No passado , como sabes, os factos sempre foram anotações em blocos, o meu modo de saltar para a ficção. Para mim, como para a maioria dos romancistas, qualquer acontecimento autenticamente imaginário começa aí, com os factos, com o específico, e não com o filosófico, com o ideológico ou com o abstracto.
Todavia , para minha surpresa, parece que desta vez me deu para escrever um livro absolutamente ao contrário, pegando naquilo que já imaginei, por assim dizer, dissecando-o, para assim devolver a minha experiência à sua factualidade original pré-ficcionalizada. Para quê? Para provar que existe um fosso importante entre o escritor autobiográfico que as pessoas pensam que eu sou e o escritor autobiográfico que sou? Para provar que a informação que colhi da minha vida estava, na ficção, incompleta? Se fosse só para isso, não creio que me tivesse dado a este trabalho, uma vez que os leitores atentos, se estivessem interessados a ponto de se preocupar com isso, podiam ter chegado a essa conclusão sozinhos. Além disso, este livro era desnecessário; ninguém o encomendou, ninguém pediu uma autobiografia de Roth. A encomenda, se alguma vez existiu, foi feita há trinta anos, quando uns certos judeus veneráveis exigiram saber quem era afinal o rapazinho que andava a escrever estas coisas.
Não , parece que a coisa surgiu de outras necessidades e o facto de te enviar este manuscrito - e de te pedir , como estou a fazer , que me digas se achas que devo publicá-lo - obriga-me a explicar o que talvez me tenha levado a apresentar-me em prosa desta maneira , sem disfarces. Até hoje, sempre usei o passado como base para transformação, para, entre outras coisas, uma espécie de explicação intrincada do meu mundo a mim mesmo. Para quê apresentar-me sem retoques diante das pessoas quando por norma , no mundo não imaginado, sempre me abstive de divulgar de forma nua a minha vida pessoal ( e impingir uma personalidade televisiva) junto de um público sério? No pêndulo da exposição pessoal que oscila entre um mailerismo agressivamente exibicionista e um salingerismo (1) de clausura, diria que ocupo um lugar intermédio, tentando resistir à coscuvilhice gratuita e à vaidade na praça pública sem fazer do secretismo e do isolamento um amuleto exageradamente sagrado. Então porquê reivindicar agora visibilidade biográfica, principalmente considerando que fui educado a acreditar que a ficção como realidade independente é tudo o que interessa e que os escritores devem permanecer na sombra?
Pois bem, como esboço de resposta direi que a pessoa perante a qual pretendi tornar-me visível aqui foi, em primeiro lugar, eu próprio. Quando passamos dos cinquenta temos necessidade de encontrar formas de nos tornarmos visíveis aos nossos próprios olhos. Chega um momento, como aconteceu comigo há uns meses, em que de repente uma pessoa fica num estado de confusão e desamparo e deixa de compreender aquilo que até então era óbvio: por que razão faço o que faço, porque vivo onde vivo, porque partilho a minha vida com quem a partilho? A minha mesa de trabalho tinha-se transformado num lugar estranho e, ao contrário de momentos semelhantes em fases anteriores da minha vida em que as velhas estratégias deixavam de funcionar - fosse nas questões práticas do quotidiano, naqueles problemas com que toda gente depara, fosse nos problemas específicos da escrita - e eu optava decididamente por uma via de renovação, convenci-me de que não era capaz de me reconstruir mais uma vez. Longe de me sentir capaz de me reconstruir, senti que estava a desmoronar-me.
Estou a falar de um esgotamento nervoso. Não vale a pena entrar em pormenores, mas sempre te digo que na primavera de 1987, no auge de um período de dez anos de criatividade, aquilo que estava para ser uma pequena intervenção cirúrgica transformou-se num prolongado calvário físico de que resultou uma depressão extrema que me deixou à beira da dissolução emocional e mental. Foi no período de meditação pós-depressão, com a clareza que acompanha a remissão de uma doença , que comecei, de modo perfeitamente involuntário, a concentrar praticamente toda a minha atenção vígil em mundos de que vivia afastado há décadas - recordando o ponto de onde tinha partido e a forma como tudo tinha começado. Quando perdemos alguma coisa, dizemos :" Pronto, vamos lá reconstituir os passos. Cheguei a casa, despi o sobretudo , entrei na cozinha", etc., etc. Eu , para recuperar o que tinha perdido, tive de voltar ao momento de origem. Não encontrei um momento de origem único mas sim uma série de momentos , uma história de origens múltiplas, e foi isso que aqui escrevi na tentativa de me reapossar da vida (...)." Phillip Roth, in "Os factos, autobiografia de um romancista", Publicações Dom Quixote, Maio 2014
(1) Alusão a Norman Mailer e a J.D. Salinger. ( N. do T.)
"Os Factos" é a autobiografia nada convencional de um escritor que mudou o nosso modo de ver a ficção – uma obra de irresistível franqueza e criatividade, particularmente instrutiva na revelação das interacções entre a vida e a arte. Em Os Factos, Philip Roth concentra-se em cinco episódios da sua vida: a infância urbana e protegida, nos anos trinta e quarenta; a preparação para a vida americana numa universidade conservadora, nos anos cinquenta; o envolvimento tumultuoso, quando era jovem e ambicioso, com a pessoa mais colérica que conheceu em toda a sua vida (a «rapariga dos meus sonhos», como Roth lhe chama); o choque frontal com um influente grupo de judeus indignados com o seu "Goodbye, Columbus"; e a descoberta, nos excessos dos anos sessenta, de um lado inexplorado do seu talento que o levou a escrever "O Complexo de Portnoy". O livro termina surpreendentemente – à boa maneira de Roth – com um ataque feroz do romancista às suas competências como autobiógrafo.”
(1) Alusão a Norman Mailer e a J.D. Salinger. ( N. do T.)
"Os Factos" é a autobiografia nada convencional de um escritor que mudou o nosso modo de ver a ficção – uma obra de irresistível franqueza e criatividade, particularmente instrutiva na revelação das interacções entre a vida e a arte. Em Os Factos, Philip Roth concentra-se em cinco episódios da sua vida: a infância urbana e protegida, nos anos trinta e quarenta; a preparação para a vida americana numa universidade conservadora, nos anos cinquenta; o envolvimento tumultuoso, quando era jovem e ambicioso, com a pessoa mais colérica que conheceu em toda a sua vida (a «rapariga dos meus sonhos», como Roth lhe chama); o choque frontal com um influente grupo de judeus indignados com o seu "Goodbye, Columbus"; e a descoberta, nos excessos dos anos sessenta, de um lado inexplorado do seu talento que o levou a escrever "O Complexo de Portnoy". O livro termina surpreendentemente – à boa maneira de Roth – com um ataque feroz do romancista às suas competências como autobiógrafo.”
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