segunda-feira, 7 de julho de 2014

Sob o signo do fogo


"Joana

Tudo acontece agora sob o signo do fogo e da transformação e da luz.
Vou lembrar-me destes dias, desde a tarde de ontem, como de um incêndio: Quando saímos do carro o ar era um braseiro e o sol  batia contra nós  e cegava-nos. Foi por isso que decidimos parar, porque o sol nos batia nos olhos  como facas e não serviam de nada os óculos escuros.
- Vamos tomar um café, enquanto o sol não desce.
E a seguir dissemos qualquer coisa sobre o pára-brisas, que deveria ter uma zona em que filtrasse a luz.
Foi por isso que parámos, o Hugo e eu, na beira da auto-estrada. Mas ambos sabíamos que o sol era uma desculpa porque o incêndio era dentro de nós, parávamos porque havia ali um pequeno hotel, pediríamos um quarto e subiríamos sem palavras e sem bagagem, como se quiséssemos apenas fazer uma pausa na estrada.
Nenhum de nós se interrogava como era possível, desde a infância que nos conhecíamos, depois tínhamo-nos perdido de vista muitos anos, fui estudar para Inglaterra, casei com o Eric e o Hugo com a Isabel, este ano, inesperadamente, reencontrámo-nos a trabalhar no mesmo hospital, onde, depois da surpresa alegre e do reencontro, nunca passámos de conversas breves, porque nenhum de nós tinha tempo de parar. E no entanto agora tínhamos parado  e ali estávamos  subindo no elevador  sem pensar em nada a não ser um no outro, no corpo um do outro,
na tarde de sol em que nos sentámos no carro, o Hugo ao volante e eu ao lado, deixando-me enredar no que dizíamos, confiante na sua condução segura apesar da velocidade, sentindo que estava bem entregue nas suas mãos que manejavam os instrumentos cirúrgicos com gestos rigorosos e sem hesitações. Confiava nele, se precisasse de ser operada era a ele que escolhia,
aliás acho que foi isso que lhe disse, a certa altura – era a ti que escolhia - , como se falasse comigo mesma.
- Entregavas-te sem hesitar nas minhas mãos?
A pergunta estava lá e respondi que sim,
e então soube que era isso o que desejava, entregar-me sem hesitar nas suas mãos,
mas não foi ele que me fez uma incisão no corpo, para me ver por dentro,
tinha sido eu a fazer no corpo dele uma incisão, com palavras que dissera muito antes, sem pensar, aquela era uma tarde sem pensamentos, apenas emoções e sensações. Desde há muitos quilómetros eu me sentia entrar na sua intimidade.
É raro que os homens se abandonem, em geral mantêm uma distância com que se protegem, mas nenhum de nós mantinha agora distância, falávamos como se nos despíssemos, talvez todos precisemos disso, de vez em quando. Somos sempre nós, os médicos, que cuidamos dos outros, dos que vêm, fragilizados pela doença, pedir uma solução qualquer ( tenho amor à vida, doutor, não me deixe morrer),
no entanto agora ali estávamos, jovens e saudáveis, e querendo que alguém se debruçasse sobre nós e nos ouvisse e tocasse e fizesse por nós tudo o que pudesse, absolutamente tudo,
estávamos vivos e tínhamos a certeza de que não íamos morrer, provavelmente nunca, porque se é imortal , na nossa idade,

Hugo
Temos trinta e oito anos e estamos despidos na cama de um qualquer hotel, a meio da estrada,
lá fora o sol é um braseiro mas aqui dentro está fresco, ouvimos o zumbido do ar condicionado ainda um instante antes de deixar de ouvi-lo, depois é como se ambos estivéssemos debaixo de uma droga, não de uma anestesia que nos adormece mas de um excitante que nos leva de êxtase em êxtase,

Joana
sem espaço para sentimento, não há qualquer espanto nem surpresa, nem sequer nos interrogamos: Porquê? Ou:  Porquê só agora isto nos acontece, e não antes, muito antes?
Essas perguntas ocorrer-nos-ão talvez depois mas não terão resposta, aliá nenhuma resposta importa,  é isto que queremos e ninguém nos vai impedir de querer , estendemos a mão e colhemos um fruto doce e aparecido, sem perguntar o seu nome nem querer saber se é um fruto proibido ou não.
Quero ficar aqui contigo para sempre, mesmo que “sempre” seja só um instante, enquanto o sol desce mais no horizonte, ama-me outra vez, quero que me ames outra vez, enquanto o ar arde lá fora e um vermelho de incêndio alastra pelo céu,”
Teolinda Gersão, in “ Passagens”, Sextante Editora, 1º edição: Março de 2014, pags. 133 a 136

Teolinda Gersão
"Escritora portuguesa, nascida em 1940, formada em Filologia Germânica em Coimbra. Doutorada em 1976 e professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, foi leitora de Português na Universidade de Berlim e assistente na Faculdade de Letras de Lisboa. Autora de vários trabalhos de crítica literária, recebeu duas vezes o prémio de ficção PEN Clube, atribuído ao seu livro de estreia, O Silêncio, em 1981, e ao romance O Cavalo de Sol, em 1989. Foi também galardoada com o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores em 1995  e, na Roménia, com o Prémio de Teatro Marele do Festival de Bucareste (adaptação da obra ao teatro) com o romance A Casa da Cabeça de Cavalo. O Prémio Fernando Namora com o romance Os Teclados,1999. Em Maio de 2003, o seu livro Histórias de Ver e Andar foi galardoado com o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco, da Associação Portuguesa de Escritores. O Prémio Máxima Literatura com  A mulher que prendeu a chuva e outras histórias , 2008. O Prémio da Fundação Inês de Castro, 2008 , o Prémio Ciranda e o Prémio da Fundação António Quadros em A cidade de Ulisses, 2011. À edição inglesa de A árvore das palavras (The Word Tree, Dedalus, 2010) foi atribuído o Prémio de Tradução 2012."
Passagens é a sua obra mais recente, de Março de 2014. O romance versa sobre «Os segredos das famílias. As mentiras, as histórias falsas, que dão origem a memórias falsas.Os grandes erros que alguém comete, e são pagos pelas gerações seguintes. Mesmo que se queira apagá-los, silenciá-los, estão lá. E voltam à superfície para serem pagos." 
Teolinda Gersão faz parte da lista dos escritores maiores. Daqueles que se tocam e nunca mais se deixam. A sua escrita tem aquela  sedução que nos enreda e prende. Ler Teolinda Gersão é ler a vida.

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