"Nenhuma hipocrisia vinha alterar a candura desta alma gémea ,perturbada por uma paixão que nunca havia experimentado. Enganava-se, mas sem o saber, e contudo o seu instinto de virtude alvoraçava-se.Tais eram os combates que a agitavam quando Julien apareceu no jardim. Ouviu-o falar e quase no mesmo instante viu-o sentar-ser ao lado. A sua alma ficou como enlevada por essa felicidade encantadora que nos últimos quinze dias a deixava mais surpreendida que seduzida. Tudo era imprevisto para ela. " Contudo", disse para consigo, bastam alguns instantes da presença de Julien para fazer esquecer todas as suas culpas?" Sentiu-se aterrada; e fora então que retirara a mão.
Os beijos cheios de paixão, e tais como ela nunca havia recebido, fizeram-na esquecer imediatamente que ele talvez amasse outra mulher. Não tardou que o rapaz deixasse de ser culpado a seus olhos. A cessação da dor pungente, filha da suspeita, a presença de uma felicidade que ela jamais sonhara, provocaram-lhe transportes de amor e de louca alegria. Esse serão foi encantador para toda a gente menos para o presidente de Verrières, que não conseguia esquecer os seus industriais enriquecidos. Julien deixara de pensar na sua torva ambição e nos seus projectos tão difíceis de executar. Pela primeira vez na sua vida, sentia-se arrebatado pelo poder da beleza. Perdido num sonho vago e doce, tão estranho ao seu carácter, apertando docemente essa mão de uma beleza perfeita que lhe agradava , ouvia vagamente o movimento das folhas da tília agitadas por esse ligeiro vento da noite e os cães do moinho de Doubs que ladravam ao longe.
Mas essa emoção era um prazer e não uma paixão. Ao regressar ao seu quarto só pensava numa felicidade , a de retomar o seu livro favorito; aos vinte anos a ideia do mundo e do efeito que aí se irá produzir prevalece sobre tudo o mais.
Não tardou , porém, a pousar o livro.(...)
A senhora de Rênal não conseguiu pregar olho. Tinha a impressão de que não tinha vivido até esse instante. Não conseguia afastar o pensamento da felicidade de sentir Julien cobrir-lhe a mão de beijos inflamados .
(...) A senhora de Rênal não tinha nenhuma experiência da vida; mesmo plenamente acordada e no exercício de todas as sua faculdades mentais, não teria sido capaz de descobrir qualquer intervalo entre ser culpada aos olhos de deus e ser acabrunhada em público pelas marcas mais retumbantes do desprezo geral.
Quando a terrível ideia do adultério e de toda a ignomínia que, na sua opinião, esse crime acarreta, lhe deixava algum repouso e ela conseguia pensar na doçura de viver inocentemente com Julien, como até aí, logo se encontrava lançada na ideia horrível de que Julien amava outra mulher." Stendhal, in " O vermelho e o negro", Editora Civilização
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