Por
António Lobo Antunes
“Lá deu com o bicho: era um
meningococo. Imaginaram a cena? Se isto não vos faz admirar o meu pai cuja
valentia, herdada do pai dele, foi sempre enorme, vão à fava
Às vezes a vida é muito dura. Quando
eu tinha meses apenas estava em Lagos com os meus pais, de quem era então o
único filho. O meu pai fora lá colocado na tropa, tinha vinte e sete anos, a minha
mãe vinte e cinco e eu alguns meses e fomos com ele, um jovem médico sem
experiência. A viagem entre Lagos e Lisboa era, nessa época, longuíssima, de
comboios lentos, um até Faro e um segundo até Lisboa, muitas horas de viagem
incómoda e cansativa. A certa altura adoeci: febre muito alta e quase logo a
seguir entrei em coma, com os sintomas típicos da meningite, a rigidez da nuca,
tudo isso, para quê mais pormenores. Ainda hoje, que existe um armamentário de
antibióticos, continua a ser uma situação bastante grave. Nessa época não havia
os tratamentos que há hoje, muito menos numa pequena cidade de província. Na
desesperada tentativa de me salvarem os meus pais
(o que havia a perder?)
meteram-se comigo a caminho de Lisboa
e imagine-se o que foi para eles o horror da viagem, horas sem fim com uma
criança muito, muito doente ao colo que, a qualquer momento, poderia morrer
durante o trajecto. É difícil imaginar o sofrimento e a angústia deles e, ao
mesmo tempo, a sua coragem. Não morri durante o trajecto, que deve ter demorado
séculos para os meus pais. À chegada ele pegou em mim e levou-me, da estação,
ao Hospital de Santa Marta, nessa época o Hospital Escolar porque Santa Maria
apenas ficou acabado em 54, creio, e estávamos em 43. Levou-me de táxi ao Hospital
de Santa Marta, sempre em coma, e ele mesmo me fez uma punção lombar, que é
meter uma agulha grande nas costas, entre duas vértebras, a fim de recolher uma
amostra do líquido que há dentro da espinha, colocá-lo numa lâmina e tentar ver
qual era o micróbio que por lá andava. Fez tudo isto sozinho, com uma coragem
que sempre admirei. Não é agradável espetar aquela seringa num bebé em coma,
para mais seu filho. Recolheu o líquido, colocou-o numa placa de vidro e
observou-o ao microscópio. Se fosse o bacilo da tuberculose eu estava
condenado, como lhe sucedeu com um irmão, mais ou menos na minha idade, se
fosse um meningococo, que é uma outra espécie de bacilo, eu talvez tivesse
algumas
(poucas)
probabilidades de sobreviver. Agora
tentem imaginar a cena: um rapaz de 27 anos com suficiente alma para fazer isto
ao próprio filho, sem saber o que iria encontrar.
Lá deu com o bicho: era um
meningococo. Imaginaram a cena? Se isto não vos faz admirar o meu pai cuja
valentia, herdada do pai dele, foi sempre enorme, vão à fava. Sabendo de que
animal se tratava contactou o professor de Pediatria que o mandou dar-me injecções de sulfamidas na barriga: podia ser que o miúdo se salvasse.
Levaram-me para casa dos meus avós, em coma, duro como um pau e começaram a
meter-me sulfamidas cá dentro. Entretanto o meu avô já tinha falado com o seu
particular amigo Santo António e proposto um negócio: se o meu neto sobreviver
levo-o a Pádua a fazer a primeira comunhão na tua igreja. Santo António, que
parece falar pouco, não lhe respondeu, quer dizer usa outras maneiras de
comunicar que nem sempre exigem palavras. Os dias seguintes foram dramáticos:
fica vivo, não fica vivo? E não é que uma bela manhã dão comigo, até então
completamente inerte, a sorrir e a brincar com as mãos? Nem consigo conceber o
júbilo deles. Nada em mim ficou afectado, física ou mentalmente. Santo António
escutara o meu avô e tivera pena de mim. E, aos sete anos, os meus avós e os
meus pais levaram-me a Pádua a cumprir a promessa. Depois da comunhão o meu avô
conduziu-me ao túmulo do Santo, mandou-me colocar a mão nele, colocou a sua no
túmulo também e mandou-me prometer que, se um dia tivesse um filho, o traria
ali para a primeira comunhão dele. O meu avô era um homem grande: e lembro-me
do meu espanto ao ver as lágrimas correrem-lhe cara abaixo. Comoveu-me tanto
que as minhas lágrimas corriam também. O meu pai, que era uma estranha mistura
de orgulho e modéstia, tal como a minha mãe, praticamente nunca me falaram
desta história e, se de passagem se referiram a ela, era num tom discreto e
casual. O facto é que, desde então, se estabeleceu entre mim e o Santo uma
relação muito forte e, desde então, igualmente, tem cuidado de mim com um
carinho e um amor constantes. Aos três anos tive uma tuberculose: lá veio ele e
resolveu-a. Há quase oito anos tive um cancro do cólon. Chamou um delegado seu,
o Professor Luís Costa e, juntos, acabaram com ele. No ano passado ou há cerca
de dois anos já, arranjei dois cancros do pulmão. O Professor Luís Costa, com
Santo António a espreitar-lhe sobre o ombro, matou esses também, e começo a
perguntar-me se ele não estará já farto de tomar conta de mim. É que lhe dou
trabalho, dou-lhe uma trabalheira que nunca mais acaba. Já deve andar um bocado
cansado. Mas parece que dou trabalho a quem quer que se aproxime, não sei, a
começar por mim mesmo. Que silêncio nesta sala enquanto avanço linha a linha. E
inverno. E frio. Mas não me sinto triste. Comecei a sorrir como depois da
meningite. Primeiro devagarinho, depois de genuína alegria. E o sorriso está
todo à minha volta. Só me falta um Menino Jesus para trazer ao colo. Santo
António, esse, anda por aí, decerto a pensar
- Que maçada me vais arranjar agora?
acho eu que a sorrir também. Chegue-se
aqui para o pé do aquecimento, não quero que se constipe.”António Lobo Antunes, em crónica publicada na revista Visão, em 19.02.2015
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