Play it again, Oskar!
Crónica da Berlim ainda intra-muros
Por Frederico Füllgraf
"Poetas morrem de overdoses: de versos,
droga ou loucura; em casos extremos, de fome ou de bala do marido da amante. Já
Oskar Huth, o ébrio virtuose, derrapou sobre uma partitura e despencou num fosso,
entre uma clave e um si-bemol.
Em vida foi o que os berlinenses
chamam de Original: viajado,
erudito, amante da boa tertúlia, e, sobretudo, estradeiro; subentendido não
como transgressão criminosa, mas atributo de pessoa, digamos, algo avessa ao
trabalho.
Caminhante, Oskar era corruptela de
Baudelaire, prussiano: tinha no sangue o mapa das avenidas e alamedas, das
colunas e estátuas, dos arcos e viadutos e, sobretudo, dos Kneipen; os botecos; ou das
“tabernas”, como dizem nossos irmãos lusos.
Não andava: parecia deslizar pela
cidade, de olhos fechados. Conheci-o e já beirava os sessenta anos de idade.
Irrompeu no bar Litfass, do também saudoso português exilado, Antonio, trajando
incombinável gravata cor laranja sobre berrante camisa cor verde, desarrumação
acentuada ainda por paletó violeta, surrado.
Tinha prazer em esfarinhar a má
educação, modismo anti-autoritário da época, com implacável protocolo, mas sem
empáfia: não resistia ao hábito de saudar as damas, beijando-lhes as mãos – atitude extemporânea, que nelas
resgatava o desprezado (mas, ai!, tão desejado) Kavalier à moda antiga, reforçando a colorida, etílica e
divertida decadência da então cidade intra-muros.
Contumaz, neste mesmo tom
de fin-de-siécle (do XIX,
pois já contávamos 1980), apesar da minha irritação, Oskar saudava-me como
“mein Freund vom Oberen Orinoco” / “meu
amigo do Alto Orinoco” – rude equívoco territorial que remetia àquela
boçalidade geográfica de filmes B hollywoodianos, nos quais chiquitas-bananas bailavam rumba em Coupakébéna...
Carmem Miranda? – Oh,
nein, gringos jamais!:
naquele faiscante átimo bolivariano, Herr Huth re-incorporava a odisséia
do inebriante Humboldt às “regiões equinociais do novo continente”. Contudo,
seu fascínio não brotava unicamente de seus modos educados, fora de ordem, mas de sua aura de alemão à
margem, cuja coragem era cochichada em prosa e verso, naqueles tempos (noves
fora o Che Guevara) tão
carentes de heróis.
Quando inspirado, empertigava-se ao
piano sebento com teclas amareladas pela ação da fumaça dos cigarros de muitos
anos, parecendo perfeita réplica do “Pau d´água”, vinil muito tocado nas festas dos meus pais, em minha
infância, ilustrado na capa com um pianista bêbado junto a um piano idem.
Deste, Oskar conseguia arrancar harmonias oblíquas para a embasbacada platéia:
solenes fugas de Bach,
aqueles estertores de Billie Holliday (“He is my maaaan..”), uma chanson lacrimosa de la Piaf, e assim por diante.
E nestes concerti buffi jamais faltava uma loira quase fatal, derramada
sobre o realejo, como falsete de Greta Garbo, traçando com os olhos John
Gilbert ao piano, em “Flesh and the Devil”. Apostei que um dia adentraria o bar
em baixo astral e – de staccato a furioso -atacaria de Hindemith; só para
contrariar!
Mas Oskar era movido por inabalável
bom humor. Quando chegava recém-desperto, com profundas olheiras roxas,
descabelado e a barba com três dias, desculpava-se com deferência, repescando
no céu de chumbo os tormentos da noite anterior: “passei da conta, Brüderchen (“irmãozinho”), bebi o rio
todo, encharquei até a alma”.- alegoria emprestada do Spree, rio que corria de
leste a oeste, por baixo do Muro, impassível à divisão da cidade.
Filho de músico, desde a tenra idade
acompanhara o pai a bordo de uma charrete em missão profissional. Viajavam por
Berlim e a província de Brandenburgo, consertando e afinando órgãos de igrejas,
devolvendo a alegria a curas e pastores, recebendo em troca seu pró-labore e a
promessa de uma vida eterna. Foi assim que a música entrou na passagem terrenal
de Oskar, quem, como poucos, sabia que a eternidade... - ora, essa
arrebata-se ao instante!
E o que tornaria sua biografia digna
de um longa-metragem, foi a 2a guerra mundial, que silenciou seus Lieder, substituindo-os pelo assobio tenebroso de bazucas, tanques e bombardeiros, fechando o céu sobre Berlim.
Antes da minha volta ao Brasil,
tínhamos combinado uma entrevista para um semanário brasileiro, tendo como
locação a gávea do Obelisco da Vitória (vitória sobre a França, em 1870): uma
coluna bismarckeana empoleirada por um gigantesco e coruscante anjo dourado,
que Wim Wenders levou para a história do Cinema como ícone de “Asas do Desejo”.
Indisciplinado, alemão às avessas, Herr Huth não compareceu. Deixou-me
babando pela narrativa até o próximo encontro; no bar do Antonio! Certamente
porque o anjo não servia bebidas, apenas uns excelsos, insípidos bafejos, sem
álcool, sobre a arte de elevar-se às alturas; essas bizantinices esvoaçantes de
querubins e aeronautas.
Ora, cá em baixo eclodira a 2ª. Guerra,
e alistado no exército, Oskar desertara em seguida, entranhando-se na
clandestinidade. Convencido de que seu paradeiro era farejado, triscou um
criativo despiste: entregava cartas e cartões postais a amigos viajantes, com a
ordem para aguardar o bombardeio, considerado terminal, de cidades inusitadas,
e então postar os sinais de vida a seus familiares, espantados e aliviados.
Dado por morto, Oskar renascia em cada
batalha.
Sobreviveu aos seis anos da guerra
como falsário (de identidades, passaportes, dinheiro), emergindo de seu búnker
no dia da conquista de Berlim pelas forças aliadas. Interrogado por
norte-americanos, lhes teria recomendado uma “receita” para seu país em ruínas:
- Dividam-no em quarenta partes e nunca mais haverá guerra!
Os ianques entreolharam-se, riram
constrangidos e prometeram pensar na proposta: em 1948 a Alemanha estava
partida em duas e Berlim “de quatro”, digo: dividida em quatro “zonas” de
domínio militar – geografia e história, hoje superadas, mas de autoria
reivindicada por Oskar, que ria, treteiro, ajeitando a gravata torta,
insinuando solenidade. Divertia-se com a pasmaceira dos cristãos diante de sua
fanfarronice e apostava em sua perpetuação como mito.
E tentando arrancar da música o
imorredouro, Oskar, o Airoso, maquinou
um irretocável invento, primoroso: um piano com “teclado aerodinâmico”.
Revolucionário, porque profundamente ergonómico seu conceito baseava-se na observação de que, durante um concerto
com duração média de noventa minutos, um pianista aplica várias centenas de
quilogramas de força ao teclado. O recital era sempe uma apoteose, já o
pianista o jazia ali como lixo!, bradava Oskar, a cabeleira despenteada.
Substituindo o teclado convencional,
fixo, por outro, deitado sobre um colchão de ar, o espirituoso borracho pretendia imprimir a sustentável
leveza do toque” à arte de conduzir o piano. Patenteou sua ideia e uma
confraria de amigos criou o “Fundo Oskar Huth”, dotado de 10 mil Marcos,
destinado ao desenvolvimento tecnológico da criativa engenhoca.
Havia, porém, uma condição: nenhum
centavo do fundo deveria ser malversado, usado para fins que não os
“estritamente pianísticos”
Crónica bêbada, há muito anunciada, a subversão do teclado morreu na casca, digo: na canjebrina. Mal interpretando a cláusula do contrato, Oskar confundiu fundos com sumidouro: certa noite mergulhou no leito abissal de uma garrafa e dele não mais retornou. Imortalizou-se na arte da fuga..." Frederico Fullgraf
Frederico Füllgraf, estudou na FUB-Universidade Livre de
Berlim e na DFFB-Academia Alemã de Cinema e Televisão, também em Berlim, até seu
mestrado (MA) em
Comunicação Social. É escritor (A bomba ´pacífica´- o
Brasil e outros cenários da corrida nuclear, Brasiliense, 1988), roteirista
e Director de cinema. É colunista da revista eletrônica Speculum, de arte e
cultura, e das revistas impressas Caros Amigos, Ideias e ETC (Travessa dos
Editores) e do Jornal GGN Santiago de Chile. Frederico Fullgraf vive no Chile.
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