sexta-feira, 19 de junho de 2015

Ressurreição

Tiziano-Vecellio-titian-Polyptych-of-the-Resurrection
Ressurreição
“A mulher tirou as mãos debaixo do avental e perguntou numa voz despida de qualquer inflexão amável:
– O que deseja? – Depois, atentando melhor na figura miserável do interlocutor, acrescentou, asperamente elucidativa: – A entrada não é por aqui, é pela escada de serviço...
Mas o homem não despegava. Tinha uma teimosia humilde e inabalável:
– Quero falar ao senhor... Ele é que me mandou chamar...
– A si? – Havia uma ironia maldosa na interrogação. – Ah, ele manda chamar muita gente e depois não a recebe... Às vezes é uma romaria...
Calou-se um instante e fixou o homem.
Nos olhos dele havia uma doçura atenta e compassiva. Parecia-lhe que aquele homem, com o fato remendado, o cabelo rapado, as alpercatas rotas, a tiritar de frio, o ar clássico do vagabundo das estradas, estava com pena dela. Sentiu-se chocada e, ao mesmo tempo, intimidada. A sua vaidade agressiva de porteira de casa rica, diluira-se. Pensou que era absurdo, que era o contrário do que devia ser, mas aquele homem estava com pena dela. Teve um sobressalto de vergonha e inquiriu quase humilde:
– É por causa de algum anúncio, não é?
– Sim, um anúncio a chamar por mim... Não o li, que não sei ler nem escrever.
Foi um companheiro que me disse...
– E quem digo ao senhor que é?
– Diga-lhe que é Nosso Senhor Jesus Cristo.
A mulher afastou-se deixando a porta entreaberta.
O homem ouviu o ruído de passos no corredor e depois bater a uma porta.
– Está aqui um homem que quer falar com V. Ex.ª.
– Quem é?
– Diz que é Nosso Senhor Jesus Cristo.
– Não conheço...
Houve um instante de silêncio e depois, alguém gritou de dentro:
– Ah, já sei... Espere... Mande entrar.
– Por aqui...
Foi guiando os passos do homem até à porta do fundo.
– Já aqui está.
– Que entre...
O pintor ficou a olhar para o homem que acabava de chegar e desatou a rir.
– Essa é boa! Essa é muito boa!... Então você julga que...
Vestia com o trajo dos artistas de Montmartre – casaco de veludo, o cachimbo ao canto da boca, numa das mãos a paleta, e, na outra, o pincel.
A luz entrava diluída pela cúpula envidraçada do «atelier», e caía em cheio sobre o modelo. Estava nua, apenas com um ligeiro sendal a envolver-lhe a cintura e o cabelo negro e comprido atirado para a frente a aflorar as pontas dos seios.
Via-se que era uma pose procurada e um pouco artificial.
Ironicamente, o pintor fez as apresentações:
– O Cristo... A Madalena...
– Ó filho, deixa-te de graças... Fecha mas é a porta que estou com frio.
Nos lábios deslizou-lhe um sorriso, ao mesmo tempo, impúdico e contrafeito:
– Posso vestir-me?
– Podes.
Num gesto lento foi fechar a porta.
– A mim sucede-me cada uma... – Virou-se para o homem e inquiriu: – Você veio por causa do anúncio? Com certeza? Do anúncio em que eu pedia um modelo para o Cristo da minha alegoria: «Nosso Senhor voltou ao mundo»?...
– Sim Senhor.
– E você, com esses cabelos cortados à escovinha, as barbas rapadas, supunha-se nas condições? Ou pensa que basta ter fome, ter o rosto esquálido e os olhos lânguidos e sonhadores? – Estava agora junto dele e fitava-o curiosamente:
– Foi a necessidade apenas que o trouxe, ou quê? Se eu pusesse um anúncio para me passear o cão, você também aparecia, não é verdade? – A voz compadeceu-se:
– Eu bem sei que a necessidade não tem lei e é um topa-a-tudo. Em todo o caso... Espere... Ó Zulmira, vem cá...
A cabeça da rapariga assomou por detrás do biombo ande estava a vestir-se.
– Já vou...
Aproximou-se vagarosamente.
Vestida, tornara-se numa rapariguinha da cidade, quase insignificante. Uma espécie de vergonha travava-lhe os passos.
– Anda cá ver – gritou impaciente. – Tu já viste alguma vez uns olhos assim?
– Sentia-se que estava impressionado. – É curioso! Repara bem... Tem o fulgor dos olhos dos grandes iniciados... E a boca, ahn? Que energia e que candura, ao mesmo tempo... E o queixo? Repara bem no vigor e na doçura desta linha...
O entusiasmo caiu-lhe de repente. – Mas sem barba e sem cabelo, nada feito.
Não lhe vou pôr uma barba e um cabelo postiços, nem vou imaginá-las... Sou um realista, percebeu?... Preciso de ver e palpar... Só sei pintar assim: com pelos, com carnes, com sangue...
Estava encolerizado.
– Ó seu idiota!... Porque é que você rapou o cabelo e cortou as barbas?
– Não fui eu, foram eles...
– Eles, quem?
– Eles, os guardas...
Falava numa voz clara e harmoniosa, a voz bíblica das parábolas.
– Prenderam-me... Disseram-me que era proibido andar a passear pelas ruas, sem fazer nada. Raparam-me o cabelo e cortaram-me a barba. Depois disseram-me que eu era um vagabundo e que se me tornassem a prender, me mandavam não sei para onde. Foi então que um companheiro me disse que o senhor queria falar com Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi por isso que vim...
– E porque havia de vir você especialmente?
– É porque... Sabe?... Eu sou o próprio.
– O quê?... Você é o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo?
– Sou, embora não me acredite... Mas eu não levo a mal. Já sabia que me ia suceder isto... Foi o que aconteceu da outra vez. Na Judeia também poucos me acreditaram. Foi por isso que me prenderam... e me crucificaram. Mas já lhes perdoei. É a razão porque pedi a meu Pai para me deixar voltar...
– Muito me conta... Estás a ouvir, Zulmira? E esta?
A rapariga aproximara-se sem dizer palavra. Um fulgor inquieto acordara nos seus olhos e as mãos juntaram-se num jeito de oração.
– Aposto, que estás tentada a lavar-lhe os pés com essências e a enxugá-los com os teus cabelos... Em todo o caso, não to aconselho.
Ela lançou-lhe um olhar furioso e não respondeu. Depois numa voz suplicante, insistiu:
– Conte... Não faça caso do que ele diz. É uma alma perdida... E depois?
– Meu Pai não me queria deixar vir: «Não, Meu Filho, – disse-me Ele – é inútil como já foi outrora... E desta vez vão-Te fazer pior. Em vez de Te pregarem na Cruz, terás de arrastá-la toda a vida! Terás de passar por todas as misérias! Hás-de sofrer a tortura da fome e do cárcere, hão-de internar-Te como louco e, o que é pior, não Te hão-de acreditar! Não, não consinto.» Mas eu supliquei: «Pai, a culpa não é deles, é nossa, principalmente Tua...» «Minha!» Não há nada que eu receie tanto como a cólera de Meu Pai, mas estava resolvido a afrontá-la: «Sim, Pai...»
Mas Ele, com grande surpresa, interrogou com brandura: «Minha porquê, Filho?»
«Porque nunca Te esqueceste de que Eu o era... Porque Me fizeste nascer sem pecado... Porque não Me deixaste correr os riscos dos outros homens e Me deste o poder de fazer milagres... Se não Me sentiam igual a eles, como havia Eu de redimi-los?».
«Bem, vai – sentenciou Ele – mas depois não chames por Mim, nem invoques o Meu Nome!» «Não, pai. Suceda o que suceder, Eu não o farei...»
– E Tua Mãe? – interrogou a rapariga, ansiosa: – E Nossa Senhora?
– Nossa Senhora limitou-se a chorar como todas as Mães quando vêem partir um filho para uma aventura perigosa... Mas não me desencorajou e, pelo contrário, disse-me: «Vai, Filho, é a Tua obrigação! Uma tarefa deve levar-se até ao fim... e Tu ficaste a meio caminho. Estarei sempre a Teu lado!» E agora, sinto que é Ela que me fala pela tua voz...
O pintor não desfitava o grupo formado pelos dois. O pincel tremia-lhe na mão e uma emoção violenta penetrava-o. Ah, ele bem a conhecia! Era a inquietação sublime dos momentos de inspiração. Em silêncio, afastou-se e começou a pintar.
As figuras cresciam na tela, como que vindas de dentro, e tomavam corpo, tão humanas que quase tinha medo de as magoar.
Era um Cristo estranho aquele, curvado sob um fardo e com as mãos cheias de calos, em vez de chagas. Dos olhos esparzia-se uma obstinada ilusão, e o suor escorria-lhe às bagadas dos músculos tensos, mais vivo e mais ardente do que o sangue. Uma figura diáfana de mulher, ia-lhe limpando a fronte, e da sua boca entreaberta nascia uma promessa imaterial de beijos puros.
Quando o pintor levantou os olhos do seu trabalho, viu apenas o modelo que o observava atentamente.
– E Ele? Ele onde está? – interrogou ansioso.
– Foi-se embora... Disse que não te perturbasse e que a sua missão estava cumprida. Que já te tinha restituído a fé em ti mesmo e que, afinal também tinhas acreditado nele...”
Domingos Monteiro, Contos do Dia e da Noite, 1952, Ed. Sociedade de Expansão Cultural

Sobre o livro:
"O dom natural de contar histórias, a noção do ritmo, a sábia preparação do clímax, a possibilidade de criar um espaço imaginário em que o real se apresenta, simultaneamente, mo mais patente e no mais simbólico, são porventura, as características que definem, imediatamente a arte de Domingos Monteiro."António Quadros 
"As Histórias Castelhanas constituem uma obra ímpar na história literária do seu autor e, também, na história da novelística portuguesa."David Mourão-Ferreira
"Domingos Monteiro faleceu em 17 de Agosto de 1980, com setenta e sete anos de idade.  Advogado, escritor, jornalista, editor, a sua vida atravessou quase oito décadas, em que a sua personalidade se afirmou por uma constante busca de um destino, onde os seus ideais de liberdade se  transformam, não raras vezes, em sonhos singulares, de enigmáticas radiações."

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