"Joana
Tudo acontece agora sob o signo do fogo e da transformação e da luz.
Vou lembrar-me
destes dias, desde a tarde de ontem, como de um incêndio: Quando saímos do carro
o ar era um braseiro e o sol batia contra
nós e cegava-nos. Foi por isso que
decidimos parar, porque o sol nos batia nos olhos como facas e não serviam de nada os óculos
escuros.
- Vamos tomar
um café, enquanto o sol não desce.
E a seguir
dissemos qualquer coisa sobre o pára-brisas, que deveria ter uma zona em que
filtrasse a luz.
Foi por isso
que parámos, o Hugo e eu, na beira da auto-estrada. Mas ambos sabíamos que o
sol era uma desculpa porque o incêndio era dentro de nós, parávamos porque
havia ali um pequeno hotel, pediríamos um quarto e subiríamos sem palavras e
sem bagagem, como se quiséssemos apenas fazer uma pausa na estrada.
Nenhum de nós
se interrogava como era possível, desde a infância que nos conhecíamos, depois
tínhamo-nos perdido de vista muitos anos, fui estudar para Inglaterra, casei
com o Eric e o Hugo com a Isabel, este ano, inesperadamente, reencontrámo-nos a
trabalhar no mesmo hospital, onde, depois da surpresa alegre e do reencontro,
nunca passámos de conversas breves, porque nenhum de nós tinha tempo de parar.
E no entanto agora tínhamos parado e ali
estávamos subindo no elevador sem pensar em nada a não ser um no outro, no
corpo um do outro,
na tarde de
sol em que nos sentámos no carro, o Hugo ao volante e eu ao lado, deixando-me
enredar no que dizíamos, confiante na sua condução segura apesar da velocidade,
sentindo que estava bem entregue nas suas mãos que manejavam os instrumentos
cirúrgicos com gestos rigorosos e sem hesitações. Confiava nele, se precisasse
de ser operada era a ele que escolhia,
aliás acho
que foi isso que lhe disse, a certa altura – era a ti que escolhia - , como se
falasse comigo mesma.
-
Entregavas-te sem hesitar nas minhas mãos?
A pergunta
estava lá e respondi que sim,
e então soube
que era isso o que desejava, entregar-me sem hesitar nas suas mãos,
mas não foi
ele que me fez uma incisão no corpo, para me ver por dentro,
tinha sido eu
a fazer no corpo dele uma incisão, com palavras que dissera muito antes, sem
pensar, aquela era uma tarde sem pensamentos, apenas emoções e sensações. Desde
há muitos quilómetros eu me sentia entrar na sua intimidade.
É raro que os
homens se abandonem, em geral mantêm uma distância com que se protegem, mas
nenhum de nós mantinha agora distância, falávamos como se nos despíssemos,
talvez todos precisemos disso, de vez em quando. Somos sempre nós, os médicos,
que cuidamos dos outros, dos que vêm, fragilizados pela doença, pedir uma
solução qualquer ( tenho amor à vida, doutor, não me deixe morrer),
no entanto
agora ali estávamos, jovens e saudáveis, e querendo que alguém se debruçasse
sobre nós e nos ouvisse e tocasse e fizesse por nós tudo o que pudesse,
absolutamente tudo,
estávamos
vivos e tínhamos a certeza de que não íamos morrer, provavelmente nunca, porque
se é imortal , na nossa idade,
Hugo
Temos trinta
e oito anos e estamos despidos na cama de um qualquer hotel, a meio da estrada,
lá fora o sol
é um braseiro mas aqui dentro está fresco, ouvimos o zumbido do ar condicionado
ainda um instante antes de deixar de ouvi-lo, depois é como se ambos
estivéssemos debaixo de uma droga, não de uma anestesia que nos adormece mas de
um excitante que nos leva de êxtase em êxtase,
Joana
sem espaço
para sentimento, não há qualquer espanto nem surpresa, nem sequer nos
interrogamos: Porquê? Ou: Porquê só
agora isto nos acontece, e não antes, muito antes?
Essas
perguntas ocorrer-nos-ão talvez depois mas não terão resposta, aliá nenhuma
resposta importa, é isto que queremos e
ninguém nos vai impedir de querer , estendemos a mão e colhemos um fruto doce e
aparecido, sem perguntar o seu nome nem querer saber se é um fruto proibido ou
não.
Quero ficar
aqui contigo para sempre, mesmo que “sempre” seja só um instante, enquanto o
sol desce mais no horizonte, ama-me outra vez, quero que me ames outra vez,
enquanto o ar arde lá fora e um vermelho de incêndio alastra pelo céu,”
Teolinda
Gersão, in “ Passagens”, Sextante Editora, 1º edição: Março de 2014, pags. 133
a 136
Teolinda
Gersão
"Escritora
portuguesa, nascida em 1940, formada em Filologia Germânica em Coimbra.
Doutorada em 1976 e professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, foi
leitora de Português na Universidade de Berlim e assistente na Faculdade de
Letras de Lisboa. Autora de vários trabalhos de crítica literária, recebeu duas
vezes o prémio de ficção PEN Clube, atribuído ao seu livro de estreia, O Silêncio, em
1981, e ao romance O Cavalo de Sol, em 1989. Foi também galardoada
com o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores em 1995 e, na
Roménia, com o Prémio de Teatro Marele do Festival de Bucareste (adaptação da
obra ao teatro) com o romance A Casa da Cabeça de Cavalo. O Prémio
Fernando Namora com o romance Os Teclados,1999. Em Maio de 2003, o
seu livro Histórias de Ver e Andar foi galardoado com o Grande
Prémio do Conto Camilo Castelo Branco, da Associação Portuguesa de Escritores.
O Prémio Máxima Literatura com A mulher que prendeu a chuva e outras
histórias , 2008. O Prémio da Fundação Inês de Castro, 2008 , o Prémio
Ciranda e o Prémio da Fundação António Quadros em A cidade de Ulisses,
2011. À edição inglesa de A árvore das palavras (The Word
Tree, Dedalus, 2010) foi atribuído o Prémio de Tradução 2012."
Passagens é a sua obra mais recente, de Março de
2014. O romance versa sobre «Os segredos das famílias. As mentiras, as histórias
falsas, que dão origem a memórias falsas.Os
grandes erros que alguém comete, e são pagos pelas gerações seguintes. Mesmo
que se queira apagá-los, silenciá-los, estão lá. E voltam à superfície para
serem pagos."
Teolinda
Gersão faz parte da lista dos escritores maiores. Daqueles que se tocam e nunca
mais se deixam. A sua escrita tem aquela sedução que nos enreda e prende.
Ler Teolinda Gersão é ler a vida.
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