Crónica de viagem
Finnis Terre!
Por Frederico Füllgraf
"Debaixo das asas do avião, o continente sul-americano vai adelgaçando até o encontro do Atlântico e da Cordilheira, na Terra do Fogo; encontro que provoca o grande choque dos elementos.
Em Ushuaia o tempo pode mudar oito vezes ao dia. Terra de extremos, a Patagónia fueguina só conseguiu atrair e fixar a colonização europeia no final do séc. 19. Até lá, o fim do mundo estava na lista negra da Igreja e da antropologia etnocêntricas. Conta-se que após a divulgação da descoberta por Fernão de Magalhães do estreito que leva o seu nome, a Igreja em Roma proscreveu os índios fueguinos, pois homens que viviam numa terra onde as árvores cresciam "para baixo" e a chuva e a neve caíam "para cima" (o “mapa mundi” invertido na cabeça dos clérigos, tão criativamente ironizado no mapa "de pernas para o ar", do artista uruguaio, José Torres-Garcia) não poderiam, em hipótese alguma, ser admitidos como descendentes dos primeiros pecadores, Adão e Eva – provavelmente sequer tinham alma... O reforço desta maldição veio pela boca de Sir Charles Darwin, autor da frase sem nenhum rigor científico, e por isso tristemente famosa: "A maldição e a esterilidade pesam sobre este país, e a água que desliza sobre seu leito de pedras, é parte da mesma maldição".
Ushuaia é cenário de experiências que vão da surpresa ao grotesco, passando pelo desconcertante. Por acaso existe experiência mais hilariante que chegar ao próprio “fim do mundo”? E lá este ele, sinalizado em todas as esquinas: Café do Fim do Mundo, World's End - a boutique do fim do mundo, o Museu do Fim do Mundo, o amor feito no fim do Mundo... Desconcertante não é apenas esta permanente simultaneidade da génese e do apocalipse do espaço continental, planetário, mas também da concomitância dos tempos, onde convivem a paisagem mesozóica com o Cyber-Café.
Uma atracção risível são as casas de Ushuaia: imensas casinhas-de-boneca de latão colorido, desafiando o céu, quase sempre encoberto. Exibem influências de estilo britânico e italiano, que o viajante já conhece da Boca, em Buenos Aires. As mais antigas, são construídas em madeira, com isolamento externo de latão, liso. Suas paredes internas são de madeira, isolada com papel de jornal, e coberta com papel de parede. Revelação insólita: a explosão demográfica ocorre até no fim do mundo. O "Plano de Promoção" do governo argentino, que na década de 70 atraiu dezenas de indústrias (desactivadas após a extinção dos incentivos fiscais dos anos 90), fez Ushuaia inchar de 5.600 para 29.500 habitantes.
A (suposta) cela de Gardel
Na Prisão do Fim do Mundo, pécie de "Alcatraz finnis terre", construída pelos próprios prisioneiros no início do século 20, desactivada na década dos anos 40, e reciclada como museu vivo, testemunhei a morte cruel dos meus dois maiores heróis argentinos: Eva Perón e Carlos Gardel. Primeiro, porque Alan Parker e Madonna assassinaram "Evita" no "Cine del Fin del Mundo", uma gigantesca tenda metálica intra-muros da ex-penitenciária, parecida com as cabanas das bases científicas da Antárctida. Quando Evita-Madonna, apelou, moribunda, "Não chores por mim, Argentina", o público respondeu com desdém, e subitamente a maldição de Darwin parecia virar-se contra o próprio "império do mal"; o britânico... Depois, uma placa espúria (mas genuinamente argentina) fulminaria Gardel à entrada de um cubículo húmido e escuro, com a seguinte insinuação: "¿Uruguayo o francés ? ¿ Estuvo o no, preso en esta cárcel ?"
Era tarde demais para sussurrar "No habrá pena ni olvido": minha imagem de Carlitos jazia no chão de paralelepípedos puídos pela História. Aproximei-me do infame sumário e li boquiaberto: entre as versões sobre os motivos da prisão de Gardel em Ushuaia, constam "envolvimento com mulheres, política e alcagüetagem", confusões que culminaram em tiroteio. Daí, sua prisão no fim do mundo. E lá, sua redenção. Na prisão, Gardel reinventou-se como payador (milongueiro gauchesco) antes de decolar sua carreira de tanguero e ter as Américas a seus pés. Autos, sentenças e prontuários enviados de Ushuaia a Buenos Aires, "perderam-se" nos porões da antiga Penitenciária, na esquina das avenidas Coronel Díaz e Las Heras, em tempo para evitar embaraços à carreira de Gardel. Aliás, Charles Romuald Gardés: ídolo nacional argentino, nascido no Uruguai, de pai supostamente francês, e morto em acidente aéreo na Colômbia. Assim é Ushuaia: o fim do mundo é um demolidor de mitos - ou será que ele é seu arquitecto, dando-lhes corpo e sabor?
Na "Estação do Fim do Mundo", em Ushuaia, sobe-se a bordo do trenzinho com a bitola mais estreita ainda que a do "Viejo Expreso Patagónico", de Esquel, e durante uma hora passeia-se por um cenário hilariante: um século atrás, a floresta austral foi derrubada pelos prisioneiros para a construção da penitenciária e das primeiras casas de Ushuaia. "O que não foi derrubado, foi queimado pelas fagulhas do próprio trem", explica, resignado, o guia turístico. Depois, o último trecho do parque é feito por ónibus, que faz uma parada como se fosse para alardear um "SOS Mata Fueguina!". Ansiosa em re-povoar suas florestas do fim do mundo com fauna de clima frio, no princípio do séc. 20 a Argentina precipitou-se, comprando gato por lebre: importou castores norte-americanos, que não encontrando seu predador natural - o puma ou jaguar pardo, virtualmente extinto - estão devastando o bosque austral com sua fúria de construtores de diques, para isso juntando toras e galhada, onde alojam suas tocas. Desinteressados, até mesmo os zorros, os cachorros do mato patagónicos, pelos simpáticos e aplicados roedores, não restará outra alternativa à autoridade finismundi, que declarar aberta a temporada de caça ao castor, transformando-a em insólita mas incontestável atracção eco-turística internacional: "Mate um castor, salve a floresta e ganhe o Troféu Finisterre!" – é o fim do mundo! ...
Última parada antes do transbordo para um barco na Bahia de Lapataia, um lago provoca um choque estético. Recortado de sonhos, emergindo dos labirintos do inconsciente, lá está o perfeito cartão postal hiperreal, imobilizando a imaginação: o Lago Roca.
A esta
altura, chegamos ao Canal de Beagle, e nevegá-lo significa experimentar outra
emoção desconhecida. Escoltado à direita e à esquerda pelas últimas formações
montanhosas do continente, o Beagle acompanha a Cordilheira dos Andes até sua
morte no mar. Morte é uma palavra que ganha muito sentido neste lugar, pois
muito sangue juntou-se às águas de cor esmeralda do Canal desde que o homem
branco aportou por aqui, 120 anos atrás. A cultura dos índios-canoeiros, Ona,
extinguiu-se em menos de duas gerações, porque a Europa depredou sua principal
dieta alimentar; os leões marinhos. Destroços e fotos de navios baleeiros, no
Museu do Fim do Mundo, também documentam um dos capítulos mais sinistros do saque
biológico das Américas pela Europa: a caça inclemente e economicamente burra à
Baleia Franca Austral.
Na saída do
Canal de Beagle para o nada, está Les Eclaireurs, o "farol da luz no fim
do mundo". Como Jules Verne nunca frequentou estas derradeiras
paragens, sua novela "O Farol do fim do Mundo" certamente se
inspirou no relato de algum marinheiro viajado. Les Eclaireurs é o ícone da
solidão. Silêncio e solidão são as grandes aprendizagens da alma do viajante
neste fim de mundo. E o silêncio e aquele desconcertante sentimento de pertença
ancestral, são os temas do romance Mundo del Fin del Mundo, do
chileno Luis Sepúlveda, cujo personagem-narrador traduz a universalidade destes
sentimentos, nada boçais, apenas demasiadamente humanos, quando escreve:
"Agora
eu sentia que eu também era de algum lugar. Finalmente sentia o chamado mais
poderoso que o convite da tribo; este, que a gente ouve ou crê escutar, ou o
inventa, como paliativo da solidão (...) Sob a abóbada de milhares de estrelas,
que testemunhavam a frágil e efémera existência humana, eu soube,
finalmente, que era dali, e que ... levaria sempre comigo os elementos
daquela paz, terrível e violenta, precursora de todos os milagres e de todas as
catástrofes. Naquela noite, sentado no convés do Finisterre, chorei sem dar-me
conta. Não era pelas baleias. Chorei, porque estava de novo em casa
(...)."
Na estrada
rumo a Esquel é possível ter um encontro intrigante, não marcado, com um ícone
da religiosidade popular. Plantado desafiadoramente em pleno deserto, está um
misto de altar e oratório, composto por capelinhas de madeira, de cor vermelha,
e cheias de votos (garrafas d'água, velas, ervas), ladeadas por três
bandeirolas fincadas no chão, de trapos esgarçados pelo vento, também
vermelhos, e uma cruz com uma tabuleta - sempre vermelhas - ofertados ao
"Gauchito Gil", a quem seus devotos pedem protecção. Minha
cabeça tenta entender, mas o resto do meu corpo apenas sente. E eis a
dúvida: será mesmo uma forte energia que emana deste lugar sincrético, ou é a
imensa solidão que me invade sob forma de percepção "religiosa"? É
uma experiência que evoca imediata associação aos surtos místicos descritos por
Isabelle Eberhardt, a filha de Rimbaud, enquanto atravessava o Magreb, montada
em corcovas de camelo, travestida de homem. Já este
culto patogónico originou-se em Cuyo, noroeste da Argentina, em
homenagem à "Defunta Correa". Segundo a lenda que a declara santa, a
personagem teria conseguido amamentar seu filho durante vários dias após sua
morte por sede, no deserto.
Em Sarmiento,
no coração do deserto, 130 milhões de anos do planeta Terra parecem codificados
no "Bosque Petrificado", localizado à entrada do tenebroso (sim,
ensolarado, mas tenebroso!) "Vale da Lua". Gravado a cores em
estratificações de idade geológica embasbacante, um inquietante criptograma de
arenito e rocha magmática apresenta-se aos olhos assombrados.
Este contacto com os proto-elementos, sua pétrea beleza e
a incomensurabilidade do tempo, potenciam o estupor psicológico,
experimentado no contacto com o silêncio do deserto. Feito
peixes fora d´água, agonizantes, troncos jurássicos estraçalhados pelas
intempéries, jazem no chão de cinza vulcânica. Sua escamação quer indicar que
só agora ingressaram em estágio de demorada morte mineral, até sua
pulverização. Na saída do Vale são quase nove horas da noite: sol de fogo, a
oeste, e lua pálida de susto, a leste, surpreendem-se, cara a cara –
o espectáculo é ambivalente, mas a alma entrega-se a ambos.
Um cavalo heróico, e um escritor mentiroso
Um cavalo heróico, e um escritor mentiroso
Esquel é a
porta de entrada do Parque Nacional de los Alerces, a
poucos quilómetros de Trevelin, o bastião avançado da
colonização galesa ao pé dos Andes. Aqui é fácil entender uma antiga, mas falsa
indignação do Chile. Foi graças a um plebiscito realizado entre os galeses, no
final do séc. 19, que toda esta região, povoada, sobretudo, por índios
araucanos, do Chile, que fugiram à expansão do império Inca, atravessando os
Andes, foi incorporada à Argentina, depois de espertamente "anexada"
por estancieiros chilenos, que seguiam as pegadas dos nativos exilados. Só
mediante a convocação de uma comissão internacional de arbitragem é que o Chile
reconheceu finalmente que as terras argentinas eram as que se localizavam a leste
das nascentes andinas, correspondendo-lhe apenas as localizadas a oeste, na
face do Pacífico.
Mas
a atracção imperdível de Trevelin é a "Tumba do Cavalo
Malacara". Sepultado ao lado de seu dono, o pioneiro galês, John
Daniel Evans, a quem serviu durante trinta anos, o Malacara é venerado
como atracção turística por Clery Evans, neta do pioneiro. Recebendo
seus visitantes na casa do avô, transformada em museu particular, Clery
reconstitui o drama dos quatro bravos galeses, que em 1879 cavalgaram de Rawson,
na costa atlântica, até os Andes, e que na volta foram emboscados por índios,
que os confundiram com soldados do Gen. Roca. O único que se salvara foi John
D. Evans, porque o Malacara teve a audácia de saltar de um precipício com quase
20m de altura e escapar – vivo!. Inteirado da morte dos três companheiros de
Evans, o cacique Tehuelche veio ter com Evans, desculpar-se. Só depois deste
incidente o governo argentino enviou seu primeiro destacamento militar aos
Andes, e deu posse de terra, até então “chilena”, aos galeses. Moral da
estória: não fosse um cavalo, e o mapa da América do Sul teria outro traçado.
Outra nota de
rodapé da História, desta vez do crime, foi escrita em Cholila, povoado
do sector nordeste do parque. Há lá uma atracção só
recentemente incorporada aos roteiros turísticos, da qual anteriormente o
país preferia não vangloriar-se: uma cabana que de 1901 a 1907 serviu como sede
da fazenda comprada pelo "Wild Bunch", o quarteto mais procurado pela
justiça norte-americana na virada do séc. 19. Após memoráveis assaltos a trens
e bancos, nos EUA, Robert Parker (aliás Butch Cassidy), Harry Longabaugh (aliás
Sundance Kid, já imortalizado por Robert Redford), e a bela pistoleira, digo
professora, Etha (Ethel) Place, fugiram para a Argentina, fixando-se em
Cholila. Harvey Logan, o quarto elemento do bando, ainda cumpria pena nos EUA,
chegando a Cholila somente em 1905.
Afirma-se que
com a chegada de Logan o bando retomara sua trajectória criminosa,
assaltando bancos no sul da Patagónia. Num desses assaltos, Logan
teria baleado mortalmente o gerente de um banco, violando o código de
ética da quadrilha, que rejeitava mortes. E este teria sido o fim do breve
interregno de paz do Wild Bunch, que novamente caçado, teria cruzado a
Cordilheira dos Andes, em direcção ao Chile, onde suas pistas
foram engolidas, em 1907. O ex-general boliviano, René Barrientos, matador
de Che Guevara e estudioso obsessivo do género western, mas descrente
da lenda, segundo a qual o bando teria sido morto em 1909, durante um
assalto à mina de zinco San Vicente, na Bolívia, realizou uma investigação que
confirmaria as suspeitas da agência de detectives, Pinkerton, dos EUA:
"foi tudo armação!", afirma Barrientos. Segundo Pinkerton e
Barrientos, pelo menos Cassidy, e antes dele, Etha Place, teriam conseguido
salvar sua pele, retornando clandestinamente aos EUA. Ainda segundo a irmã de
Cassidy, viveram incólumes, e suas carreiras tiveram um happy end.
Mas esta é
apenas uma de várias versões desencontradas, cujo objectivo é pintar
o ocaso da quadrilha com vernizes de glamurização. No início do
novo milénio, estudiosos da aventura de Cassidy e do Sundance Kid,
reuniram-se em barulhento congresso internacional, no sul
da Patagónia. E nesta oportunidade fizeram um enérgico acerto de
contas com o finado Chawin, ao qual, segundo o pesquisador Negro Suárez,
"a única coisa que lhe importava ao escrever era que sua estória fosse
eficaz”. Juárez confirma que aqueles túmulos encontrados em Río Pico, não são,
como afirmou Chatwin, as tumbas de Butch e Sundance. Como de resto, aliás,
Chatwin tomou ousadas liberdades poéticas, estacionando na paisagem patagónica
múltiplos objectos de sua imaginação. "Frederico
Füllgraf, in, fuellgrafianas.blogspot.pt
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