Rebentar
as algemas mediáticas
por Serge Halimi
"Multiplicam-se as tentativas de ruptura com as
políticas neoliberais. Depois da esperança grega, da eleição imprevista de
Jeremy Corbyn no Reino Unido, talvez chegue em breve o despertar de Espanha…
Estes ensaios ainda não causaram grandes transformações, como se viu em Atenas
em Julho último. Mas alguns dos obstáculos estão doravante bem identificados:
os mercados financeiros, as empresas multinacionais, as agências de notação, o
Eurogrupo, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu
(BCE), a política monetarista alemã e os seus aduladores sociais-liberais. O
poder destes agentes e a convergência das suas preferências explicam, em parte,
as prudências e capitulações de uns, os sofrimentos e as hesitações de outros.
Apesar de pertinente, este diagnóstico está incompleto. Porque falta-lhe um
elemento decisivo, muitas vezes analisado nestas colunas mas muito ignorado
noutras paragens, em particular pelas forças políticas que deveriam
preocupar-se com ele como prioridade.
Este elemento revelou o seu carácter nocivo em
Atenas quando o Syriza resistia aos diktats da União Europeia; soltou-se
de imediato em Londres contra o novo dirigente trabalhista, Jeremy Corbyn; será
observável em Madrid se o Podemos vencer no próximo mês de Dezembro; e está a
ser metodicamente reconfigurado em Paris. De que se trata? Do aperfeiçoamento
das algemas mediáticas susceptíveis de desqualificar qualquer projecto contrário
ao poder dos accionistas.
No fundo, por que haveria de ser de outro modo,
quando os proprietários dos órgãos de comunicação social são também, e cada vez
mais, os arquitectos das concentrações industriais e os beneficiários de
gigantescas capitalizações bolsistas? Em França, por exemplo, seis das dez
principais fortunas nacionais – a primeira, a quinta, a sexta, a oitava, a nova
e a décima – são agora detidas por proprietários de grupos de comunicação
social [1].
Um deles, Patrick Drahi, acaba também de passar
para a frente das fortunas de Israel [2].
Contudo, é difícil detectar a mais ínfima estratégia política que se destine a
contrariar os perigos de um sector-chave que condiciona, ao mesmo tempo, a
informação pública, a economia, a cultura, os lazeres ou a educação. Um pouco
como se todos dissessem que se verá como tratar do assunto quando chegar a
altura, porque agora há outras prioridades, outras urgências [3].
Ver-se-á? Já se viu… Chegando ao poder em Atenas em Janeiro último, Alexis
Tsipras contou, um alguma imprudência, com o facto de que a solidariedade dos
povos europeus atingidos pelas políticas de austeridade lhe permitiriam
resistir melhor à intransigência alemã.
São muitas as razões ligadas à fragmentação e à
fragilidade dos aliados continentais do Syriza, políticos e sindicais, que
explicam que esta esperança tenha sido frustrada. Mas há um elemento importante
que não pode ser esquecido. Durante seis meses, o tratamento mediático da
questão grega desfigurou os termos do debate em curso. E tentou exacerbar na
opinião pública europeia a preocupação de que o apagamento de parte ou de toda
a dívida de Atenas viesse a custar caro a «cada francês», alemão, espanhol,
italiano, eslovaco, etc. [4].
Os principais meios de informação, incluindo os que em geral se mostram
apreciadores de sermões pós-nacionais, viram ali um meio garantido para conter
um movimento de solidariedade continental com a esquerda helénica. Numa outra
configuração mediática, a Grécia poderia ter sido apresentada, não como um mau
pagador susceptível de agravar as dificuldades dos seus credores, incluindo os
mais pobres, mas como a vanguarda de um combate europeu contra uma política
falhada de austeridade.
Cada
concentração parece favorecer a seguinte
O custo para a colectividade das reduções de
impostos, que beneficiam há trinta anos os contribuintes mais ricos, ou o dos
planos de salvamento dos bancos privados nunca foram, aliás, calculados – nem
matraqueados – com o mesmo fervor (quase ao euro), para «cada francês», cada
alemão, etc. E quando, a 27 de Agosto, os credores ocidentais, intratáveis no
caso da dívida grega, aceitaram o apagamento de uma parte da dívida da Ucrânia,
que grande diário económico avaliou o que este abandono de créditos podia
custar a «cada francês», italiano, lituano, etc.? Que canal de televisão se
apressou a recolher, num dos seus heróicos passeios de microfone, as reacções
de transeuntes aterrorizados por imaginarem a espoliação que um tal perdão da
dívida significaria para eles?
João Pedro Stédile, membro do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), evocou em Agosto último as dificuldades
do Brasil, a braços com um abrandamento da sua economia, uma diminuição do
preço das matérias-primas e múltiplos casos de corrupção. Assinalou então que «o
povo observa com preocupação as notícias da crise e a falta de alternativa na
televisão. (…) Não conseguimos fazer ouvir as nossas propostas,
inclusive porque a comunicação social é detida pela burguesia». O principal
grupo mediático brasileiro, a Rede Globo, serviria, segundo ele, de «partido
ideológico» e de lugar onde se constrói a unidade da «classe dominante» [5].
Um pouco como a Fox News, que se tornou nos Estados Unidos o braço armado do
Partido Republicano.
A Fox News pertence a Rupert Murdoch. O The Sun
britânico e o The Wall Street Journal também. A ligação entre um canal
de informação contínua de que gostam muito os aposentados norte-americanos, um
jornal inglês conhecido pelos escândalos e seios nus e o grande diário
nova-iorquino dos meios de negócios não é, a priori, evidente. Mas o
objectivo de Murdoch é constituir um poder que imponha essa ligação, e não
conceber uma qualquer complementaridade editorial ao serviço do público. Além
disso, qual é também a relação entre um diário popular como o Le
Parisien-Aujourd’hui en France, a Radio Classique e o Les Échos,
senão a identidade do seu proprietário comum, Bernard Arnault? A mesma
observação vale para o Libération, a RMC, o L’Express e a BFM TV,
agora dirigidos por Patrick Drahi. Sem esquecer o Direct Matin, o Canal
Plus e a CNews (ex-iTélé), que Vincent Bolloré dirige com notória brutalidade.
Ora, na ausência de uma resistência nas salas de
redacção, cada vez mais preocupadas e despovoadas, ou de uma legislação
limitadora, cada concentração favorece a seguinte. Em Maio último, Francis
Morel, presidente-executivo do Les Échos, explicou nestes termos a
compra do Le Parisien-Aujourd’hui en France pelo grupo de imprensa de
Bernard Arnault: «Eu recuperei o Les Échos, mas isso não basta. Um
actor não pode ficar isolado num universo em plena concentração, sob pena de se
colocar em perigo. Analisando o mercado, a opção mais lógica era a do Parisien» [6].
Passados quatro meses, Nonce Paolini, presidente-executivo da TF1, considerou
por sua vez que a «consolidação» de um sector da comunicação social doravante
cercado por mastodontes capitalistas tinha ganho uma dimensão tal que já nada
justificava que se continuasse a proibir a sua empresa, como acontecera um ano
antes, de passar o seu canal de informação contínua para a TNT gratuita: «Já
não há grupos isolados e frágeis, só actores poderosos que investem. O receio
de ver alguns actores fragilizados pela chegada da LCI já não existe» [7].
De facto, à luz dos cerca de 30 mil milhões de euros de capitalização bolsista
do grupo de Drahi (que adquiriu agora mesmo a BFM TV) ou dos 9 mil milhões de
euros de tesouraria líquida do grupo de Bolloré (que aumenta o controlo sobre a
iTélé), a TF1 vai em breve parecer um pequeno artesão sem um tostão. Seja como
for, um governo insuficientemente respeitador das vacas sagradas do liberalismo
terá alguma dificuldade em sobreviver se tiver pela frente três canais de
informação contínua deste género…
Como
ter esperança de divulgar análises dissidentes?
Arnault, como se sabe, foi testemunha de casamento
de Nicolas Sarkozy, a quem Bolloré emprestou o seu iate pouco depois de ter
sido eleito para a presidência da República [8].
É de apostar que Drahi, ainda pouco conhecido em França, ficará em breve tão
bem inserido nos meios políticos como Arnault e Bolloré, Deverá ser nisso
ajudado por dois directores de jornais que são empregados do seu grupo, Laurent
Joffrin e Christophe Barbier, um deles familiar de François Hollande e o outro
de Carla Bruni-Sarkozy. De toda a maneira, adquire-se sem esforço este género
de relações quando se dispõe de um grupo de comunicação social tentacular
assente em vários milhares de milhões de euros. Em Junho último, Xavier Niel
(companheiro da filha de Arnault) foi a uma recepção que celebrava o casamento
da directora- executiva da sua holding pessoal, Anne-Michelle Basteri, com
Pierre Moscovici, antigo ministro das Finanças socialista e actual comissário
europeu da Economia. Naturalmente, cruzou-se ali com o presidente da
República [9].
Não há nesta matéria qualquer especificidade
francesa. Já em 2012, um relatório oficial relativo às derivas sensacionalistas
de um semanário britânico, o News of the World, pertencente a Rupert
Murdoch, revelava que «as formações políticas que se sucederam no poder e na
oposição teceram com a comunicação social ligações incestuosas que não
correspondem de modo algum ao interesse geral. (…) Os accionistas,
directores e chefes de redacção dos jornais britânicos aprenderam nas melhores
escolas a exercer um lobbying subtil no entrelaçado das amizades pessoais e
profissionais» [10].
Jeremy Corbyn, novo neste terreno e pouco inclinado a arriscar-se nele, sabe o
que o espera. Aliás, a sua vitória foi saudada pelo Sunday Times (de que
Murdoch é também proprietário) com este título que resplandece entusiasmo:
«Corbyn desencadeia a guerra civil no Labour».
Em tais condições de adversidade ideológica e
mediática, como ter esperança de dar a conhecer análises dissidentes para lá do
círculo dos que já estão atraídos, ou até convencidos, por elas? É tentador
responder invocando os casos espectaculares em que a cortina de fogo da
propaganda fracassou, por exemplo nos referendos francês de Maio de 2005 e
grego de Julho de 2015. Nestes escrutínios, a indignação suscitada pelo
unanimismo dos media dominantes constituiu mesmo um instrumento
importante de mobilização popular, juntando-se à simples recusa do Tratado
Europeu de 2005 ou ao diktat da Troika dez anos depois. Stathis
Kouvelakis, um dos dirigentes da esquerda grega, pensa, por exemplo, que «o
facto de o campo do “sim” ter mobilizado políticos detestados, comentadores,
dirigentes empresariais e celebridades da comunicação social não fez senão
inflamar uma reacção de classe» favorável ao «não» [11].
Significa isto que não fazer o combate contra o sistema de informação dominante
constitui um erro de cálculo, tanto como um erro intelectual. Até porque a
crítica dos media serve muitas vezes de ponto de entrada na política de
novas gerações, tão saturadas de notícias e comentários quanto desafiadora do
jornalismo profissional.
A
longo prazo, andar atrás das declarações tóxicas torna-se um exercício vão
Contudo, as vitórias eventuais não terão futuro e a
indignação manter-se-á impotente sem uma refundação radical do sistema de
informação. Em Dezembro último, o Le Monde diplomatique propôs um
projecto que ia neste sentido [12].
Hoje, é preciso avançar; empenhar-nos-emos nisso, fortalecidos pela nossa
independência [13].
Os problemas do jornalismo tradicional colocar-se-ão em breve – já se colocam –
ao jornalismo digital. Imaginar que as promessas da Internet vão fazer nascer
um outro tipo de informação de massas, livre das lógicas de rentabilidade e de
dominação que actuam noutros lugares constitui, por isso, uma aposta perdida à
partida. A existência de um sítio Internet marginal que nos agrada e que os
nossos amigos apreciam também não lhe confere qualquer poder particular,
qualquer impacto suplementar se formos apenas alguns a consultá-lo, a consumi-lo.
Verosimilmente os mesmos de antes só que atrás de um teclado. Devemos então
escandalizar-nos e inundar todos os nossos contactos com tuítes coléricos? A
longo prazo, andar atrás das declarações tóxicas torna-se um exercício
cansativo e vão.
Para preparar os combates a travar, mais vale
procurar compreender. Mesmo correndo o risco de nunca se ser compreendido pelos
profissionais das manchetes aliciantes, pelos intelectuais da moda e pelas
campanhas bombásticas de denúncia – no nosso caso, pelo jornal Le Point,
que incansavelmente gostaria de associar a nossa crítica da Europa à
extrema-direita; ou pela revista Marianne, que parece pensar que a
ameaça jihadista, cuja terrível realidade se abateu sobre os jornalistas do Charlie
Hebdo a 7 de Janeiro último, será conjurada pelos seus clamores contra o
Estado Islâmico e pelas poderosas análises de Pascal Bruckner [14].
Felizmente, a nossa singularidade parece encontrar
eco. Desde 2009, fazemos todos os anos aos nossos leitores um apelo para que os
seus donativos e as suas assinaturas consolidem a nossa independência. Em 2014,
ambos aumentaram. Com 296 mil euros (contra 242 mil no ano anterior), os
donativos que recebemos através da associação Presse et Pluralisme (impresso,
página 22) representaram quase o triplo das nossas receitas publicitárias. O
número dos nossos assinantes, por seu lado, registou um aumento de 8,7% entre
Agosto de 2014 e Agosto de 2015. Por fim, as nossas vendas por número
aumentaram também durante os últimos quinze meses seguidos [15].
É por isso provável que 2015 marque o primeiro
aumento da nossa difusão desde 2008. Estes resultados, a confirmarem-se, serão
ainda mais encorajadores por estarem em contradição com uma tendência
geral [16].
Publicaremos as nossas contas no próximo mês, mas digamo-lo desde já: graças à
vossa mobilização e aos vossos donativos, a nossa situação financeira melhorou.
A constância do vosso apoio vai permitir-nos concretizar novos projecto – a
partir deste mês, o nosso sítio Internet renova-se; em breve, disporemos de uma
base de arquivos multilingue – e, ao mesmo tempo, ter a esperança de manter em
2016 o nosso preço a níveis inalterados há três anos. O vosso apoio irá dar-nos
também os recursos graças aos quais poderemos ampliar o nosso esforço
editorial, inclusive num período em que o chão treme à nossa volta.
O
reinado das emoções destinadas a ser engolidas, digeridas, esquecidas
Dispomos de poucos meios, mas alimentamos grandes
ambições. Numa altura em que todo o tipo de cólera se exprime, é certo que a
cultura da velocidade, do mexerico, da gritaria mediatizada e da imprecisão
pode responder a razões comerciais e servir interesses industriais, mas traz
consigo imensos riscos, tanto políticos como sociais. O desmantelamento do
Código do Trabalho sob o pretexto de favorecer o emprego, os muros contra os
migrantes sob o pretexto de manter a coesão nacional, uma nova expedição
militar sob o pretexto de conter a guerra… Num clima ideológico tão pesado como
o actual, um jornal independente não é demais. Dirige-se a leitores que
reclamam algum recuo, que estão fartos de ser bombardeados com informação sem
importância, com anedotas personalizadas, com «debates» confeccionados pela
comunicação social, com emoções destinadas a ser engolidas, digeridas,
esquecidas. Encoraja as resistências, quando tantos outros se dedicam a
esmagá-las." Serge Halimi,
Le Monde Diplomatique, domingo 11 de Outubro de 2015
Notas
[1] Respectivamente, Bernard Arnault, Serge Dassault,
Patrick Drahi, François-Henri Pinault, Vincent Bolloré e Xavier Niel. Fonte: Challenges,
Paris, 8 de Julho de 2015.
[2] «The rich list: Drahi debuts at nº 1», Haaretz,
Telavive, 12 de Junho de 2015.
[3] Cf. «L’art et la manière d’ignorer la question des
médias», www.hommemoderne.org.
[4] Em França, a campanha foi lançada pelo Le Figaro
a partir de 8 de Janeiro de 2015 («Cada francês pagará 735 euros pelo
apagamento da dívida grega»). Foi em seguida difundida pela maior parte dos
outros meios de comunicação social, em particular (a 26 de Janeiro) pelos dois
principais canais de televisão franceses, a TF1 e a France 2.
[5] Entrevista com João Pedro Stédile, «Au Brésil, les
classes dominantes ont abandonné le pacte d’alliance passé avec Lula et Dilma»,
Mémoire des luttes, 4 de Agosto de 2015. www.medelu.org.
[6] «Le PDG du groupe Les Echos défend le rapprochement avec
“Le Parisien”», Le Monde, Paris, 27 de Maio de 2015.
[7] «TF1 défend un nouveau projet pour le passage de LCI en
TNT gratuite», Le Figaro, Paris, 15 de Setembro de 2015.
[8] Ler Marie Bénilde, «Sarkozy déjà couronné par les
oligarques des médias?», Le Monde diplomatique, Setembro de 2006.
[9] Marie Bordet, «Anne-Michelle Basteri, la gardienne de
l’empire Niel», Le Point, Paris, 14 de Setembro de 2015.
[10] O Le Monde diplomatique publicou amplos extractos
deste relatório na sua edição de Janeiro de 2013 («O relatório que esmaga os media
britânicos»).
[11] Entrevista com Stathis Kouvelakis, «Greece: the
struggle continues», Jacobin, 14 de Julho de 2015, www.jacobinmag.com.
[12] Pierre Rimbert, «Projecto para uma imprensa livre», Le
Monde diplomatique – edição portuguesa, Dezembro de 2014.
[13] Ler Serge Halimi, «O Le Monde e nós», Le Monde
diplomatique – edição portuguesa, Junho de 2010.
[14] A 27 de Novembro de 2013, o jornal Le Point
colocou o Le Monde diplomatique no campo dos «neoconservadores à
francesa» (título do dossiê), e depois, a 30 de Outubro de 2014, no da
«esquerda Zemmour». A 28 de Agosto de 2015, a revista Marianne
considerou antes que o Le Monde diplomatique adoptou a missão de «enobrecer
o Daech»…
[15] N.d.R.P. – Estes dados referem-se ao Le Monde
diplomatique em França e não à sua edição portuguesa, cuja gestão,
assegurada pela cooperativa Outro Modo, é autónoma e depende das vendas (bancas
e assinantes) feitas em Portugal.
[16] Entre Julho de 2014 e Junho de 2015, a imprensa paga
de grande público registou um recuo de 5,4% na sua difusão.
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