Eugénio Lisboa dá à palavra o lugar de honra em qualquer obra que produz. Escritor, cronista, poeta, ensaísta , jornalista, professor, investigador, Eugénio Lisboa tem celebrado o prazer da diversidade num registo de excelência. Nome maior da nossa Literatura compôs uma obra extensa e ímpar .
Apresentá-lo é sempre um privilégio. Rendidos, transcrevemos uma Crónica dedicada ao seu filho, João Lisboa, publicada no Jornal de Letras
June Tabor
Por Eugénio Lisboa
Ao João Luís
"Não gosto de escrever sobre artes que não pratico e sobre as quais tenho uma educação à la diable, isto é, muita frequentação e pouco estudo sério. Tenho visto muita pintura, escultura e desenho, como tenho ouvido muita música, e até possuo uma discoteca considerável. Mas não tenho educação musical, num sentido técnico.
Ao João Luís
"Não gosto de escrever sobre artes que não pratico e sobre as quais tenho uma educação à la diable, isto é, muita frequentação e pouco estudo sério. Tenho visto muita pintura, escultura e desenho, como tenho ouvido muita música, e até possuo uma discoteca considerável. Mas não tenho educação musical, num sentido técnico.
Tenho obsessões e vaidades como, por exemplo, possuir os 180 CDs, que compõem. na edição da Philips, a obra completa de Mozart. Tenho, neste sector, um gosto ecléctico: música clássica, jazz, música folclórica (alguma), fado, música dos Beatles, do Zeca Afonso, da Edith Piaf, do Jacques Brel, do Regiani, da Béatrice Arnac e tutti quanti.
Por intermédio do João Luís [ Lisboa, declaro aqui o meu interesse], cheguei à cantora britânica June Tabor, que tenho ouvido, naquele estado de “bestialidade espiritual, que é o êxtase musical ou místico”, para usar uma expressão forte de Montherlant, ao referir-se ao “canto profundo” do sul de Espanha e do Norte de África, de onde é oriundo.
Não tenho, repito, educação musical técnica, embora tenha um ouvido bem treinado a ouvir centenas se não milhares de horas de música. Não comentarei por aí além a qualidade das baladas cantadas por June Tabor; apenas direi, candidamente, como elas agem em mim. Com Tabor, estou um pouco à vontade porque ela, como eu, também não tem o que se chama educação musical. Usa o ouvido, a imaginação, a emoção, a obstinação, o talento e a alma. Estas coisas acontecem.
Em suma, não irei pretender. Quando entrei para a universidade, há muitos anos, vinha de África e ouvira, até então, pouquíssima música. Aqui, em Lisboa, comecei a ouvi-la e a ir a concertos. Com o mais aliciante dos cicerones: Mozart. A música deslumbrava-me e intimidava-me. Fazer aquilo – só para magos. Ficara-me a memória de um solfejo errático, aprendido em Lourenço Marques, com a ajuda de um pianista espanhol, republicano, fugido à sanha assassina dos franquistas. Resumindo, pouco. Mas espantava-me o topete de um conhecido meu, em Lisboa, colega universitário, de um curso diferente, que ia a concertos e fazia observações neste gosto: “Vejam-me aquela mão esquerda!” Ou, arrefecendo , com ouvido severo, qualquer nosso entusiasmo, aparentemente mal fundado: ”Houve ali um Si bemol completamente futricado.” Eu embasbacava: teria ele um conhecimento assim tão apurado, que desse por essas miudezas? Aquela trapaça serviu-me de vacina: nunca iria por ali!
Vou, portanto, dizer duas ou três coisas singelas sobre esta cantora de sedução prodigiosa, que nos “apanha” por algo de profundo e de definição delicada.
Voltei, agora, a ouvir, dela, dois discos: Ashore (2011) e A Quiet Eye (1999). Dizem-me que a actual voz (a de Ashore), quase “rouca”, cheia de graves, foi uma chegada: que, em canções muito mais antigas, predominavam os agudos. A voz actual, profunda, às vezes quase áspera, arrastada, lembra-me o “cante jondo” (canto profundo) espanhol, herdado dos cantores do Norte de África (do século X ao século XV). Montherlant, obstinado “voyageur traqué” naquelas paragens, onde o deserto predomina e o sol queima, dizia ser o “cante jondo” “uma manifestação da alma, como o seu nome indica, e não um exercício de virtuosidade.” Virtuosidade técnica tem-na, por certo, Tabor, mas não é isso que nos toca ou simplesmente impressiona.
O que vem até nós é a alma profunda dos mistérios, abismos e insídias do mar, as suas histórias de “naus catrinetas” ou assim, autênticas “histórias de pasmar”. Falando sempre do “canto profundo”, insiste Montherlant, obviamente tocado: “Regras, seja, mas, antes de mais nada, uma pessoa humana.” Na voz, interessa mais que seja expressiva, do que seja ampla... A voz de Tabor é superiormente expressiva. Os críticos de língua inglesa falam, a propósito desta cantora, de “voz arrepiante” que “transmite um oceano de emoções sem qualquer artifício” (The Weekend Australian), ou, a propósito, precisamente, do album Ashore, de “colecção profundamente comovente de histórias do mar.” A tónica sempre posta – e bem, a meu ver – na expressividade, na alma e não no teatro, na virtuosidade, na técnica. Ouvir canções como “ The Grey Funnel Line”, “Shipbuilding” ou “The Great Selkie of Sule Skerry”, entre outras, mexe connosco até profundidades insuspeitadas.
E volto ao “canto profundo” e aos emocionados comentários do severo Montherlant: “ No «canto profundo»”, nota o autor de Service Inutile, “cada um lança dentro de si como que uma tubagem de bomba, para chegar à toalha subterrânea da alma; cada um lança-a mais ou menos longe, sem chegar à água da alma; enfim, aparece alguém que a lança a tal profundidade, que a água da alma é atingida, sobe e aparece na voz.” É o caso da cantora June Tabor, que eleva as canções “até novos níveis impossivelmente altos” (Sydney Morning Herald). Cantando, em “Shipbuilding”, versos como os dilacerantes “Diving for dear life / When we could be diving for pearls”, June Tabor ascende a cumes da expressividade e da emoção, como raramente teremos ouvido em tempos recentes. Mesmo ao preço de alguma candura e de uma mais ou menos detestada “naturalidade”. Com esta voz, com estes textos, com esta expressividade removente, June Tabor leva-nos, sem vergonha, aos primórdios, àquelas grandes emoções primárias e fundadoras, de que os “sofisticados” têm tanta vergonha. Hoje, fala-se minimalisticamente do que se sente em pequenina dimensão. Tabor vai ao fundo dos tempos, quando não havia vergonha das emoções em grande e a nu.
Montherlant, sempre crítico da França, fazia fogo frontal na direcção dessa grande “conspiração francesa contra a simplicidade e o natural.” E dizia, escarninho, que o mot d’ordre da nata intelectual gaulesa era: “nada de lirismo, nada de fantasia, nada de visão directa da realidade, nada de expressão directa do que se sentiu, tudo isso é ridículo e chocante: um povo, ontem com peruca, hoje com certificado de estudos, não consegue suportá-lo,”
Gostaria de terminar, dizendo que esta voz grave e cheia de graves, ocasionalmente quase beirando a “rouquidão”, suspensa, por vezes “travada”, fortemente apelativa, sugerindo distâncias, sóis e abismos, melancolias e lutas me comoveu tanto como me comove o “canto profundo” , que Montherlant celebrou." Eugénio Lisboa, in JL
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