“A escrita tem as suas próprias leis de
perspectiva, de luz e de sombras, como
a pintura e a música. Se nasces com
elas, perfeito. Se não, aprende-as. Em
seguida, reorganiza as regras à tua maneira.”
Truman Capote
A
Cidade
1
Vista da Ponte, a Cidade parece intemporal. Fascina-me o seu casamento com o rio e com o mar num
braço aberto. Mas foi sempre e apenas esse pormenor, essa singular união. O fascínio soçobrava às portas da Cidade. Nunca adentrou. Acabrunhava-me a sua traça virada de costas para o rio e anulada
qualquer ligação com o Mar pela muralha intransponível de prédios gigantescos
enfileirados para o turismo de massa da
sua Praia.
Há , porém, uma certa
emoção ao contemplá-La da Ponte, principalmente à chegada, apresentando-se
imponente com o seu reflexo nas águas do Rio e deixando soltar uma paz adormecida
na sombra de tanta casa anónima que vista deste ângulo não é possível
identificar.
É esse anonimato que explica
a minha relação com a Cidade e vinte
anos da minha vida. Não foi um caso de amor e muito menos de paixão que me levou para a Cidade. Era mais
um lugar para viver que acumulava privacidade com um elemento paisagístico
natural imprescindível para mim, a ÁGUA.
Não tinha muito dinheiro, nem
sequer conhecia o mercado imobiliário.
Tinha vindo para o Sul e, como as
praias estavam desertas , emprestaram-me uma casa numa Vila, à beira-mar,
situada perto da Cidade. Era um empréstimo a prazo, pois no Verão teria de
sair.
Aprendi alguns anos mais
tarde que a privacidade e o anonimato são fantasmas de outro tempo e de outra
cidade que não esta . Foi já
muito tarde essa minha descoberta , não evitando todos estes
acontecimentos que continuam vivos na
minha memória.
A Ponte atraiçoou-me . Ainda
hoje a miragem é perfeita , tentando oferecer-nos uma imagem da Cidade que não
é real.
Acredito que o onírico foi
sempre um traço importante na construção das percepções que tenho da realidade.
Vivi muito tempo concertando sonhos que se desfaziam em verdades dolorosas. E a
Cidade foi uma verdade ludibriada.
A casa tinha apenas dois
quartos meticulosamente preparados para férias. As mobílias rústicas , pintadas
de azul, cheiravam a resquícios de um emprestado estilo alentejano que convivia
muito bem com as dimensões dos quartos. A sala era para tudo , aquilo que
vulgarmente se designa de “sala comum” que eu considero como polivalente ou
seja multifuncional. E realmente serviu de escritório para mim, de sala de
estudo para os meus filhos, de sala de jantar para todos e até de quarto,
quando vinham os “Lisboetas” de visita.
A cozinha minúscula estava encafuada num compartimento aberto para a sala, sem janela e, por tal,
interior. Os meus vinte anos ajudaram a encará-la quase como um legado especial
e acolhedor, apagando o que de nefasto tem um cubículo transformado em cozinha, numa terra onde o calor é intenso.
Tinha acabado de fazer um
estágio violentíssimo, embora tivesse sido socorrida frequentemente pela minha
mãe. Fora muito difícil conjugar a vida profissional com a vida privada . O
Daniel continuava longe de todos nós. Nunca entendi essa opção.
Não tinha a certeza se
ao vir novamente para longe, encontraria
a solução para um outro início de vida. Mas tornar-se-ia frequente e quase uma
marca no devir da minha vida, o recomeçar como consequência de um fatal retroceder.
Contudo, verifico que nunca foi um começar no mesmo ponto do retrocesso. Afinal
avançar e recuar é uma alternância inerente ao homem, só que nem sempre se
entende isso na altura em que acontece.
O meu reencontro com o mar
foi esplendoroso e tornou-se num ritual precioso e impiedosamente sôfrego.
Todos os dias, a pretexto de tudo e de nada, íamos à praia ou simplesmente vaguear junto à muralha, quando o mau
tempo impedia . O mar, a água de cambiantes
infindos, exercia, então, um poder
paliativo que superava qualquer sentimento que teimasse em derrubar-me. Terá
sido por ele e com ele que me fui reconstruindo.
Nessa época, misturava as correrias de Martim , de Dinis e
de Rodrigo, os meus filhos , com a preparação de trabalhos nos momentos livres,
quer na areia da praia quer no Parque infantil sobranceiro à mesma. E lá estava
o mar como fundo, fundeando também a minha existência.
Nos primeiros tempos foi
muito difícil organizar-me nesta nova terra. Martim tinha três anos, pelo
que necessitava de um infantário que não
existia. Dinis, com quatro, entrou para a pré-primária e Rodrigo já com seis anos para a 1ª Classe . Os dois
ficavam na Escola Primária às 8h30 e
Dinis continuava em casa com uma
empregada doméstica que encontrei num café da Avenida Marginal. Era já uma
mulher de meia-idade que me oferecia reforçada segurança necessária para me
poder afastar e laborar a tempo inteiro, na tal Escola Secundária onde fui
colocada.“ Maria José Vieira de Sousa, in " A Cidade", 1999
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