Por Albert Camus
"Perda de ser amado, incerteza daquilo que somos; são as ausências que segregam as nossas piores dores. Podemos ser idealistas, mas precisamos do tangível. É numa presença que julgamos encontrar a certeza. E, embora a não amemos, pelo menos vivemos nessa necessidade. Mas o que é espantoso, ou o que é triste, é que essas faltas nos trazem o remédio ao mesmo tempo do que a dor. Reconhecemos que a certeza adquirida - o ser amado- obstruía uma grande parte do possível, que vemos agora puro como o céu lavado pela chuva. Da lassidão nasce a disponibilidade . Ser é parar. Mas não vivemos para parar. Quando estamos disponíveis procuramos de novo, enriquecidos pela dor. E este impulso constante cai para ganhar forças. A queda é brutal, mas recomeçamos sempre.
Quando um interesse da nossa vida se esboroa aos nossos pés, transferimos para uma nova, para passar a outra, e assim por diante sem desfalecer. Incessante necessidade de crer, perpétua projecção para a frente - havemos de representar muito tempo esta comédia iniludível. Todavia, alguns jogam este jogo lastimável nos momentos decisivos. Contemplam as suas vidas inteiras para se convencerem de grandeza. Agita-se neles uma frágil esperança: quem sabe? A recompensa ...ou então...
Mas porquê falar de comédia e de jogo? Nada do que é vivido é comédia. As nossas mentiras mais cínicas, as nossas hipocrisias mais vis, merecem o respeito ou a piedade que se deve a cada coisa viva. Entretanto, é possível , com efeito, que a nossa vida seja construída por nós. Mas se devemos acreditar que viver não é senão criar, há neste gesto que provoca o nosso esmagamento uma singular e refinada crueldade. Não é fácil acreditar que, na ausência de uma providência que contabilize as suas dores, o homem - heautontimorumenos - faça a sua própria provisão de desespero. E é inevitável que o idealista , por mais impenitente, esqueça a sua filosofia diante da morte de um filho.
Mas há homens que julgam tudo ter perdido com a morte da mulher. Apercebem-se de que , a partir dessa infelicidade, uma nova vida vai começar. E por mais que essa vida seja feita de renúncia e de desgosto, o patetismo de uma existência semelhante ainda os consegue fascinar. E é assim que está certo - uma vez que podemos , a cada instante, pôr termo à vida: podemos não viver. Pode dizer-se, em relação a certos homens, que em todas as circunstâncias, felizes ou não, é sempre preferível morrer em vez deles. Mas a partir do momento em que vivem, são obrigados a aceitar, tanto o ridículo como o sublime. Não nos enganemos, porém! Pode-se sempre descobrir o ridículo no sublime - do contrário existem poucos exemplos.
É por isso que as dores que tanto nos afligem são, na realidade, as menos perniciosas. São simples esfoladelas em comparação com o insondável tormento ao qual nos julgamos destinados. A verdadeira dor não consiste tanto em ser-se frustrado de um bem qualquer mas muito mais em aspirar ao único bem que nos tenta. Não há dúvida de que seríamos incapazes de o designar com exactidão. Mas a dor que provoca a sensação da sua falta é a única imutável. É ela que se revela como coisa profunda aos olhos experientes , e da qual dizemos nada saber para responder às perguntas inquietas. Desejamos à viva força um bem que não conhecemos. E, pelo facto de nos considerarmos dignos dele, pomos de parte os únicos objectivos que poderíamos atingir. Que fazer? Uma vaga de dor desfaz-se num gemido; segue-se-lhe uma outra queixa que é abafada pela exalação de uma terceira.
Como esquecer, neste momento, o frade dominicano que me dizia com grande simplicidade, e com o ar mais natural deste mundo: " Quando estivermos no paraíso..."? Há, então, homens que vivem com uma tal certeza, enquanto outros a procuram a duras pernas? Lembro-me , também, da juventude e da alegria desse frade. A sua serenidade magoara-me . Noutras circunstâncias, ter-me-ia afastado de Deus. O que é certo é que ele me perturbara profundamente. Devia ser porque , sem dúvida, não podemos afastar-nos de Deus quando não é ele quem deseja afastar-nos.
Sim, são faltas, são faltas que originam os nosso piores sofrimentos. Mas, que importa, na verdade, o que nos falta, quando o que possuímos não se esgotou? Tantas coisas são susceptíveis de ser amadas, que nenhum desfalecimento pode ser definitivo. Saber sofrer é saber amar. E quando tudo rui, tudo recomeçar , com simplicidade, enriquecidos pela dor, quase felizes com a sensação da nossa infelicidade."
Albert Camus, "Perda de ser amado", Outubro de 1933, in " Escritos de Juventude", Edições Livros do Brasil, Lisboa
Muito Bom gostei muito
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