"Quando
voltou à Quinta nesse Natal não encontrou Antero. Os pais informaram-na de que
partira em busca de um futuro melhor. Com
muita persistência foi tentando
descobrir para onde teria ido ele,
mas foi esbarrando com uma concertada fronteira
pejada de obstáculos intransponíveis. Os caseiros, pais de Antero, que sempre a
receberam efusivamente tornaram-se discretamente evasivos , fugindo a qualquer
diálogo que renitente ela tentava encetar.
A
irmã logo que a avistava, desaparecia misteriosamente invalidando desse modo
qualquer tentativa de aproximação.
E
deixaram-na sofrer sem uma única explicação compreensível. Antero seria incapaz
de a abandonar. Ela e ele eram infrangíveis, indivisíveis e indestrutíveis. Era
um princípio tácito, inalienável e comum aos dois: jamais força alguma os poderia
apartar. E durante muito tempo foi esperando por Antero.
Assim,
quando terminara os estudos e voltara definitivamente para a quinta, continuara
a correr para o rio esperando que ele aparecesse. Aí, deitada nas ervas
atapetadas da margem, muitas vezes
fechara os olhos, julgando ouvir os passos rápidos de Antero, quando o vento fazia vibrar o restolho na
mata, mas ele nunca aparecera.
E…então
a saudade guardou para sempre a memória dum tempo feliz.
Tornou-se
mulher e os deveres sociais foram progressivamente sendo introduzidos. As
festas eram frequentes nas quintas vizinhas,
fomentando o convívio entre os mais jovens.
Graça
Menezes , a sua companheira de colégio,
era a sua melhor amiga. Passavam muitas horas juntas, ora na quinta de
uma, ora na quinta de outra. Foi assim que ficou a conhecer melhor o irmão,
Mário Alberto, um economista muito
tímido e distraído, sempre agarrado aos Tratados de Economia.
Exercia
já um cargo de direcção numa Companhia de Navegação. Gostava também de poesia. Transfigurava-se quando recitava poemas. E foi pela poesia que ela se deixou
conquistar, acedendo ao pedido de casamento que encheu de regozijo as duas
famílias.
Então
foi tempo de arranjar casa na cidade, pois era lá que Mário
Alberto trabalhava.
No
dia do seu casamento, a Quinta encheu-se de convidados vindos de diversos
lugares. As duas famílias tinham muitos parentes e amigos espalhados pelo país.
Os
irmãos tinham crescido e como já estavam internados nos colégios, o casamento
realizou-se nas férias grandes. A temperatura amena desse verão permitiu engalanar com mesas e cadeiras os recantos
magníficos do jardim, fazendo com que as portas da mansão não se fechassem.
Mário
Alberto era um homem alto e de forte constituição. Tinha uma abundante cabeleira
loira geralmente desalinhada, mas nesse
dia apareceu em total e perfeito alinho.
Os olhos azuis ajustavam um olhar determinado que, apesar da sua latente
timidez, teimava em fixar com insistência
quem o encarasse. Esperando-a junto ao altar, Mário Alberto fixou-a
demoradamente e não mais deixou de a contemplar.
Quando
partiram para a cidade teve a nítida certeza que encerrava uma parte importante
da sua vida. Os pais, os irmãos, os empregados despediam-se acenando. E lá foi
sem a mais acenar porque havia muito tempo que se despedira da Quinta.
Mário
Alberto foi uma surpresa. Nos dias que se seguiram ao casamento recebeu em casa
uma série de individualidades com quem ele privava por força do cargo que exercia na Companhia.
A
lua-de-mel estendeu-se de recepção em recepção sendo quase uma apresentação das
obrigações sociais a que fora vinculada pelo casamento. E a força peculiar da
vida urbana envolveu-a definitivamente.
Quando nasceu o primeiro filho já tinha preenchido o horário social. Jogava bridge nas tardes de segunda-feira no Clube Inglês com um grupo de senhoras conhecidas, sendo algumas mulheres de colegas do marido, outras até antigas companheiras de colégio e, em semanas alternadas, conjugava com a canasta nas casas de cada uma, incluindo a dela.
Quando nasceu o primeiro filho já tinha preenchido o horário social. Jogava bridge nas tardes de segunda-feira no Clube Inglês com um grupo de senhoras conhecidas, sendo algumas mulheres de colegas do marido, outras até antigas companheiras de colégio e, em semanas alternadas, conjugava com a canasta nas casas de cada uma, incluindo a dela.
Os
chás literários eram a actividade social que mais a atraiu. Aliás tinha sido
ela a promotora e a autora do projecto. Cansada de tanta futilidade, concluíra
que não poderia entregar-se exclusivamente a obrigações sociais cujo pesado vazio
a ia consumindo. Contudo, o marido
considerava essas preocupações como remanescente de um preconceito intelectual mais
acentuado devido à vida quase “monástica” que levara no campo. Na cidade, o ritmo da
modernidade exigia outra postura social. Ela deveria integrar-se no grupo
social a que pertenciam e libertar-se do atavismo que ainda lhe tolhia os
movimentos, pois o lugar que tinha na Companhia exigia-lhe responsabilidades
adicionais, já que chegaria a Presidente da Administração num futuro bastante
próximo.
Assim,
na senda das aspirações do marido, resolveu lançar os chás literários que
acumulavam o carácter social com o interesse relevante que a literatura sempre
lhe despertara. Tinham uma periodicidade quinzenal e eram regularmente
realizados com intervenções de grande qualidade.
Passou
a ter uma acuidade especial com todos os novos escritores tendo alguns
apresentado as primeiras obras nesses chás. Era dinâmica e entregava-se com
paixão, superando sempre uma sessão pela outra que se lhe seguia.
Com
o tempo a fama dessas sessões espalhou-se pela cidade passando a ter um
lugar cativo no horizonte cultural, sendo o local de preferência para
divulgação, reflexão e promoção literárias: romances, livros de poesia , ensaios, revistas literárias e até
outras publicações no âmbito da investigação foram objecto de muitas e variadas
sessões. O público foi-se alargando e passou a concentrar muitos dos
intelectuais que ao tempo se afirmavam. Mário Alberto era um óptimo
divulgador dessa actividade nos círculos da alta finança, pelo que a
diversidade de opiniões contribuíra
inequivocamente para o sucesso desta
iniciativa.
Mário
Alberto também aproveitava frequentemente este espaço para declamar alguns dos poemas que ia compondo.
E
a dimensão dessa iniciativa foi tão grande que se viu obrigada a constituir uma
Comissão Directiva à qual presidia, já que sozinha era incapaz de responder ao
afluxo constante da procura.
À
medida que os filhos iam nascendo, o tempo ia sendo precioso e o espaço da casa era
ocupado pelos ruídos que as brincadeiras das crianças produziam.
Então, houve necessidade de transferir para
outro local a realização daquele evento.
E foi assim que nasceu o primeiro Clube
Literário, num rés –de- chão de um edifício apalaçado, no centro da cidade.
A
organização do Clube foi a sua obra prima. Canalizou todas as suas energias na
edificação desse projecto que antevira desde o tempo em que descobrira o prazer
da leitura.
Apelando
ao mecenato obteve um número infindo de livros criteriosamente seleccionados
por ela e coadjuvada por alguns dos intelectuais que frequentavam os chás,
montando ,numa das salas do andar, uma valiosa biblioteca que viria a ser das
mais completas da cidade. O espólio foi
sendo continuadamente aumentado e actualizado
com a oferta de novas obras que eram, muitas vezes, lançadas e
apresentadas no Clube.
Nas
restantes salas que compunham o andar, implantou uma galeria de arte, abrindo
desse modo as portas do Clube às Belas
Artes, a fim de serem realizadas exposições de artistas consagrados ou preferencialmente
de novos talentos. Fora lá colocado um grande piano de cauda que, por vezes,
transformava a galeria numa sala de
extraordinários saraus, atribuindo-se também à
Música um espaço nobre. A última sala era efectivamente a sala de chá
que primava por um discreto esplendor refreado numa decoração que, embora elegante,
privilegiava o conforto necessário e
adequado aos longos períodos com que decorriam os encontros literários.
O
Clube Literário passou a ser uma referência que agregou um soberbo número de
sócios notáveis nos diversos domínios do conhecimento e que apoiou através da
utilização da biblioteca a aprendizagem de
muitos alunos liceais e universitários.
Mário
Alberto viria mais tarde a ser agraciado com uma comenda pela contribuição cultural que o
Clube prestava à cidade. Nesse tempo, a mulher era ainda discriminada. Ao homem
bastava ser homem para ser o natural responsável pelos êxitos.
Continuou
durante muito tempo a pertencer à Comissão Directiva do Clube , mas com o
nascimento e o crescimento dos filhos foi obrigada a reduzir a sua intensa participação até para contrariar a pretensão de Mário Alberto
de internar os filhos em colégios de renome
para adquirirem uma sólida educação.
A
maternidade revelava-lhe a sua essência primeira. Considerou que deveria
prioritariamente criar um ambiente saudável para o desenvolvimento harmonioso dos
filhos que iam aumentando anualmente. O marido embora fosse um pai responsável
e, apesar da agitada vida profissional, fosse também um pai bastante presente era,
contudo, muito parco nas manifestações de carinho, pelo que lhe coube sempre a ela a materialização
dos afectos e a prodigalização da ternura. Fê-lo abundantemente, rodeando os
filhos de carinho permanente.
Mário
Alberto tinha um carácter bastante temperamental, apresentando uma
instabilidade emocional que se traduzia frequentemente em mudanças repentinas
de humor que se foram agudizando com a idade. Aos filhos foi com muita perícia
e constante atenção ocultando esses momentos, valendo-se da privacidade
estratégica que o gabinete de trabalho e os aposentos do casal detinham, ambos situados num dos extremos da
casa. Apesar dessa faceta, o marido amava-a profundamente, respeitando-a , quer como esposa, quer como
mulher detentora de superior cultura,
como dizia ele com ênfase e solenidade.
Quando
o seu pai faleceu já todos os irmãos
estavam casados e era um deles que superintendia a gestão da Quinta. A mãe muito abatida pela inesperada tragédia, o pai
sempre fora muito saudável e nada indiciava uma morte repentina, decidira abandonar a Quinta e vir viver com ela, na cidade.
A
presença constante da Avó veio permitir
aos seus filhos o desenvolvimento salutar dos laços de cumplicidade familiar
resultantes do apoio seguro e carinhoso que a Avó lhes prestava.
Para
ela a presença da mãe foi a pedra
angular que cimentou e fortaleceu a sua relação
com a cidade. A mãe fora sempre uma
forte presença na sua vida.
A exploração da cidade na companhia da mãe revelou-se um prazer inacabado que quotidianamente
ia sendo alargado. Descobriu o rio de águas imensas, cruzado por barcos e por
paquetes cheios de gentes diversas, ávidas da luminosidade única do Sul. Extasiou-se
com as traineiras junto ao cais do mercado que emprestavam à paisagem um
soberbo colorido matizado tornando-a o alvo eleito de contínuos disparos das
máquinas fotográficas.
E
nos bancos dos jardins fronteiros ao rio expurgou e redimiu os hiatos que a
afastaram de fruir a paz que só um rio lhe podia oferecer.
Os
passeios com os filhos à beira-rio passaram a ser realizados com a ajuda da mãe
e muitas vezes com a presença do pai que, invariavelmente, acabava por teorizar
sobre a importância do rio no desenvolvimento da cidade. Os filhos recebiam uma
lição de História que remetia para a posição estratégica da cidade face ao mundo.
O passado era uma manta retalhada de marcas de sucessivas invasões feitas pelo
rio, mas também o cais de partida para a descoberta do mundo que convertera a
cidade num grande entreposto comercial na
era que seguiu os descobrimentos.
Quando havia navios da Companhia de Navegação atracados, Mário
Alberto levava
a família a bordo e, então, era um feliz
desassossego com os filhos que desejavam apreender a
engrenagem que suportava esse
grande habitáculo. O Comandante fazia as honras e o Imediato levava os rapazes
que eram sempre os mais curiosos, à ponte
de comando e à sala das máquinas.
As
raparigas ficavam a visitar os imensos salões e os espaços exteriores onde eram
repetidamente seduzidas pela brilhante piscina azul rodeada por enormes cadeiras extensíveis onde
se estendiam logo que lhes era dada permissão.
O
jardim zoológico e o jardim botânico foram muitos dos destinos que ajudaram a
completar a educação dos filhos pela observação directa da natureza, recriando
a atmosfera natural que a Quinta lhe
proporcionara.
A
educação dos filhos foi durante o tempo do seu crescimento a ocupação maior da sua vida. A mãe foi uma ajuda
incomensurável que deu força a todos os seus esforços . Quando morreu já Marito
era um rapazinho.
Marito,
o filho que viera tarde e a relançara no tempo que julgara para sempre
perdido, o tempo da fecundação, o tempo da redenção celebrada com Mário Alberto
que, avaramente, a tinha enredado num platonismo contemplativo redundante e
desenfreado. Os carinhos não
ultrapassavam o plano da verbalização poética, deixando-a exangue e impoluta perante o natural e persistente desejo sexual que a acometia e ele parecia
ignorar. Naquela época, ainda não sabia das disfunções mentais que determinavam as
sistemáticas alterações comportamentais do marido.
Entretanto,
a Mãe, que vivera com eles até ao fim da vida, regozijava-se com a ternura e
gentileza verbais com que Mário sempre a
tratava e que fazia daquele lar uma estruturada
referência de vida para os netos.
Ela
sabia que jamais poderia partilhar os seus anseios e desalentos com a Mãe e tão
só com outro alguém. Assim, o nascimento de Marito reposicionou-a novamente no
lugar da mulher fecunda e fecundadora, matriz dorsal da sua identidade
primária. E este filho foi mais amado do que todos os outros. Era o filho do tempo
último, era o tempo do último filho." Maria José Vieira de Sousa, in " O Lugar, memórias de um romance"
Sem comentários:
Enviar um comentário