"Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem"
António Jacinto (poeta angolano) , in "castigo pró comboio malandro- Poemas", Casa dos Estudantes do Império
Ponte do Rio Catumbela , Angola |
APITA O
COMBOIO
“Era muito pequena - oito anos
franzinos, mas um ouvido bem treinado e atento aos barulhos que durante o dia
rasgavam os céus da sanzala. Aquele tu ... tu... tu.u.u.u.. prolongado - um
silvo inconfundível ao cair da tarde - anunciava a chegada do comboio da cana à
margem norte do rio Cavaco. A partir dali a marcha abrandava porque o rio
demarcava a linha de entrada no coração da cidade.
O eco do último "tu..." era
o tiro de partida para a correria que, em período de férias, nos levaria (a mim
e ao meu irmão) até junto da linha férrea. Primeiro, o fumo a romper por entre
as acácias coloridas; depois, o corpo inteiro da lagarta, a estremecer os
espaços onde se apoiavam os ganchos que separavam os vagões carregados de
troncos de cana de açúcar.
Víamo-los negros, muito escuros,
queimados. Nunca fiz perguntas. Acho que naquela época, entretida a viver a
minha curta infância, não precisava de respostas. Não me interessava saber a
razão por que faziam queimadas nas plantações da cana. Bastava-me aquele cheiro
forte do açúcar em fermentação de cada vez que nos aproximávamos da Catumbela.
Na minha imaginação, a Catumbela fora
sempre uma vila doce. De cada vez que ouvia a história dos irmãos Hansen e
Gretel, não me assustava com a bruxa. Não ficava presa ao pormenor das migalhas
de pão que eles deixavam cair no chão para assinalar a passagem pela floresta.
Tudo no conto me passava ao lado, porque eu viajava directamente para a casinha
de chocolate. E, para lá chegar, deixava-me guiar pela excitação das minhas
marinas, exercitadas naquele cheiro adocicado a céu aberto. Fantasiava que a
casinha teria que estar algures por aqueles lados. Só podia ser na Catumbela -
um sítio mágico, onde das árvores pendiam folhas caramelizadas, das plantas
floriam rebuçados coloridos e o rio, ali tão perto, se deixava arrastar num
caudal de leite creme espelhado de açúcar queimado e crocante.
E tudo isto por causa da Cassequel,
fábrica onde a cana era transformada em açúcar e depois transportado em grandes
sacas de pano onde figuravam as letras da Companhia. O tecido das sacas era
depois aproveitado para aventais e panos de cozinha. Na nossa casa, a palavra
reciclagem começou a ser praticada muito antes de ser inventada, por mor de
práticas que nos ensinavam a nada desperdiçar.
E nós corríamos para o comboio, de
paus na mão, suficientemente compridos para encurtarem a distância que ia dos
nossos curtos braços até aos vagões. E ficávamos ali postados a vê-lo deslizar
sobre os carris, estudando a oportunidade de surripiar algum pedaço de cana que
estivesse a espreitar para o lado do musseque. Claro que o meu irmão - nos seus
tenros quatro anos - pouco mais fazia do que imitar-me. Dava pequenos saltos e
investia com o pau, como quem espicaça um animal na ânsia de o ver
aproximar-se.
Ainda hoje me interrogo como é que eu
conseguia, mas recordo nitidamente que regressávamos a casa a chupar um pedaço
de cana retirado do comboio. Podíamos obtê-la de outra maneira, mas não teria o
mesmo significado nem o mesmo sabor - o gosto da vitória sobre uma aventura
proibida, mas bem sucedida.Os meus pais nunca souberam o que nos fazia correr,
assim que o comboio apitava do outro lado do rio. Talvez pensassem que nos
movia uma mera curiosidade e nos quedássemos silenciosos a vê-lo passar.
Quando, muitos anos mais tarde, pisei
o palco do Cinema Monumental para, integrada num grupo de jograis, dizer o
"Trem de Alagoas" do brasileiro Ascenso Ferreira, não senti debaixo
dos pés a madeira encerada do sobrado. Assim que uma colega começou: "O
sino bate/ o condutor apita o apito/ solta o trem de ferro um grito,/ põe-se
logo a caminhar...", eu estremeci por cima de dois carris do caminho de
ferro de Benguela, deixei que a trepidação da linha se apoderasse do meu corpo
e ganhei a velocidade do tempo.
Numa viagem de regresso ao passado,
continuei pelas entranhas do poema, até me inebriar com o cheiro das estrofes
"Cana-caiana/ cana-roxa/ cana-fita/cada qual a mais bonita/ todas boas de
chupar..." e deixar o açúcar derreter-se na língua de areia onde estão
gravadas as pegadas da minha infância.”
Aida Baptista, in “Passaporte
Inconformado”, Ed. Minerva Coimbra
"Maria Aida Costa Baptista nasceu
em Pinheiros, concelho de Tabuaço, distrito de Viseu. Com um ano de idade foi
para Angola, tendo vivido sempre na cidade de Benguela, onde estudou, casou,
teve dois filhos e iniciou a sua carreira docente.
De regresso a Portugal, em 1975, fez a
Licenciatura em História e uma Pós-graduação em Estudos Europeus na
Universidade de Coimbra e o Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesas, na
Universidade Nova de Lisboa. Em 1989, candidatou-se a Leitora de Português no
estrangeiro e foi colocada pelo ICALP na Universidade de Helsínquia, Finlândia,
onde cumpriu uma missão de 8 anos. Em 1998, foi seleccionada pelo Instituto
Camões para uma segunda missão, na Universidade de Toronto, Canadá."
A vila da Catumbela, em Angola, entre as cidades do Lobito e de Benguela, tinha em laboração uma grande fábrica de produção de açúcar, a Companhia Agrícola de Cassequel, que já deixou de funcionar. Por ela passaram muitos trabalhadores. Entre eles, o escritor Joaquim Soeiro Pereira Gomes, célebre autor de “Esteiros”.
"Soeiro Pereira Gomes fez os primeiros estudos em Espinho e, a partir de 1920,
entrou na Escola Nacional de Agricultura de Coimbra, de onde saiu diplomado em
1928. Não tendo conseguido um emprego compatível com o curso (como
administrador de explorações rurais ou encarregado de empresas agrícolas) e
querendo casar, parte para Catumbela, Angola, respondendo a um anúncio da
Companhia Agrícola de Cassequel, em 1930. (Dois anos antes, havia também
viajado para Angola o futuro escritor Alves Redol, procurando uma vida melhor.)
Porém, o trabalho e os ares de África obrigaram-no a voltar, doente e debilitado,
em meados de 1931. Casou ainda nesse ano - com Manuela Câncio Reis -, começando
também a trabalhar nos escritórios da Fábrica Cimentos Tejo, em Alhandra,
colocado pelo sogro."
Actualmente, a Vila de Catumbela exibe, junto à Estrada Nacional, estas locomotivas que puxavam os vagões carregados de cana-de-açúcar.
Actualmente, a Vila de Catumbela exibe, junto à Estrada Nacional, estas locomotivas que puxavam os vagões carregados de cana-de-açúcar.
- TREM DE ALAGOAS
- O sino bate,
o condutor apita o apito,
solta o trem de ferro um grito,
põe-se logo a caminhar...
— Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...
Mergulham mocambos
nos mangues molhados ,
moleques mulatos,
vem vê-lo passar.
— Adeus!
— Adeus!
Mangueiras, coqueiros,
cajueiros em flor,
cajueiros com frutos
já bons de chupar...
— Adeus, morena do cabelo cacheado!
— Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...
Na boca da mata
há furnas incríveis
que em coisas terríveis
nos fazem pensar:
— Ali mora o Pai-da-Mata!
— Ali é a casa das caiporas!
— Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...
Meu Deus! Já deixamos
a praia tão longe...
No entanto avistamos
bem perto outro mar...
Danou-se! Se move,
parece uma onda...
Que nada! É um partido
já bom de cortar...
— Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...
Cana-caiana
cana-roxa
cana-fita
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar...
— Adeus, morena do cabelo cacheado!
— Ali dorme o Pai-da-Mata!
— Ali é a casa das caiporas!
— Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar.
Ascenso Ferreira, in "Poemas de Ascenso Ferreira", Nordestal Editora, 1995, PE
nao sao so comboios as imagens sao tambem maquinas agriculas e industriais mas deviam estar num museu ...joao branco
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