Crónicas
da Infâmia
I- O
retorno
O
tempo em que escrevi sobre o país e o mundo, sobre a actualidade que se
renovava constantemente, terminou há muito. Esgotou-se na sucessão dos
dias como acto rotineiro. Denunciei-o por comum acordo.
Escrevi.
Fi-lo com angústia, com dor, com sobressalto, mas ancorada numa
esperança de dias melhores. Era a crise que chegava. Era o início do tempo sem
metas, sem rumo, sem certezas. E os começos nunca projectam a extensão da
catástrofe que vão inaugurar. Incauta, resiliente, acutilante, caustiquei,
vociferei contra quem governava o país, contra o desnorte que nos acometia,
contra quem vendia ilusões , contra quem se abastecia no mercado das
aparências, contra a incapacidade de assumir a inoperância, contra a falta de
rigor, contra as aporias da verdade , da lealdade.
O
devir dos dias , implacável, prosseguiu e o país foi-se apoucando
nas mãos de quem nunca soubera gerir a res publica. Eleitos,
os fariseus entraram no templo.
Vandalizar
foi, de repente, um projecto.
Os
verdadeiros negros dias da crise começaram. Era o tempo iníquo que a
raiva não tinha previsto. O tempo da desumanização. O tempo da infâmia. O tempo
da ausência de todos os “eus”. O tempo desnudo, sem gente,
sem pessoas. O tempo do esquecimento do “outro”. O tempo que
transforma o ser humano num excedente, num obstáculo à eficácia orçamental.
E
as pessoas passaram a ser números. Algarismos disformes e rasurados pela
urgência do momento. As estatísticas eliminavam-nas, devoravam-nas conforme o
apetite de quem as exigia. A economia rejeitava-as, incapaz de
prosperar num estado social onde cada um é mais importante do que a
contabilidade da sua própria existência.
Os
comentadores proliferavam em assertivas análises, documentadas e balizadas por
um saber de experiência feito, quais árbitros em jogo próprio. Tanta
verborreia exasperava. Era o melhor convite ao silêncio. Em casa
onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão, diz o ditado.
Mas
a questão apresentava-se. Inquiria-me. Retomar a palavra, exigia. O peso do
silêncio não servia a revolta. Escrever, vociferar, alertar, denunciar,
insurgir como e para quem? As palavras estavam gastas numa sucessão
arrastada de crónicas. Repetir-me num tema que deixara de ser mote para uma escrita
ocasional, era como violentar-me. Entretanto, a realidade já nos tomara.
Medonha, cruel, insensível, impiedosa, irredutível. Aí estava ela, a
estreitar-nos num corredor de desespero, nos dias de intempérie
continuada.
Os
Hospitais a rejeitar doentes, abandonando-os à deriva das próprias
enfermidades. As Escolas sem meios para programar a excelência, convertidas em
refeitório dos alunos sem pão. As filas de gente sofrida, de olhar
ausente , a marcar lugar à porta de Centros de Emprego inoperantes. As
Fábricas exauridas a fechar sem terem precavido o futuro de quem as
alimentou. O leilão interminável dos funcionários públicos a ser realizado em
hasta pública. Vendê-los pelo menor preço para reduzir a viscosa gordura de um
Estado enraivecido. Os pensionistas e os reformados, o novo fardo que se
carrega sem qualquer utilidade. Abatê-los é urgente. Dizimá-los , uma
prioridade. Avançam medidas , compõem-se iniciativas que se transformam em
leis, reduzindo-os à pobreza. Espoliados, menorizados, silenciados por um
governo bastardo. Reduzir, eliminar , matar deixando morrer é o caminho.
E
as crianças, meu Deus? Onde
estão? Na nebulosidade dos sonhos porque nascer deixou de ser relevante. A
natalidade empobrece o país.
Nascer
. Teimar em nascer, mas nascer onde?
Nas
Maternidades que fecharam. Nos lares que não sobrevivem à ira dos dias. Nas
casas que não se sustentam.
Nascer,
em Portugal, num país de pobres em expansão é nascer num tempo infame que
exclui a alegria da infância.
Oh,
meu pobre Portugal. Que te fizeram? Que nos fizeram? Que fizemos nós?
Calar
, segredar , observar já não basta. A raiva pede revolta. E a revolta voa na
palavra que se lança de nós , por nós , para todos nós. Invocar para convocar.
Invoquemos
a RAIVA. Convoquemos a REVOLTA para que a infâmia não tome conta de todos
nós e não nos aniquile.
Portimão, 26 de Janeiro de 2014
Maria
José Vieira de Sousa
Uma crônica inquietante, escrita por uma intelectual que sempre primou pela discrição e a elegância das palavras. Um rosário de denúncias e justas indignações. Palavras fortes para uma mulher com uma alma de poeta. Assistimos a crise da Irlanda em 2011, a da Grécia em 2012 e tudo indica que ajuda externa condicionada a Portugal, está longe de resolver a dívida social e o empobrecimento do seu povo. Sim, convoquemos a REVOLTA...
ResponderEliminarManoel de Andrade
Convocá-lo, poeta amigo,foi um enorme e inesperado prazer.A minha gratidão pelas palavras gentis.
ResponderEliminar