégio – os tutors, como são chamados -, o
que me valeu receber um bilhete em latim, trazido por um mordomo numa pequena
bandeja de prata. Segundo esse bilhete, eu deveria expiar a minha gafe bebendo
uma quantidade de cerveja suficiente para afogar um recém-nascido, cuja cerveja
me foi trazida num fantástico canecão, cheio até as bordas. Vi todo mundo parar
de comer e voltar-se para mim: mais de quatrocentos estudantes em suas capas
pretas. Tratava-se de beber ou morrer. Levantei-me, tomei da enorme caneca e
iniciei a prova. Até a metade foi tudo muito bem. Mas da metade para baixo, não
sei até hoje como consegui ingerir aquilo. Sentia como se a cerveja me fosse
sair pelos ouvidos, de tal modo estava locupletado. Mas o facto de ser o
primeiro brasileiro com uma bolsa do Conselho Britânico para Oxford impôs-me o
dever moral de não fazer feio, custasse o que custasse. E bebi, impulsionado
por aquele sentimento cego. Não é preciso dizer como fui encorajado sobretudo
na parte heróica da prova, pelos meus colegas. Quando acabei, a ovação foi geral.
Dali por diante, todos passaram a falar comigo afectuosamente, e comecei a ser
convidado frequentemente para as loucas parties nos quartos dos estudantes. Aí
está Reginald Maudling, ex-aluno do Merton College, actual ministro do Império
Britânico e companheiro querido dos dias universitários, que não me deixa
mentir.
De outra feita, um rapaz cujo nome não me lembro,
disse à mesa coisas desairosas sobre o Brasil. Disse-o mais para implicar
comigo, pois era o único estudante dos que sentavam perto de mim que parecia
não ir particularmente com o meu jeito. Na saída do hall, numa escada, ainda juntou algo mais, alto bastante para que eu ouvisse. Desci-lhe o braço, e não
fosse a quantidade de estudantes que se aglomeravam na escada e que o
sustentaram na queda, é possível que se tivesse machucado seriamente. Fui,
muito amolado com a história, para o meu quarto, à espera dos seus padrinhos,
que ele me disse mandaria imediatamente, a fim de que nós fôssemos fight it
out, nos grounds do colégio. Embora muito brigão em menino, sempre me
desagradou a violência fisica, e não sei o que teria dado para ver o assunto
resolvido amigavelmente. Pois bem: os deuses da boa educação inglesa atenderam
aos meus rogos. Meia hora depois chegavam os padrinhos do rapaz, mas não para me
levarem com eles. Para conversarem, sim, com os meus padrinhos, e apresentarem
desculpas em nome do meu desafecto. Que ele reconhecia ter-se comportado mal e
gostaria que eu esquecesse o incidente.
Larguei todo o mundo e fui, correndo e emocionado, ao
seu quarto, onde nos abraçamos estreitamente. Depois disso ficamos bons
camaradas, e só não o ficamos mais porque, no período seguinte, ele saía da
Universidade. Isso chama-se fair play: qualidade que se pode encontrar
eventualmente em indivíduos, mas nunca tão universalmente como na Inglaterra.
Oxford |
Foi talvez o período mais fecundo de minha vida de
poeta. O verso, a principio timidamente, foi-se afirmando numa forma cada vez
mais enxuta e clara, com um anseio muito maior de comunicação. O soneto, principalmente,
começou a impor-se a determinados temas com uma prestança nunca experimentada.
Dois terços de meu livro Poemas, sonetos e baladas foram escritos em Oxford, a
bem dizer nos primeiros seis meses universitários.
Houve outros sofrimentos também, tirando os da vida
puramente escolar. O caso é que, no Brasil, eu tinha remado, cerca de um ano,
no Clube de Regatas do Flamengo, sob os palavrões de ensinamento de um
palamenta famoso como “Engole-Garfo”, que fizera num iole-a-dois o raid
Montevidéu-Rio de Janeiro. Tratava-se de um ambiente da mais total boçalidade,
mas eu saíra do Clube sob a impressão de que era um remador. Assim é que,
quando me perguntaram que desportes queria praticar, disse imediatamente: remo e
boxe. Quem sabe não chegaria a disputar um dia um campeonato intercolegial…
Comprei calções extraordinários, camisas de lã
fabulosas e lá fui, através de Christ Church Meadows, para a barcaça de
Magdalen College, ancorada à margem do Isis, que é o nome universitário do
Tamisa em sua tranquila passagem por Oxford. O instrutor pôs-me num esquife e,
de sua bicicleta, à margem, ordenou-me com um alto-falante manual que desse
umas poucas voltas pelo rio, que era para ele julgar de minhas possibilidades.
O resultado é que, eu, o remador do Flamengo, tive que remar 15 dias a seco,
num esquife especial colocado em terra, para reaprender tudo de novo. Desde a
posição das mãos nos remos até o tempo das remadas, estava tudo errado. Fiquei
meio humilhado, mas embora nunca tivesse tido a honra de remar pelo meu colégio,
nem por isso deixaram de me colocar numa guarnição que, nas frias manhãs de
Oxford, remava como um só homem, antes do duche quente na barcaça de Magdalen
College.
Com o boxe a experiência foi mais dolorosa ainda.
Comprei luvas de seis onças, calções de primeira qualidade, sapatos
apropriados, e ingressei na Academia da Universidade. Tive um mês de instrução,
aprendendo o a-b-c do boxador, e fazendo muita corda e muito saco de areia para
endurecer a fibra. Depois passei para a punching ball e, de vez em quando,
fazia um ou dois rounds com o meu instrutor. Mas meu instrutor era um santo, e
nunca me acertava à vera. Uma bela tarde, chego à Academia e ele me anuncia ter
destacado um aluno mais antigo para me experimentar. Fui para o ringue e não
pude deixar de sorrir ante o físico do meu adversário. Tratava-se de um
magriço, um rapazinho da minha altura mas muito menos sólido que eu, com as
costelas à mostra e uns bracinhos finos, que as luvas pareciam engolir.
Resultado, não o acertei uma só vez, e ele encaixou tantos que, no fim do
terceiro round, completamente grogue e presa dessa horrível angústia da
impotência diante da competência, fui dado como incapaz de continuar a luta.
Confesso que não voltei à Academia nem sequer para buscar os meus apetrechos,
que tinha deixado lá.
Tudo isso, embora não desse ao mundo nenhum grande
desportista, não deixou de incutir no primeiro bolsista brasileiro para Oxford
um senso de esportividade. Torci muito pela minha Universidade, nas grandes
regatas contra Cambridge, que, ai de mim, perdermos nesse ano.
E que não dizer de minha grande dívida à poesia
inglesa, de que já falei atrás, mas sobre o que quero voltar. Que não dizer do
que devo a esses poetas todos que, desde Chaucer, desde os anônimos
elizabetanos, comecei a ler e amar, e que tanto me deram nos duros caminhos da
poesia. O que não dizer da imensa dívida a Shakespeare, para mim o maior dos
poetas da humanidade: das indescritíveis descobertas operadas no texto dos
sonetos, sobre que teria feito a minha tese, não houvesse a guerra, que me
apanhou em férias na França, impedido a minha volta à Universidade. O que não
dizer das noites do terrível inverno de 1938, passadas no meu estúdio de High
Street, em companhia de Milton, Dreyden, Blake, Wordsworth, Coleridge, Keats,
Shelley, Lear, McNeice, Auden e Eliot; das noites de releitura de tantos
clássicos da meninice: Robinson Crusoé, Ivanhoe, Alice in Wonderland e o
conhecimento de clássicos novos: Pilgrim’s Progress, Pride and Prejudice,
Wuthering Heights, The Forsyte, Saga, Jude, the Obscure e tantos outros – o
romance inglês a me oferecer um novo panorama da vida e da paixão dos homens e
mulheres da Inglaterra.
O rio Tamisa e a cidade de Londres |
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