" Está um vagabundo sentado à porta do prédio onde moro. Cabelo comprido. Barba branca com manchas amarelas de tabaco e sujidade. Tem sobre os ombros uma manta esfarrapada e calça uns sapatos velhos e sem atacadores. Pergunto-lhe se quer alguma coisa e digo-lhe que não pode estar ali.
- Discriminação de classe, para não dizer outra coisa.
Não me deixo intimidar, insisto com ele para que se levante e vá embora.
- Estou a ver que não me reconheces.
- Nunca o vi.
- Porque nunca te viste a ti mesmo. Olha bem para mim.
Ele levanta a cabeça e olha muito direito. Não quero acreditar no que vejo, aquele vagabundo tem a minha cara.
- Não estou a perceber - tartamudeio incomodado.
- Pois não. Alguma vez te viste? Nem tu nem ninguém a si mesmo se vê. O espelho é uma traição como ter a certeza que aquele que vês és tu? A imagem está sempre ao contrário. O braço direito à esquerda. O esquerdo à direita. O mesmo com os olhos e o perfil. É tudo um engano. Agora, sim, este que vês és tu.
- E quem é o senhor?
Ele aponta para mim e diz:
- Ninguém."
Manuel Alegre, in "TUDO É E NÃO É", D. Quixote, Abril de 2013
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