Sobre o Amor
III
Amores sucessivos
“O mais frequente é que o
homem ame várias vezes durante a sua vida. Este facto levanta uma série de
questões teóricas, para além das questões práticas que o apaixonado terá de
resolver por sua conta. Por exemplo: esta pluralidade de amores sucessivos faz
parte da natureza masculina ou será um defeito, um resíduo vicioso de
primitivismo, de barbárie? Seria o amor único o ideal, o perfeito, o desejável?
Haverá, nesta matéria, alguma diferença entre o homem normal e a mulher normal?
Evitaremos, para já,
qualquer tentativa de resposta a tão perigosas questões. Sem tomar a liberdade
de opinar sobre elas, consideremos, sem mais, o facto indiscutível de que o
homem tem quase sempre muitos amores. Como nos referimos a formas plenas deste
sentimento, fica excluída a pluralidade da coexistência e retemos apenas a
pluralidade da sucessão.
Não implicará este facto
uma dificuldade séria para a tese aqui sustentada, segundo a qual a escolha
amorosa revela a natureza essencial da pessoa? Talvez, mas antes convirá
lembrar ao leitor a observação trivial de que essa variedade de amores pode ser
de duas espécies. Há indivíduos que amam várias mulheres ao longo da sua vida;
mas todas elas reproduzem com uma insistência evidente o mesmo tipo de
feminilidade. Às vezes, a coincidência é tão grande que as mulheres partilham
as mesmas características físicas. Esta espécie de fidelidade larvada, em que
através de muitas mulheres se ama, em rigor, uma única mulher genérica, é
extraordinariamente frequente e constitui a prova mais directa da ideia que
sustentamos.
Mas, noutros casos, as
mulheres sucessivamente amadas por um homem, ou os homens preferidos por uma
mulher, são, na realidade, de tipo muito diferente. Considerado o facto a
partir da nossa ideia, significaria que a natureza essencial do homem teria
mudado de urna época para outra. Será possível uma mudança tão radical do nosso
ser? É um problema crucial, talvez decisivo, para uma ciência do carácter.
Durante a segunda metade do século XIX era habitual pensar que o carácter se
formava do exterior para o interior. As experiências da vida, os hábitos que
criam, as influências do meio, as vicissitudes do acaso, os estados
fisiológicos iriam decantando, como um sedimento, aquilo a que chamamos
carácter. Não haveria, portanto, urna estrutura essencial, urna estrutura
íntima anterior aos acontecimentos da existência e independente deles. Seríamos
feitos, como a bola de neve, da poeira cio caminho que vamos percorrendo. De
acordo com este modo de pensar, que exclui um núcleo radical da personalidade,
não se põe, evidentemente, o problema das mutações radicais. O chamado carácter
modificar-se-ia constantemente: à medida que se vai fazendo vai-se também
desfazendo.
Razões de bastante peso,
que não é oportuno enumerar aqui, inclinam-me, porém, a acreditar no contrário;
parece-me, pois, mais exacto dizer que vivemos de dentro para fora. Antes que
sobrevenham as contingências externas, o nosso carácter interior está já
formado no essencial, e embora as circunstâncias da existência influam de
alguma forma sobre ele, é muito maior a influência que o carácter exerce sobre
os acontecimentos. Somos por norma incrivelmente impermeáveis em relação ao que
nos acontece quando não está em sintonia com esse carácter inato que, em última
instância, somos. Nesse caso dir-se-á também não podemos falar de mudanças
radicais. Aquilo que éramos ao nascer, seremos na hora da nossa morte.
Não, não. Esta opinião
goza, precisamente, da elasticidade suficiente para se moldar aos factos em
toda a sua amplitude. Permite-nos distinguir as pequenas modificações que são
introduzidas pelos acontecimentos exteriores no nosso modo de ser das outras
modificações mais profundas que não obedecem a motivos casuais, mas à própria
natureza do carácter. Eu diria que o carácter muda, se por esta mudança se
entender propriamente urna evolução. E esta evolução, como a de qualquer
organismo, é provocada e dirigida por razões internas, inerentes ao próprio
ser, inatas, como o seu carácter. O leitor terá certamente a impressão de que
por vezes as transformações daqueles que lhe são próximos lhe parecem frívolas,
injustificadas, quando não decorrentes de motivos inconfessáveis, mas que
noutros casos a mudança possui toda a dignidade e todo o sentido de um
crescimento. É como o rebento que se torna árvore, a nudez que precede a
renovação das folhas, o fruto que se segue à fronde.
Eis, pois, a minha
resposta à objecção precedente. Há pessoas que não evoluem, caracteres
relativamente estagnados (em geral, os de menos vitalidade, o protótipo do «bom
burguês»). Jamais modificarão o seu esquema de escolha amorosa. Mas há
indivíduos de carácter fecundo, rico de possibilidades e de destinos, que
esperam ordeiramente o seu momento de explosão. Quase se poderia afirmar que
esta é a norma. A personalidade sofre ao longo da vida duas ou três grandes
transformações, que são como estádios diferentes de uma mesma trajectória
moral. Sem perder a solidariedade, mais ainda, a homogeneidade fundamental com
os nossos sentimentos passados, um belo dia percebemos que entrámos numa nova
fase ou modulação do nosso carácter. É a isso que chamo uma mudança radical.
Nada mais, mas também nada menos. O nosso ser profundo parece, em cada uma
destas duas ou três fases, rodar uns graus sobre si mesmo, deslocar-se para
outro quadrante do Universo e orientar-se para novas constelações.
Não será um acaso
sugestivo que o número de amores verdadeiros pelo qual um homem normal costuma
passar seja praticamente sempre o mesmo: dois ou três? E, além disso, que cada
um desses amores seja cronologicamente localizável em cada uma destas fases do
carácter? Não me parece, pois, exorbitante ver na pluralidade de amores a mais
flagrante confirmação da doutrina aqui insinuada. A preferência por um novo
tipo de mulher, corresponde rigorosamente a um novo modo de sentir a vida. O
nosso sistema de valores alterou-se em maior ou menor grau — mantendo sempre
uma fidelidade latente com o antigo — qualidades que antes não estimávamos, que
talvez nem se quer percebêssemos, passam para primeiro plano, e um novo esquema
de selecção erótica interpõe-se entre o homem e as mulheres que passam.
Só um romance oferece
instrumental adequado para ilustrar esta ideia. Eu li extractos de um romance,
que talvez nunca venha a ser publicado, cujo tema é, precisamente, este: a evolução
profunda de um carácter masculino vista através dos seus amores. O autor — e é
isso que me parece interessante — insiste também em mostrar a continuidade do
carácter ao longo das suas transformações e os seus contornos divergentes,
esclarecendo assim a lógica viva, a génese inevitável destas transformações. E
uma figura de mulher reúne e concentra em cada etapa os raios dessa vitalidade
em evolução, como essas figuras espectrais que se conseguem formar com luzes e
reflectores sobre uma atmosfera densa.
Ortega y Gasset, in “Estudos sobre o amor” , Ed. Relógio d´Água, 2002
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