Depois deste texto ninguém torna a
ler-te
Por António Lobo Antunes
"Pensava que isto fosse uma crónica mas não é,
agora vou escrever outra coisa que se resume numa frase apenas e a frase
consiste no seguinte: tenho saudades de uma porção de pessoas, algumas que já
morreram e outras acho que ainda não e digo acho porque não sei delas há um ror
de tempo. Se calhar continuam por aí conforme continuo por aqui, sabe Deus como
e, se Deus não sabe, quem sou eu para saber, a gente pensa que Deus conhece
tudo e se calhar não, com a idade que tem não admira, há lembranças que escapam
a uma criatura nova, quanto mais. Gosto de imaginar Deus parecido connosco,
ensinaram-me que fomos feitos à Sua imagem e semelhança, os Livros Sagrados
garantem isso com firmeza e, se queremos ser bons cristãos, devemos acreditar,
eu por mim custa-me um bocadinho mas acredito, só não Lhe entendo a barba mas
enfim, nem o trabalhão que deve dar pentear aquilo e andar com um triângulo
atrás da cabeça, estou mesmo parvo hoje. Estou parvo muitas vezes mas hoje nem
se fala, se calhar vou ao centro comercial mais logo arejar as ideias, como
jura um amigo meu passar a vida em casa não melhora a saúde, qualquer dia ficas
todo paralisado, nem consegues andar. Ele anda que se desunha, uma hora todas
as manhãs, de maneira que não tem barriga. Puxou a camisola para cima a fim de
eu ver e realmente barriga nicles, lisinho. E rapa os pêlos do corpo por achar
que as mulheres preferem assim, a época dos gorilas já lá vai e a gente tem de
fazer o que as mulheres gostam senão nem uma gorda desdentada cai na rede, tão
certo como eu me chamar Tal e Tal, não vou meter aqui o nome, não desejo
irritar ninguém nem que ameacem bater-me ou amuem comigo, fico sempre aflito
quando amuam comigo, começo logo desculpa lá, desculpa lá, até que desculpam,
está bem, pronto, não chateies, e então deixo de ficar de joelhos e levanto-me
e tento beijá-los de gratidão e eles não consentem, julgas que sou algum
maricas. A sério que pensava que isto fosse uma crónica e é só eu a passar a
mão no piano das palavras, a ver, embora não veja por aí além. Passar a mão no
piano das palavras quando aquilo que devia era estar a tocar mas, para isso,
tenho, primeiro, de aquecer os dedos, não se toca uma coisa de jeito a frio.
Onde é que eu ia? Julgo que me desviei, não há crise, vai-se juntando o que
aparece e depois arruma-se, o problema está em não aparecer nada, volta atrás,
recomeça, talvez consigas, não acredito que aconteça mas tenta, quem não
arriscou não perdeu nem ganhou, ninguém te vai matar por causa disso, sucede
aos melhores, não te preocupes, nem sequer és mau rapaz e os outros
compreendem, só tu não compreendes nada, saíste-me cá um saloio, evapora-te. Eu
mandei evapora-te, estás à espera de quê, quem não te conhecer pensa que és
surdo. O azar que eu tive em enfiarem-me no teu, se assim me posso exprimir,
corpo, nesse saco de batatas horrível com uma cabecinha idiota em cima, mãos
aselhas e quanto aos pés o melhor é nem falar, imagem e semelhança de Deus no
teu caso uma ova, eu pensava que isto fosse crónica mas não é, depois deste
texto ninguém torna a ler-te, o director da revista, que é educado, chama-te a
declarar tenha paciência mas você secou e tem razão, sequei, perdoe, e ele eu
por mim perdoo quem não vai perdoar é a administração, que administração atura
o que você nos entrega, dantes dava-nos uns textos mais ou menos e agora repare
só nesta bodega e eu reparo, de facto passei-lhe uma bodega, não sei como me
aguento sem o dinheiro que me punham na conta mas haja saúde, os dólares não
são tudo na vida, e o director pois não, o amor são os outros cinco por cento
como explicava Elisabeth Taylor que, infelizmente, a morte roubou à nossa
companhia. E estamos a falar de um director simpático, o que faria outro
qualquer no lugar deste? E, no entanto, palavra de honra que pensava que isto
fosse uma crónica mas olhe, entendo as suas razões, quem fala assim não é gago,
é a falar que a gente resolve os assuntos, não é à porrada, à porrada não se
consegue seja o que for, e o director ora aí está uma grande verdade, e eu não
há verdade que não seja grande, só a mentira é pequena, e o director ora vê,
quando você se esforça até despeja frases verdadeiras, que pena não se esforçar
mais vezes, costumo explicar aos meus jornalistas que se você se esforça a
gente, com um bocadinho de boa vontade, quase o aceita, não aceitamos tudo,
claro, uma frase aqui e outra ali, você nem é mau sujeito, só me dá pena que
seja incapaz e de intenções generosas está o inferno cheio, e eu não é por
muito madrugar que amanhece mais cedo, e o director, naturalmente, grão a grão
enche a galinha o papo, e eu, a despedir-me, ao menino e ao borracho pôs-lhe
Deus a mão por baixo e com este raciocínio nos despedimos, comovidos, um do
outro. De porta já fechada ainda escuto de Espanha nem bom vento nem bom
casamento, que percebo ser uma frase que encerra, com mágoa, uma relação de
anos. Se eu juntasse quem não quer ser lobo não lhe veste a pele ou, mesmo, só
se lembram de Santa Bárbara quando troveja, não fazia mais do que dar-lhe razão
e talvez devesse ter acrescentado, por consideração e estima. À saída
lembrei-me que o cão é o melhor amigo do homem porém de que me servia isso já?
Nem vão-se os anéis fiquem os dedos me auxiliaria. De qualquer das maneiras,
como declaram os Secretários de Estado, juro que pensava que isto fosse uma
crónica conforme juro que tenho saudades de uma porção de pessoas. De modo que
ao chegar a casa, bem vindo seja quem vier por bem, sento-me não numa cadeira, a
um canto da sala, de joelhos na boca, não acendo luz nenhuma e fico assim, no
escuro, muito caladinho, até a minha mãe perguntar não te esqueceste de lavar
os dentes antes de te deitares e eu me olhar no espelho da casa de banho,
besuntado de pasta, até a minha imagem me sorrir.“ António Lobo Antunes, em
Artigo de Opinião, publicado na Revista Visão, em 13/12/2013
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