O Ensaio " Morrer de Velho" de Eugénio Lisboa, que será publicado, neste espaço, em duas partes, é uma das obras mais luminosas da escrita ensaística. Longo, profundo e de uma extraordinária lucidez, disseca com magistral mestria a finitude da vida.
Desde o início, as frases são encadeadas, com requinte e argúcia, para conduzir o excepcional talento deste ensaísta à obra " O Caos e a Noite" de Henry de Montherland, um dos seus mais estimados escritores. No entanto, " Morrer de Velho" é um ensaio ímpar que ultrapassa a obra em que se constrói porque a engrandece e a ilumina, quer pelo rigor e riqueza da análise quer pela latente e implícita comoção catártica.
"Morrer de Velho" é, também, um prodigioso e sábio repositório de verdades ( nem sempre consentidas) que deve ser lido com cabeça e coração por todos os que tão levianamente peroram sobre aqueles que designam por " os velhos" .
Por Eugénio Lisboa
"Diz um velho provérbio inglês que a idade é um mau companheiro de viagem: para quem a experimenta em si próprio e para os outros a quem faz experimentá-la, através de uma escrita mais ou menos eloquente. Mas a velhice é um facto e é um facto que, com o progresso, multiplica cada vez mais a sua presença. As pessoas idosas abundam por toda a parte, impõem-se com o seu aspecto de agressiva permanência, se é certo, como queria Bates, que “um velho tem um ar permanente, como se já tivesse nascido velho.” Os velhos parecem dizer-nos uma velhice que ali está de toute éternité... E, no entanto, ainda ontem, ante-ontem, estes velhos eram jovens e dirigiam um olho trocista e cruel aos velhos que imaginavam nunca virem a ser.
A velhice é um tema penoso e as blandícias de uma “political correctness” que pretendem inculcar a visão de uma mais valia que representaria a experiência – convencem toda a gente de boa consciência fácil mas não os transeuntes da vida em final de carreira. De vez em quando, o verniz estala e explode a brutalidade de um statement que diz o que todos pensam e só alguns ousam formular. Por exemplo, esta asserção de um personagem de Alan Bennett, mestre do trágico que é cómico e do cómico que é trágico: “Despachem os velhos para apartamentos elevados. A desolação, a catorze andares de altura, parece-se com uma vista.”
Desde tempos remotos – mesmo quando os velhos não abundavam, como hoje – o homem tem reflectido, em vários tons e formatos, sobre o envelhecer, que arrasta consigo a decadência e a perda de poderes. Ésquilo, que viveu muito, inculcava-se optimista e observava, como quem se consola, que “os velhos são sempre suficientemente novos para aprenderem.” Mas o tom da maioria dos que vieram depor sobre o tema é de melancolia ou de franca desolação. Horácio, impiedoso, afirma, sem tergiversar (a political correctness não estava ainda em vigor),que “o passar dos anos rouba-nos coisa atrás de coisa.” Omar Khayyam, poeta e cientista persa, autor do famoso Rubáiyát, recorrendo à metáfora do vinho, que abundantemente cantou e bebeu, notou que: “O vinho da vida vai manando gota a gota / As folhas da vida vão caindo, uma a uma. /” . Já mais no nosso tempo, o grande dramaturgo americano Edward Albee, que gravou a fogo alguns dos mais dilacerantes conflitos em que se consomem os humanos, pôs na boca de um dos seus personagens da peça The American Dream, estas palavras cruéis e intoleravelmente verdadeiras: “Ninguém está disposto a ouvir os velhos queixarem-se porque pensam que eles não fazem outra coisa senão queixar-se. E isso é assim porque os velhos se torcem e se desmancham e se enrodilham até assumirem a forma de uma queixa.”
Os idosos, com as suas obsessões e monomanias, com a sua lucidez pessimista, que incomoda e desassossega, suscitam, como reacção irritada ou impaciente, a troça e, ocasionalmente, o insulto. De entre a vasta literatura dedicada a isto, recolho, quase ao acaso, um provérbio persa, que emblematiza o tragi-cómico do confronto da idade com a irreverência cruel da juventude: ”Quando a serpente é velha, até as rãs se metem com ela.”
Os idosos – em fim de corrida – tentam, quase sempre em vão, achar um qualquer sentido para a vida que viveram e está em vésperas de se extinguir. Jung, o grande psicólogo suíço, resumiu esta angústia milenar numa fórmula tão bela quanto inconclusiva, pois se fica pelo patético do dever ser : “A tarde de uma vida humana”, diz Jung, “tem que ter um significado próprio, e não pode ser meramente um miserável apêndice à manhã da vida.” Tem que ter, não pode ser são infelizmente expressões de uma ansiedade devorada pela dúvida e não uma garantida promessa de significado. Pelo contrário, em vez do conforto de uma justificação firme para a sua passagem pela vida, acolhe-os, com frequência, a rejeição e a troça. Testemunho metaforicamente esplendoroso dessa rejeição vamos encontrá-lo, por exemplo, em Shakespeare quando, no Tímon de Atenas, nos diz: “Os homens fecham as suas portas ao sol poente.” Porque o sol poente anuncia um fim e os homens não gostam de que lhes falem de fim. Eloquente testemunho da troça assassina, vamos buscá-lo tão longe, no tempo como num velho provérbio yiddish: “Quando o boi tropeça, afiam-se as facas.”
A velhice, resumo, tem sido tema recorrente de meditação filosófica e literária, tem servido a criadores de ficções romanescas e teatrais e a pensadores aforistas e tem vindo, ao longo dos séculos e através dos textos, a trazer o seu modicum de inconforto e desassossego à desatenção mais ou menos autista dos que são jovens antes de se tornarem velhos.
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O meu primeiro encontro com a evidência da velhice e com tudo quanto ela arrasta consigo deu-se, por acaso, quando era ainda bastante novo. Haviam tombado, à minha volta, alguns dos tais velhos permanentes, amigos de família, que sempre conhecera, já idosos, como uma espécie de imóveis que ali se postavam desde sempre, inevitavelmente, eternamente presentes. Afinal, eram mortais. Afinal, também eles acabavam, afinal, nada durava para todo o sempre. Foi nessa altura – 1963 – que, tendo viajado de Lourenço Marques até Paris, ali fui comprar, acabado de sair, o romance de Montherlant, O Caos e a Noite (Le Chaos et la nuit). Velho admirador do mais admirável prosador francês do século XX, precipitei-me na leitura do romance de que, cinco anos depois, na câmara escura dos seus Carnets o autor diria: “Expulsei o horror da morte ou se quiserem, pu-lo para trás de mim, ao escrever O Caos e a Noite.” Com efeito, este extraordinário romance – repito: extraordinário romance – parecia vir responder, com não pouco alarme, ao clarão de pânico, ainda não de todo apagado, que me visitara pela morte sucessiva de velhos amigos da família. No livro, resumi já eu, em texto publicado nesse mesmo ano, Montherlant fala-nos, com um misto de lucidez cruel e de ternura, “de um velho [exilado] espanhol anarquista que vive em Paris em condições que causam tédio ao mais pintado: sem mulher (que já morreu), sem amante, praticamente sem amigos, com uma filha que se lhe vai tornando estranha com os anos (passada a idade da gentileza e da graça) – velho, solitário, Celestino Marcilla rumina jornais de manhã à noite, «discutindo os problemas do nosso tempo» e a «situação em Espanha», sob o olhar trocista e cheio de amor que é o de Montherlant, seu biógrafo de génio. Celestino Marcilla tem 67 anos quando o romance começa. Está portanto prometido à morte – uma morte que não há-de tardar. Ignora-o de começo. A revelação virá um pouco mais tarde, sem nada de grandioso que a ilumine. Os pequenos sinais anunciadores da nossa morte são sempre anódinos, iguais a tantos outros despidos de significado mortífero. Mas a verdade é que, quando surgem, imediatamente os reconhecemos. São esses e não outros. Curioso: só aquele que vai morrer os reconhece. Os outros, os de fora, riem e pensam: «velhice!» Mas não nos adiantemos: «Morrer é longo» - diz a Rainha Joana, a Louca, no Cardeal de Espanha. Escrever também. Temos tempo. Pacientemos. Morramos um pouco também com o velho espanhol ressequido – façamos-lhe companhia até àquele limite que ele há-de franquear sozinho – irremediavelmente, sem ninguém com quem «discutir» a sua morte, o seu desespero e o seu abandono.”
Façamos, desde já, um necessário esclarecimento: O Caos e a Noite é uma lúcida e implacável viagem ao fundo da velhice, da decadência e da morte. Mas não é uma queixa: não é um lamento. Numa entrada dos seus Carnets de 1968, Montherlant faz questão de sublinhar, com aquela sua impertinência que é gosto de provocar e sobressaltar: “Eu não me queixo, eu exprimo-me.” De resto, para ele, a escrita foi sempre uma alegria, um prazer, uma necessidade – uma fuga triunfal ao sofrimento. “O escritor”, diz ele, algures, nos Carnets, “”é aquele que sofre, não sofrendo”. O sofrimento pode até ser um motor de arranque eficaz para esse não-sofrimento que é a escrita. Por isso gosta de citar, com maldade saudável, aquela passagem da Odisseia, na qual Homero não tem pejo de afirmar que “os deuses quiseram todas aquelas matanças para fornecerem matéria-prima aos poetas.”
O sofrimento é, pois, motor de arranque para outras coisas, de aí, a formulação provocante inserida nos seus ensaios: “As mais belas obras do sofrimento (as tragédias) são escritas em estado de alegria.” Por isso achava encantadora –e transcrevia-a – esta frase dum escritor contemporâneo: “Shakespeare aproveitou os lazeres forçados a que o obrigava a peste em Londres para enriquecer a sua obra.” E recorda ainda, com maldade felina, aquela inesquecível passagem, do romance de Sienckiewicz, Quo vadis?, na qual se diz que Nero incendeia Roma para nas chamas encontrar inspiração para um poema. Como se vê, o autor de O Caos e a Noite não teme dizer o que pensa mesmo que aquilo que pensa possa situar-se à beira do ultraje... E tem disso consciência quando, referindo-se a essa espécie nobre de impudor, regista nos seus Carnets de 1968, a seguinte impertinência: “Aquele que diz tudo o que pensa é mais ou menos como a criança que faz xi-xi na cama.”
É o que faz, da sua arte, em geral, e de O Caos e a Noite, em particular, um exemplo de grande arte, de arte forte, despojada mas eloquente, cheia de energia e sensibilidade, uma arte de intemerata sondagem servida por um estilo que vem de Bossuet, passa por Chateaubriand e desagua no grande mar da prosa do autor de La Rose de Sable e de La Ville dont le prince est un enfant. “A grande arte”, observa Montherlant, “é um composto de impudor e de litote”, isto é, de atrevimento e reserva, de quente e frio, de interminável provocação e contenção. Uma arte profunda, que comove os profundos e faz rir os não-profundos, que sempre confundem – porque são cegos – a eloquência com a má retórica. Montherlant diz algures que as palavras saem de si como jactos de fogo mas que certos críticos não conseguem ver no fogo mais do que o fluir de uma retórica vazia. Num texto penetrante dos seus Carnets de 1966, o autor de La Reine Morte, falando destas coisas, observa o seguinte: “Os mestres escritores de outrora, de não há assim tanto tempo, diziam, de vez em quando, certas coisas com um canto interior e o acento pessoal do vivido, com um acerto no acordo entre a verdade do sentimento e a maneira por que era expresso, que faziam pensar que essas frases eram «divinas», se por isso se quer simplesmente dizer que aquele que a elas era sensível se sentia por elas levantado a uma altura não sobre humana, mas a uma altura onde atingia o cume do que havia nele de humano.” Eis uma perfeita caracterização da arte com que o autor do Caos nos transmite a corrida trágica para a morte do velho anarquista espanhol, o qual ( autor),usando de uma pedra filosofal só por poucos manipulada, permite que o seu sofrimento profundo se transmute na alegria com que no-lo transmite – a nós, que o recebemos como sofrimento também redimido pelo gozo estético com que o lemos. Celestino Marcilla, morrendo de tédio e do pavor dos sinais de morte que o seu quotidiano parisiense lhe vai servindo, pressente um futuro tão negro como aquele que Montherlant regista nos carnets publicados postumamente, com o expressivo título Tous Feux Éteints. “O meu futuro está recoberto por uma nuvem negra, como uma cidade bombardeada”, diz ele, num certo ponto; e logo adiante, reitera e agrava: “O meu futuro, negro como a boca do inferno.” Estas passagens, escritas no ano do seu suicídio (1972) equivalem, de modo escaldante, à visão do velho combatente espanhol que, próximo do fim, faz como o Pompeu que Montherlant pinta, na batalha de Farsália, sentando-se, no meio do estrugir das armas, - e significando, nesse gesto de abandonada desistência, que se entrega à derrota e à morte. Celestino, pressentindo o fim do combate – quando todos o abandonam e as criadas contratadas deixam de se apresentar ao serviço – senta-se, por fim, nos bancos de Paris, confessando, por esse gesto de desistência, que já lhe não apetece a luta: a natureza, o universo recuam diante dele. Continuar a luta? À quoi bon? Celestino pressente, como Montherlant, que o ir morrer o separa da humanidade dos que vão viver (tema que perpassa como fogo por toda a obra do autor do Caos): “A velhice atrai as traições como os excrementos atraem as moscas”, diz o Cardeal de Cisneros da peça Le Cardinal d’Espagne. E ainda, reforçando o teor de atrocidade, o mesmo personagem, na mesma peça: “Vós sois do mundo dos vivos e eu sou do mundo dos mortos; não há, entre nós, linguagem comum. Uma verdade para os vivos. Uma verdade para os mortos.”
A evidência desta separação dilacerante entre o mundo dos que vão morrer e o mundo dos que vão continuar a viver ecoa no espanto quase sinistro com que Montherlant lança, poucas semanas antes de morrer, esta observação nos seus Carnets: “É notável”, diz ele, [é notável] que Petrónio [do romance Quo Vadis’] comprometido como se encontra [Nero condenou-o à morte, por suicídio], tenha, ainda assim, gente que venha à recepção que ele organiza e, durante a qual, se mata.” É esta uma das mais fundas intuições do autor do Caos, a do lento apagar da visibilidade daquele que ameaça extinguir-se. Num registo feito dois anos antes de pôr fim à vida, Montherlant leva ao extremo a sua sondagem a essa separação de mundos: “O homem a quem acabamos de dizer que estamos condenados, que o médico no-lo confessou, já não nos acompanha à porta, porque deixámos de ser importantes.” A morte com que fomos indiciados relega-nos para um limbo que os vivos não querem transpor: “Os velhos morrem por já não serem amados”, nota ainda Montherlant. Amados? Eu diria, indo mais longe: os velhos morrem por já não serem vistos. Por outras palavras, o que vai morrer conta apenas consigo e com os únicos recursos de que ele próprio dispõe: “Todo o homem que vai morrer”, nota ainda Montherlant, “é composto de dois homens: aquele que ele foi, que mantém de pé aquele que ele é.” (...)
( continua)
*Dou a este texto o subtítulo de “revisita” porque ele, de facto, revisita, alterando-o e aprofundando-o (tornando-o mais letal...), um texto mais antigo, com o mesmo título, publicado, incompletamente, nos números 102, de 9 de Novembro de 1963 e 103, de 16 de Novembro de 1963, no semanário A Voz de Moçambique, e completado para inclusão no livro "Crónica dos Anos da Peste-I "( Lourenço Marques, 1973; 2ª. edição, Lisboa, 1996).
Eugénio Lisboa
*Dou a este texto o subtítulo de “revisita” porque ele, de facto, revisita, alterando-o e aprofundando-o (tornando-o mais letal...), um texto mais antigo, com o mesmo título, publicado, incompletamente, nos números 102, de 9 de Novembro de 1963 e 103, de 16 de Novembro de 1963, no semanário A Voz de Moçambique, e completado para inclusão no livro "Crónica dos Anos da Peste-I "( Lourenço Marques, 1973; 2ª. edição, Lisboa, 1996).
Eugénio Lisboa
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