Eugénio Lisboa – mais
vívidas memórias
por Onésimo Teotónio Almeida
"Voltei
a ser apanhado pela leitura do novo volume de Fabula Acta Est, o III das
memórias laurentinas de Eugénio Lisboa (repito aqui para os mais novos uma
explicação que já dei na minha recensão ao primeiro volume: ‘laurentinas’ é um
arcaísmo. Lourenço
Marques era o antigo nome de Maputo. Eugénio Lisboa nasceu em Lourenço Marques
e não em Maputo, daí que faça perfeito sentido indicar aquele nome como o da
sua cidade natal. Uma questão de rigor cronológico. E de coerência também).
Depois
daquela primeira magnífica viagem pela Lourenço Marques da sua infância e
adolescência, Eugénio Lisboa optou por saltar para os anos de 1955 a 1976 e,
sem quebrar o intenso ritmo a que submete o leitor, leva-o aos anos de
maturação política, dele e da sua geração, num Moçambique prestes a desligar-se
do império para fazer a sua caminhada independente.
É
sempre a voz de Eugénio Lisboa, clara e preclara, forte e sem peias, chamando
as coisas pelos seus próprios nomes, que nos acompanha neste percurso de 500
páginas e onze anos. Sabe bem ler essa narrativa contra o pano de fundo que a nossa
memória guarda das notícias que sobre Moçambique eram veiculadas pela
comunicação social, e apercebermo-nos de como se desenrolava de facto, por
detrás da fachada oficial ou oficiosa, tudo aquilo que depois se veio a saber.
Eugénio Lisboa viaja pelos anos dando a conhecer ao leitor um universo especial,
obviamente o de uma minoria particularmente culta, mas que em Moçambique nem
foi assim tão minoria, se atentarmos na plêiade de nomes que mais
frequentemente ressaltam nas páginas do livro por se cruzarem na vida do autor:
Maria de Lourdes Cortez, José Craveirinha, Reinaldo Ferreira, António de
Figueiredo, Ascêncio Freitas, Luís Bernardo Howana, Rui Knopfli, Alberto de
Lacerda, Virgílio de Lemos, Alfredo Margarido, Hermínio Martins, António
Quadros (pintor), Glória de Sant’Ana, Noémia de Sousa, são só alguns exemplos.
E claro que havia outra gente interveniente e activa nessa Lourenço Marques que
produziu uma notável elite ainda hoje marcante na cultura portuguesa. Não se
trata de modo nenhum de uma história intelectual do período mas tão só de uma
“crónica dos anos da peste” (para roubar o título a um livro de Eugénio que, por
sinal, lhe foi oferecido por Rui Knopfli), embora o termo “crónica” não capte
devidamente a intensidade dinâmica que infiltra a narrativa e a transporta para um patamar quase fílmico onde as imagens
se sobrepõem incessantemente, acumulando tensão e colando à tela a atenção do
espectador. Nesse sentido, o livro funciona como um romance à clef, mas cujos enredo e desfecho são
antecipadamente conhecidos do leitor, apanhado este pela avidez de conhecer os
meandros do caso particular do autor, de como ele viveu a experiência da
independência de Moçambique, a descolonização e a partida para a pátria que não
era sua, porque essa ficara na Lourenço Marques que o tempo enterrou. Por isso
as oitenta páginas da última parte do livro atingem um ritmo e uma densidade
dramática empolgantes. São páginas fortes, duras, relatadas com contensão, sem
arroubos demagógicos nem laivos de tragédia, mas também sem rodeios nem
subterfúgios politicamente correctos. Os leitores de Eugénio Lisboa
conhecem-lhe bem o estilo e não ficarão surpreendidos com a transparência da
linguagem; familiarizados que estão com a sua prosa certeira, poderão agora deleitar-se
com esta oferta de uma narrativa de grande fôlego, de um quase-romance.
Sem ter
aparentemente tido a pretensão de escrever uma história cultural de Moçambique,
ou nem sequer a sua própria biografia intelectual, Eugénio deixa esboçado nos
seus contornos o seu próprio universo ideológico e literário. As apetitosas
citações e referências pescadas em quilométricas leituras, com que EL
profusamente condimenta e salpica as suas crónicas e ensaios, dão aqui lugar a
uma sequência interminável de factos servidos por uma memória portentosa, como
se eles fossem demasiados para o espaço e tempo de que dispõe. Voraz leitor e amante
da grande literatura, Eugénio viveu no longínquo hemisfério sul de ouvido e
olhar atentos ao norte, aonde ia regularmente abastecer-se. Nestas páginas apenas
ressaltam, incontrolada e inevitavelmente, por aqui e por ali, alusões aos seus
autores de cabeceira e coração, aqueles que formaram o ensaísta, o cronista e o
homem que hoje tanto apreciamos, habituados que estamos a vê-lo navegar com um
imenso à-vontade e uma familiaridade impressionante (agora diz-se impressiva em
tradução do inglês) pelas estantes do cânone ocidental. EL deve muito aos seus
autores-do-peito e gosta de reconhecê-los e publicitá-los a ver se atrai
compinchas que lhe queiram fazer companhia. A constelação é vasta e brilhante:
Montherlant e José Régio (tinha de referi-los primeiro), Voltaire, Swift,
Anatole France, Gide, Proust, Valéry, Thomas Mann, Laclos, Bertrand Russell,
Pessoa, Stendhal, Jean Anouilh, Gide, Flaubert, Dostoievsky, Tolstoi,
Turgueney, George Eliot, Balzac, Mishima, Marcel Aymé, Eça, T. S. Eliot,
Shakespeare… e a lista continuaria mas já basta para um mapeamento de estrelas
que dão bem para configurar um universo.
As
farpas que habitualmente lhe saltam das linhas na sua escrita são aqui quase
sempre dirigidas ao status quo politico
e não aos correligionários das letras, como se Eugénio estivesse mais
interessado em evocar boas memórias e esquecer ou ignorar tricas inevitáveis
num qualquer percurso. Uma que outra vez, a verve não perdoa, como naquele
desvio provocado por uma menção de Gyorgy Lukacs - e lá vem a faca afiada – “que, durante
algum tempo, se aninhou, quentinho, no sovaco do Eduardo Prado Coelho […] antes
de [este] se desgostar dos seus amores juvenis e passar a mudar de “maître-à-penser”,
como quem muda de camisa (e sempre sem dor)” (pp. 393-4).
Estamos
perante uma obra de envergadura que vem desassombradamente marcar o ponto na
nossa literatura memorialista, para a qual de repente parece termos despertado.
Um livro vertical e nobre, frontal e humano, demasiado humano. Se tivesse de
seleccionar um exemplo demonstrativo da justeza dos adjectivos que derramei
sobre a frase anterior, creio que escolheria esta passagem: “[…] esta estúpida
lei [da Frelimo] das nacionalidades, no seu fundamentalismo primário e
demagógico, ignorava uma realidade: para muitos europeus nascidos em África,
como eu, o nosso universo cultural (e este engloba afectos) era mesmo duplo:
éramos profundamente europeus e profundamente africanos. Mas precisamente:
éramos portugueses e moçambicanos. Nenhuma dessas vivências profundas podia ser
irradicada por decreto. Dessem-me ou não me dessem passaporte, era moçambicano;
dessem-me ou não me dessem passaporte, era português. O que eu era, em
profundidade, era o que eu sentia e
não o que qualquer burocrata vestido de político efémero (e iletrado) decidisse
que eu era. E ainda hoje penso assim. Quem decide a minha nacionalidade autêntica
sou eu e mais ninguém.” (p. 465).
Quem
escreve assim sabe da língua e da vida. Se ainda por cima sabe de literatura e
nos faz, à distância, viver vicariamente páginas de uma experiência rica, enriquece
a literatura, como os leitores enriquecem com o capital que os bons livros geram."
Há um erro: trata-se não do 'III volume das memórias laurentinas' de Eugénio Lisboa, mas do III volume das memórias tout court, sendo o segundo e último das laurentinas (que correspondem ao I e III).
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