Eugénio Lisboa foi Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal, em Londres, durante dezassete anos. No IV volume das suas Memórias, "Acta est fabula. IV. Peregrinação: Joanesburgo . Paris . Estocolmo . Londres – 1976-1995", narra uma parte do vasto e riquíssimo labor que desenvolveu, nessa época, em prol da Cultura Portuguesa.
A propósito do filme "Amor de perdição", Eugénio Lisboa oferece-nos páginas de intenso interesse onde se descobre a personalidade forte e delicada de Manoel de Oliveira, recentemente falecido.
Amor de Perdição |
O director
artístico do “National Film Theatre”, Sr. Wlaschin, fez-nos saber que terá o
maior interesse em que o filme de Manoel Oliveira, Amor de Perdição,
seja apresentado no próximo “Festival Internacional de Cinema”, em Londres, a
ter lugar em Novembro próximo. O Sr. Wlaschin teve recentemente contactos com
colegas seus que estiveram no “Festival de Cinema”, em Berlim, onde o filme foi
excepcionalmente bem recebido, os quais lhe afirmaram a excelente qualidade
dele, razão por que manifestou a sua estranheza perante a nossa indiferença
relativa à apresentação da obra no Reino Unido. Queremos informar de que, já em
1979, e a pedido insistente do “National Film Theatre”, tentámos por todos os
meios obter uma cópia do filme, preferivelmente legendada em inglês. Não foi
possível ao IPC arranjar essa cópia e a única existente em França (cremos que
legendada em francês) não nos foi facultada em termos viáveis pelo agente
comercial em Paris, porquanto nos eram dados dez dias para a viagem de ida e
volta e mais o tempo necessário à exibição no “Festival”. A escassez de
recursos do IPC aliada à manifesta falta de vontade do agente em França, mau
grado as amáveis e prontas diligências do Sr. Dr. Liberto Cruz, Conselheiro
Cultural da Embaixada de Portugal, em Paris, causaram o malogro da apresentação
de um filme português que já vários países conhecem, mas que ainda não foi
possível mostrar aos britânicos. Em vista do exposto acima, gostaríamos que
fossem, desta vez, feitas diligências no sentido de, este ano, se ter uma cópia
do filme Amor de Perdição, com legendas em inglês, disponível para
ser apresentada, em Novembro, em Londres, no “Festival Internacional de
Cinema”.
A reacção do IPC a esta minha Informação de Serviço foi característica: era como se eu estivesse a apropriar-me de território que era deles. Remeteram ao director do “Gabinete de Relações Culturais Internacionais” da Secretaria de Estado da Cultura um ofício, que me acabaria por chegar às mãos, via Ministério dos Negócios Estrangeiros. Dizia assim, em estilo educado, comedido, mas reivindicativo de território que fora, alegadamente, trespassado:
Em referência ao ofício 988/GCACE/80, temos
o prazer de informar estar o Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal, em
Londres, ao corrente da participação de Amor de Perdição no
“Festival Internacional de Cinema”, de Londres”. Agradecendo e reconhecendo o
“Instituto Português de Cinema” a preocupação pela confirmação desta presença,
não pode o mesmo deixar de assinalar que tem, como é sua obrigação, contactos
directos com direcções de festivais e organismos congéneres, e bem assim, desde
há quatro anos, com o Sr. Ken Wlaschin, estranhando por isso a avaliação do
empenho referido pelo Sr. Conselheiro Cultural, a quem tem o “Instituto
Português de Cinema” dado sempre o maior apoio. houve, aliás, durante o último
“Festival de Cannes”, encontros entre o “Instituto Português de Cinema” e o
director do “Festival de Londres”, não restando quaisquer dúvidas de ambas as
partes quanto à presença de Amor de Perdição no referido
“Festival”.
A este civilizado “remoque” respondi,
nestes termos, por Informação de Serviço minha, apensada ao ofício do
embaixador, com data de 2.09.1980:
Amor de Perdição seria depois – a seguir ao
“Festival” – exibido aos alunos de português e brasileiro do “King’s College”,
em Londres. John Gillet, em conversa, disse-me que os organizadores do
“Festival tinham por Oliveira uma elevada consideração devido à sua
seriedade e ao seu profissionalismo. Com efeito, o autor de Douro, Faina
Fluvial não aproveitava, como quase todos os outros realizadores, o
pretexto de vir aos festivais, para andar a fazer turismo: estava sempre
presente e disponível, onde quer que fosse necessária a sua presença. Em suma,
suava, honestamente, a sua camisola. Quando o Amor de Perdição foi
apresentado, Gillet e os outros elementos da organização do “Festival” estavam
apreensivos, devido à invulgar duração do filme. Temiam, ao fim de duas horas,
uma debandada em massa. Mas o crítico inglês teve uma boa inspiração, que
acabou por resolver o problema. Pouco antes de as cortinas abrirem, subiu ao
palco e disse mais ou menos isto: “Meus amigos, o filme que vai ser projectado
é belíssimo, mas muito longo. Por isso, sugiro que se instalem confortavelmente
nas cadeiras, relaxem os músculos e deixem-se penetrar lentamente pela história
que o filme vai contar. Prometo que vão gostar.” O público presente assim fez e
julgo que não houve uma única deserção…No final, descobri o “espectador
privilegiado”: um rapaz polaco, que me apareceu, olheirento, devastado, como se
tivesse, ele próprio, acabado de sair do filme de Oliveira. O filme atingira-o
até às profundezas abissais do seu coração ardente de polaco: chorava como uma
Madalena, com a tragédia de Teresa, Mariana e Simão. Colou-se a nós,
portugueses, como se fôssemos um resto ou prolongamento daquele mundo que
Camilo congeminara. Queria conhecer o Oliveira, falar com o Oliveira, tocar na
carne do Oliveira, possuir o Oliveira. Eu disse-lhe que ia ter o Oliveira em
nossa casa, para jantar e conversa com alguns amigos. Ele perguntou logo,
sofregamente, se podia ir também. Ir, como?, perguntei eu. Morava longe e já
tinha o carro cheio. Ele resolveu logo: iria de motocicleta e seguiria o meu
carro, como nos filmes (sempre estávamos num festival de cinema…) E assim se fez,
mas teve pouca sorte. O Oliveira acabara de saber que a sua secretária fizera
borrada com a marcação do regresso. Em vez de ser no dia seguinte, era ao fim
dessa mesma tarde… Saiu do “Festival” a correr para o aeroporto, mas nós
fizemos o jantar à mesma, menos o Oliveira e mais o polaco. Porque ele insistiu
em vir. À falta de Oliveira, nós éramos o que havia de mais parecido: sempre
éramos lusos, sempre vivíamos amores de perdição e bordoada, e talvez, ao
jantar, falássemos do Amor de Perdição. Durante o jantar, muito intenso,
devorava tudo quanto dizíamos, não fosse perder uma migalhinha de amor de
perdição… Camilo entrara finalmente na Polónia, e pela porta grande: com
sangue, suor e lágrimas! Já no final do jantar, o telefone tocou: era o
Oliveira, já aterrado no Porto e já em sua casa. Fez logo as perguntas
meticulosas que gostava de fazer: se estava tudo bem, se o jantar tinha corrido
a contento, se já tinha acabado e se tínhamos cálices de vinho do Porto à mão
de semear. Disse-lhe que sim a tudo, incluindo os cálices. Então, disse ele,
como se estivesse a preparar uma cena para filmagem, eu que enchesse um cálice,
para mim, e pedisse à Antonieta que enchesse um, para ela, e que se aproximasse
do telefone, para fazermos os três um brinde telefónico. Erguemos os cálices e
desejámo-nos mutuamente muita saúde (deu resultado, pelo menos no que diz
respeito ao Oliveira, que tem andado de saúde, desde então, e já passou
folgadamente dos cem… Ficam os meus leitores finalmente a saber como é que isso
se conseguiu). Era (é) assim o Manoel Oliveira: atento aos pormenores e às
pessoas, cavalheiro dos pés à cabeça. De uma das vezes que veio a Londres e lhe
demos o apoio do costume, ele, uma manhã, foi à Embaixada, sem eu saber, e
pediu ao embaixador que lhe dispensasse, por umas horas, uma secretária que
conhecesse bem a Antonieta. Levou-a com ele e passou a manhã a fazer-lhe toda a
espécie de perguntas: que vestidos vestia a Antonieta, que cores preferia, se
gostava de música e que música, se lia livros e que livros, se gostava de
filmes e que filmes… Enfim, torturou a pobre rapariga (a Fernanda Borralho) com
perguntas de todos os formatos, para ver se, das respostas, deduzia, com alguma
probabilidade de acerto, o ramo de flores de que a Antonieta talvez gostasse. O
ramo, contou a Fernanda, foi meticulosa e lentamente construído, flor a flor, e
levou quase tanto tempo a ficar concluído como a Muralha da China. No fim, lá
encontrou o conjunto que era, pensava ele, o corolário provável de todo aquele
interrogatório. E foi oferecê-lo, ufano, à Maria Antonieta, que ainda hoje jura
nunca ter recebido um ramo de flores de que tanto gostasse! Só mais tarde
viemos a saber como tinha sido concebido: milímetro a milímetro como as cenas
dos seus filmes… Repito, era – é – assim o Manoel Oliveira: sempre atento ao
pormenor… E é que não largava a presa, enquanto não levava a água ao seu
moinho. Gostava – gosta! – de agradecer, em grande! A mim, ofereceu-me, entre
outras coisas, belamente encadernado, o dáctilo-escrito do guião do Amor de
Perdição. O ferro que isto faria ao polaco, se ele o soubesse! Espero que nunca
leia estas memórias: seria capaz de assassinar para ter este memento do
Oliveira…"
Eugénio Lisboa, in "Acta est fabula IV. Peregrinação: Joanesburgo . Paris . Estocolmo. Londres – 1976-1995", pags.270-276, Editora Opera Omnia, Outubro de 2014
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