Por Eugénio Lisboa
«Não é infrequente serem as virtudes mais profundas
de um autor as principais responsáveis pelo seu (ainda que relativo) esquecimento ou ... provisório
abandono. As virtudes cardeais, observava Montherlant, isolam. E, entre nós, o
autoapagamento dos discretos e dos nobres é pesadamente facturado pelos que
tomam, de roldão, os palcos, as luzes da ribalta e as buzinas da autopromoção.
Tem-se visto, vê-se todos os dias. E a náusea que nos assiste não é obstáculo à
continuação dos que aos trinta e pouco já publicam a sua Obra Reunida e dirigem, com
autoridade e desplante, a orquestra que promove lá fora a cultura indígena: com
mais ou menos falta de conhecimento, mas com muito brio e uma corte sempre
prestável e afável.
Saúl Dias, pseudónimo literário de Julio Maria dos
Reis Pereira, foi toda a vida um discreto, cantando, com pudor, nos
interstícios do silêncio, e vivendo, com igual pudor, nas dobras do retiro. Na
pintura, no desenho, na poesia, foi sempre o bardo de uma eloquência discreta e
subtil, talvez, por isso mesmo, mais secretamente forte, ainda que menos
ruidosamente visível. Observava André Gide que “arte mais subtil, mais forte e
mais profunda é aquela que não se dá, logo às primeiras, a ser reconhecida.” No
tempo da presença e no discurso dos anos que se lhe seguiram, Saúl
Dias/Julio só deu, de comparável à intensidade do seu empenho, a nobre firmeza
do seu nobilíssimo apagamento. Eloquente e retórico, pelo menos numa primeira
fase (que não sempre), seu irmão José Maria furtava-se aos outros por via do
truque duplo de um retiro físico no (então) remoto Alentejo e de um jogo de
máscaras com que se esquivava mesmo quando parecia que se entregava. Julio/Saúl
usava uma única máscara que o não era: o pudor, o quase silêncio, a discrição
levada quase ao limite. Tudo sugerindo aos que se não deixavam facilmente
iludir que se tratava de uma riqueza e não de uma ausência: “Ninguém testa a
profundidade de um rio com ambos os pés”, reza um provérbio Ashanti. O que tem
uma dupla leitura: nem Saúl Dias, via maneira de atingir o âmago das coisas – a
profundidade dos rios – a não ser por via de uma aproximação delicada e quase
silenciosa, nem nós, leitores, poderemos jamais chegar ao poeta – e ao pintor –
a não ser munidos de cautela e subtileza. Por outras palavras, o protocolo com
que ele sonda o real só pode ser o protocolo com que nós o sondamos a ele. Num
texto publicado em 1967 e mais tarde reunido no seu livro Presença da «presença»,
esse grande crítico e ensaísta que foi David Mourão-Ferreira observava: “em
ambos [Saúl Dias e Julio] se revelam as mesmas raras qualidades, de contenção e
de sortilégio, a mesma delicadeza de linhas, o mesmo pudor descritivo, o mesmo
poder de elíptica sugestão”. Gide gostava de dizer que a verdadeira arte
clássica era uma “arte de pudor e de modéstia”. Assim sendo, a arte de Saúl
Dias/Julio verifica o paradoxo de ser a um tempo profundamente clássica, sem
deixar de ser a de, ainda nas palavras de Mourão-Ferreira, [a de]” um vulto
cimeiro de modernismo português”. É que nele convergem, de modo intenso e
feliz, a audácia e o seu freio, o novo e o provado, a alegria e o silêncio, a
prudência e a coragem. Diz um personagem de uma comédia de Shakespeare que “o
silêncio é o intérprete mais eloquente da alegria.” “Silêncio” deve aqui ser
tomado por aquilo que pode ser, numa
arte que é feita de palavras, as quais são feitas para o interromper. Em vez de
silêncio, leia-se “contenção”, “eloquência amarrada”, aquilo a que George
Steiner chamava “o retiro da palavra”. Vejamos este poema, do primeiro livro de
Saúl Dias :”As madressilvas / que em Abril florescem airosas entre os brejos /
parecem dizer:/ Vede como somos belas! //e os namorados que na estrada passam,
abraçados aos beijos,/ erguem os braços para colhê-las...”
Seria difícil com maior economia de palavras (mas
judiciosa e jubilosamente escolhidas) sugerir uma tal intensidade de
florescimento de vida! As madressilvas emergem, “airosas”, da opressão dos
brejos e explodem num canto de libertação: “Vede como somos belas!” E,
paralelamente, os namorados deslaçam-se de beijos sensuais mas algo opressores
e soltam-se, erguendo “os braços para colhê-las...”A rima discreta mas eficaz,
subtil mas actuante, contribui para a explosão de vida e de libertação. Aqui, como
em Shakespeare, o silêncio, isto é, o pudor e o retiro são os intérpretes mais
eloquentes da alegria.
Já uma vez observei, a propósito de uma poetisa de
língua portuguesa que viveu longos anos em Moçambique, frente ao esplendor de
uma baía do Índico e cultivando, como Saúl Dias, uma poesia intensa mas de
poucas palavras, que se teria que inventar uma retórica do silêncio que melhor
nos permitisse ler este canto feito de uma escrita rara e que se nos entrega
menos pelo muito que diz, que pelo imenso que sugere. “Visando obstinada e
assimptoticamente um silêncio que nenhuma palavra possa violar”, dizíamos nós
então, “a poesia de Glória de Sant’Anna insinua-nos, de modo obsessivo, um
mundo onde o sagrado se instalou, um mundo, para voltarmos a Steiner, onde «a
verdade já não tem necessidade de sofrer as impurezas e a fragmentação que o
discurso necessariamente implica».” Eis o que, por outras palavras, inculcava
David Mourão-Ferreira, quando notava que a obra de Saúl Dias nos “convida(va) a
uma forma de «leitura» a que, geralmente, a poesia portuguesa não nos tem
habituado muito: a «leitura» do silêncio, - dos silêncios existentes entre as
estrofes entre os versos, no interior de cada verso...”Silêncio que não é
indigência, visto que este pudor (o de Saúl Dias, o de Glória de Sant’Anna)
antes sugere riqueza que se esconde e preserva. Voltamos a Gide, esse mestre da
litote, que afirmava ainda no seu inesquecível Journal: “Quando nada se tem a dizer ou a esconder, não há
necessidade de se ser discreto”. O discurso dos discretos é o discurso do
ice-berg, que mostra, ao cimo da água, uma parte pequena da sua dimensão – o
resto fica escondido nas profundidades do oceano:” Roubaste-me a alma / em
troca do teu corpo./ Mas o teu corpo / tornou-se também alma./ E eu voltei a
ter calma.”
Neste pequeno poema, que é uma pequena obra-prima,
não cabe uma palavra mais e, por outro lado, uma palavra que se lhe retire
destrói o edifício, todo construído com uma força discreta mas decisiva. Saúl
Dias fala pouco para dizer muito. Num percurso que visa esse impressivo
despojamento, o poeta de Sangue justifica João Gaspar Simões,
ao classificar a sua arte poética de “lirismo por assim dizer monossilábico” e
o seu “caso poético” de “um dos casos poéticos mais originais da geração”. É neste
pudor, nesta reserva, neste retiro que Saúl Dias assume um dos vectores mais
significativos do moderno: “Esta revalorização do silêncio” -, observava
Steiner, “na epistemologia de Wittgenstein, na estética de Webern e Cage, na
poética de Becket é um dos actos mais originais e característicos do espírito
moderno. O conceito de palavra não dita, de música não ouvida e portanto mais rica, é, em Keats, um
paradoxo local, um ornamento neo-platónico. Em muita poesia moderna o silêncio
representa a reivindicação do ideal; falar é dizer menos.” Julio fala pouco e
diz muito. Régio vai tendendo ao longo de um discurso abundante e que
gradativamente se depura, para um silêncio que visa e que ocasionalmente
substitui por um despiste perverso do leitor, Julio instala-se relativamente
cedo, nesse quase silêncio essencial, que usa como via de expressão intensa.
Régio tem outras dimensões: ficcionista de vôo largo, ensaísta, epistológrafo,
memorialista: explica-se exaustivamente, explica os outros, polemiza, carteia-se
com facúndia (mesmo queixando-se que o tempo lhe não chega) – assim vai
imprimindo uma marca forte e nem sempre tida por simpática, num mercado
literário de amadores e de preguiçosos. Júlio fica-se pelos poemas essenciais
e, quando quer mudar de registo, volta-se para a pintura. A sua correspondência
deve ser escassa e as espécies curtas e circunstaciais. Textos de exegese– viste-los. Canta e pinta – e já lhe chega. Neste discurso que
se poupa e se reserva, a única força permitida é a da subtileza. Há nisto um
perigo que o espreita, se é certo, como queria o ferino La Rochefoucauld que “a
subtileza demasiado grande é uma falsa delicadeza e a verdadeira delicadeza é
uma sólida subtileza”. Cremos que a de Saúl Dias/Julio é uma sólida subtileza que é como quem
diz, uma verdadeira delicadeza”: “Pisas a areia, delicada,/e a tua mão prende o
cabelo,/e esse gesto, quase nada,/tenho receio de perdê-lo./ Ah! Se eu pudesse
emaranhá-lo/Na escassa malha de uma rima!/Mas já desisto... Foi-se o
halo!/Sumiu-se a vaga tremulina!”
Vaga tremulina, escassa malha, gesto quase nada, areia delicada – eis materiais de construção quase etéreos, quase
inacabados, quase demasiadamente leves, realmente delicados e sugestivos. Tudo
tão reticente, tão reservado, tão resguardado, tão discreto... “A sinceridade é
de vidro, a discrição é de diamante”, observava Maurois, dando à palavra sinceridade o provável sentido de
entrega demasiado indiscreta e excessivamente eloquente. Diamante é, com
efeito, o que nos sugere esta poesia quase sempre tão cristalina e tão avarenta
dos seus meios que usa como quem os esconde.
Neste singular protocolo de discrição, creio que a província desempenha também o seu
papel. “A província”, observou David Mourão-Ferreira, “desempenha
efectivamente, um lugar primordial na poesia de Saúl Dias, como também na obra
de alguns dos seus companheiros de grupo. Mas, enquanto não passa, na de muitos
deles, da moldura de um quadro – moldura pitoresca ou asfixiante -, na de Saúl
Dias ela é o próprio quadro: as formas e as cores em que se exprime, no quadro,
a fundamental nostalgia do paraíso perdido.” Creio que David diagnostica bem ao
detectar, nesta poesia, a presença natural, não rejeitada, da província. Mas
penso, por outro lado, que ver nela a melancolia de um “paraíso perdido” é um
pouco esquecer que Saúl Dias jamais saíu da província, embora mudando, dentro
dela, de lugar ou de lugares. Eu seria pois mais tentado a ver nela mais um dos
rostos assumidos do seu retiro, da rejeição de tudo quanto tenha que ver com
uma exibição mais ostensiva e ruidosa – a que se vive nas grandes cidades,
embora, até nestas, haja quem saiba organizar a sua província. A província diz bem com a discrição, com a rarefacção da
palavra, é também uma metáfora adequada a esta poesia monossilábica e avara.
Mas tudo isto acabou por ajudar a que o nome de Saúl Dias/Julio, embora
universalmente respeitado e até amado (com bem menos reservas do que as votadas
ao seu célebre e contestadíssimo irmão José), tenha vivido, durante tantos anos
numa espécie de sombra, não definitivamente obliterante, mas sombra, mas
injusta, mas inadequada à qualidade eminente desta poesia tão subtilmente alada
e sortílega.
Num poema incluído na série dos Inéditos pela mão
atenta e cuidadosa de Luís Adriano Carlos, que preparou com devoção e
inteligência a Obra Completa que a
Campo das Letras há pouco trouxe à luz, podemos ler: ”Há música lá fora, há
danças, há fogueiras,/ há risos de mulheres e corre o vinho farto./ Porque me
isolo e escondo e fecho no meu quarto,/eu que, no fundo, sonho enormes
bebedeiras?”
Porque se isolaria e esconderia o poeta, havendo
“música lá fora”? Talvez para ouvir outra música das profundezas, uma música
menos óbvia, menos estridente mas infinitamente mais encantatória.
O nome de
Saúl Dias tem de facto andado um pouco obscurecido, como que mergulhado no
fundo de algum oceano. Meditando sobre o génio do romancista americano, Herman
Melville, que durante quase cem anos passou despercebido, Camus recordava uma
observação feita pelo próprio autor de Moby Dick, tentando talvez
consolar-se da obliteração que lhe amargurou tantos anos de vida: “Para
perpetuarmos o nosso nome, devemos esculpi-lo em pedra rija e atirá-la às
profundidades do mar: as profundidades duram mais do que as alturas.” E Camus
concluía, revendo-se nesta citação: “As profundidades têm de facto a sua
virtude dolorosa, como a teve o injusto silêncio em que Melville viveu e morreu
e como teve também o intemporal oceano que ele sem cessar lavrou.” Já bem
dentro do século XX, Melville foi reconhecido finalmente, na sua gigantesca
dimensão. A pedra rija que guardara o seu nome no fundo escuro do oceano –
prevalecera. Como prevaleceu também, o nome de Saúl Dias que agora, aqui no
Porto, bem perto da sua província natal, veio ao de cima neste colóquio em boa
hora congeminado: “Vamos,/de
mãos dadas,/ pisando novos trilhos./Sangrando os pés,/ passando frio e
fome./Tudo o tempo consome!/
Andando,/adormecendo,/acordando,/morrendo,/ressuscitando...” »
Eugénio Lisboa
13/14
de Maio de 2002
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